Pieces: Em Pedaços escrita por Moonkiss


Capítulo 5
“Mal Do Século” (parte II)


Notas iniciais do capítulo

Oi, amores, quanto tempo!
Finalmente pude focar somente nas minhas histórias, e cá estou! No capítulo de hoje, escrito com muito carinho, teremos a narração do Gaara e o primeiro contato GaaHina!
Enfim, espero que gostem, e uma boa leitura a todos! ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/773193/chapter/5

Capítulo V – “Mal Do Século” (parte II)

Escrito por @Moonkiss

[...] Gostaria que pudéssemos voltar no tempo, para os bons e velhos tempos, quando nossa mamãe cantava para dormirmos. Mas agora estamos estressados.

— Stressed Out, Twenty One Pilots.

• • •

Gaara

 

Na Idade Média, os homens criaram um código para anunciarem que não possuíam armas escondidas — apenas as que portavam em mãos — antes de darem início a um duelo: o aperto de mãos. Há teorias que alegam que o gesto surgiu já nos tempos primórdios com a mesma finalidade. Ao longo do período histórico, esta comunicação corporal em algumas culturas passou a ser uma forma de cumprimento e expressar, além do estado emocional, confiança entre os dois indivíduos. De qualquer maneira, são diversos os tipos de aperto de mão que os seres humanos costumam usar em seu cotidiano. Existe, por exemplo, o aperto com a mão em posição superior, onde a palma é virada para baixo e exprime a vontade de controlar a situação. Para recuperar o controle, todavia, é feito o aperto com as duas mãos. Estes são os que, respectivamente, eu e Itachi usamos há poucos minutos.

Não guardo rixas com Itachi como guardo com o seu irmão mais novo, muito pelo contrário, no entanto, minha muralha invisível está sob ameaça. Embora ocupado fazendo anotações, sinto que seus olhos foram treinados para agirem tais quais duas câmeras de vigilância. Você sente, imbecil? Isso é um fato. Os olhos dele são duas câmeras de vigilância. Estou vulnerável. Ele tem conhecimento em Psicologia, é capaz de vasculhar a mente alheia se quiser. Do jeito que eu o conheço, quem me garante que Itachi Uchiha não tenha um ás na manga?

— E então, Gaara — ele repousou a caneta sobre a página do caderno e me olhou, sorridente —, como está se sentindo hoje?

— Estou tranquilo. — respondi, firme e forte. Talvez não muito forte.

— Bom, na primeira consulta costumo perguntar algumas coisas básicas para os pacientes, mas já que te conheço, vamos pular essa parte. Só uma dúvida: você ainda trabalha no Snake Skin, certo?

— Certo.

— Eu perguntei porque não sabia se Orochimaru demitiu você também no sábado passado. — disse, cínico, rindo em seguida.

Visto que Sasuke mora conosco desde os dezoito anos, às vezes Itachi nos visitava a fim de ver o próprio irmão. E foi numa dessas visitas, ocorrida neste final de semana, que lhe informaram sobre a demissão de Sasuke. Por mais que Itachi detestasse Orochimaru, ele discutiu com Sasuke devido a sua imprudência, bem severo e protetor como todo primogênito deve ser. Olhei para Itachi, vestido socialmente e adotando uma postura formal. E pensar que esse cara um dia já foi tatuador como eu.

Itachi, no intuito de financiar seus estudos, trabalhou temporariamente no Snake Skin como tatuador profissional e professor do curso de tatuagem que o nosso estúdio oferece. Era impecável no que fazia. Boa parte do que eu conheço quanto à arte corporal aprendi através dele. Gostava de vê-lo tatuar as pessoas, desenhando detalhe por detalhe. Trabalhamos juntos até, na época eu era o balconista do estúdio. Tinha quinze anos quando pedi para que arranjasse uma vaga para mim no curso do Snake Skin. Assim que adquiri o certificado, Itachi, orgulhoso com o resultado, me fez um pedido também: queria que eu o tatuasse. Debaixo daquela manga da camisa social que está vestindo, havia um corvo traçado sobre a sua pele. É uma obra minha. Em troca eu também queria uma tatuagem feita por ele, e então surgiu o Shukaku, o monstro da lenda folclórica, cravado no meu braço esquerdo. Não nos tornamos tão íntimos depois dessa interação entre mestre e aluno, porém, foi o suficiente para que eu sentisse admiração por Itachi. Isto, inclusive, fez arder uma culpa em mim por ter me comportado de forma rude com ele durante o aperto de mãos. Rasguei um riso por conta da piada e das lembranças. 

— Não, só o Sasuke. Pelo menos o show ainda vai ser lá, Neji conseguiu convencer o Orochimaru.

— Que tolo o meu irmãozinho... enfim, Gaara, o que te trouxe até aqui? — questionou, apoiando os cotovelos sobre a escrivaninha. Dei de ombros.

— As broncas de Naruto.

— Bem — ele reprimiu uma risada, fechando os olhos por breves segundos —, para Naruto te dar broncas é porque tem algo de errado.

— Não sei explicar exatamente o que tem de errado comigo. — falei, quase em um resmungo. Itachi, de sobrancelha curvada, juntou as próprias mãos.

— OK, vamos com calma. O que você tem feito ultimamente?

— Trabalhar. Ensaiar para o show desse próximo sábado. Fumar, mas decidi parar. Compor só para mim. Beber um pouco. Não tenho feito tanta coisa. Parece que tudo perdeu a graça, menos a música.

— Sabe me dizer por que nada tem mais graça, com exceção da música?

— É que não tenho mais ânimo para nada.

Eu nunca fui uma pessoa extrovertida ou alegre — embora tivesse uma ou outra memória feliz. Mas ultimamente me sinto como um coto de vela, com uma chama tão pequena que está se apagando pouco a pouco, e tenho a impressão de que nada pode reacendê-la. Meus hábitos, meus gostos, todas as minhas coisas favoritas não me dão mais satisfação. Nem mesmo o cigarro, que até então era a minha válvula de escape, estava sendo eficaz. Apenas a música alivia consideravelmente esse vazio esquisito dentro de mim. Não sei como a situação chegou a este ponto.

— Tinha mais alguma coisa que você costumava fazer e não faz mais? — indagou Itachi depois de alguns segundos. Ele de repente modelou no rosto uma expressão alarmada, como se eu estivesse dizendo algo absurdo.

— Sim. — assenti, reprimindo um bocejo logo em seguida. Estou com um pouco de sono — Eu cultivava cactos, desde criança. O que eu cuidava lá no meu quarto já está morrendo.

— Por que parou de cuidar da planta?

— Ele me lembra a minha mãe. Tudo que é relacionado à botânica me lembra a minha mãe. — falei, inevitavelmente diminuindo o tom de voz. Espiei no canto da sala o vaso de palmeira ráfia.

Assim como o meu tio, minha mãe era enfermeira — é, devido a isto, que não gosto de hospitais, pois sempre me lembro deles —, entretanto, também queria ser florista. Tudo que sei sobre botânica foi ensinado por Karura. Não tínhamos um quintal para ela montar o próprio jardim, então mamãe plantava flores de diversas espécies, além de plantas suculentas, em pequenos vasos espalhados pela casa. E os cactos estavam incluídos na lista. O primeiro do qual eu cuidei, um mammillaria bocasana, foi dado por minha mãe. Quando brotou a primeira flor cor de rosa nele, nós dois ficamos muito felizes. Ela dizia que, ao nascer uma flor de um cacto, a natureza nos indica que o inesperado surge do improvável. Era por causa desta mensagem filosófica que eu gostava tanto de cactos. Hoje em dia não é assim, embora ao longo dos anos tenha descoberto que eu sou como um cacto, porém, que não floresce. O que me sobra são apenas os espinhos. Eu sou só o improvável.

— Quer falar sobre ela? — questionou Itachi com cautela, como se estivesse prestes a ultrapassar uma zona proibida. Arrastei o olhar de volta para ele.

— No momento não, por favor.

— Tudo bem, sem pressão. — ele apanhou o caderno e a caneta esferográfica mais uma vez — Como está se saindo sem o cigarro?

— Estou quase andando pelas paredes. — demos uma risada comedida — Minha médica disse que devo parar antes que eu desenvolva uma doença pulmonar.

— Você fumava para controlar o estresse? — inquiriu enquanto escrevia algo na folha do caderno. Tentei espiar o que ele anotava, mas não consegui.

— Por aí.

— A maioria dos tabagistas faz isso. — Itachi parou de escrever e voltou a visão para mim, com seus olhos negros e sérios — Gaara, me fala mais sobre o que você tem sentido nos últimos tempos, por favor. Tanto no âmbito emocional quanto no físico.

— No físico?

— Sim.

— Hmm... — franzi o cenho, tentando pensar no que contar. Controlei um suspiro — eu tenho pensado muito sobre o passado, mais do que o normal. Me sinto culpado, sujo e estúpido. Geralmente eu não consigo dormir, e, quando consigo, tenho no máximo quatro horas de sono. A insônia sempre esteve presente na minha vida, mas agora piorou. Ando bem cansado ultimamente, tanto que estou tendo problemas em me concentrar naquilo que faço. Foi por isso que briguei com o seu irmão, errei mais de uma vez a nota da música durante o ensaio da banda e o Sasuke se irritou. Às vezes sinto dores no peito e nas costas, mas acho que é efeito do cigarro. Pelo que eu me lembre é só isso.

— Você tem se alimentado bem? — perguntou após fazer mais algumas anotações. Ele está austero até demais, o que me deixa um pouco apreensivo.

— Nem tanto. Como três vezes ao dia, mas em pequenas porções. Geralmente não sinto fome.

— Entendi. — escreveu mais uma vez. Itachi olhou para mim, ainda circunspecto — Bom, agora eu quero te fazer uma pergunta um pouco mais íntima. Tenho essa permissão?

— Vai em frente.

— Já iniciou a vida sexual? — assenti, mesmo que tivesse estranhado a pergunta — É ativa?

— Não. Fiz sexo apenas uma vez, mas a experiência não foi tão boa quanto deveria ser. Eu não tinha nenhum vínculo forte com a garota, e ela era... — fiz uma careta enojada ao torcer o nariz — fútil. Só gostava do “status” que tinha por sair comigo. Foi um erro ter me envolvido com ela.

Há uns três anos que conheci Sari pelos corredores da faculdade, antes de eu trancar a minha matrícula. Tivemos um envolvimento casual que durou por dois meses e que não acrescentou em nada na minha vida. Sari se dizia fã da Fire Will, e usou este argumento para começar a falar comigo. Eu cursava Música, assim como Neji, e ela Marketing. A única coisa que possuíamos em comum era Suna, nossa cidade natal. Talvez fosse este o motivo pelo qual senti uma pequena atração por ela. Conversávamos sobre tudo que havia de bom em Suna, tudo que eu sentia saudades do meu lugar de origem: o calor, as paisagens, a comida, o sotaque, entre outros. Sentia falta de ter alguém para papear sobre isso desde que me mudei para Konoha. Sentia-me solitário por morar em uma cidade estranha, sem conhecer alguém que também viesse de Suna. Sari é bonita, extrovertida e bastante sociável. À primeira vista, passava a impressão de ser uma boa garota, mas após algum tempo descobri o quão ela é superficial: um dia, ao acordar depois da nossa primeira relação sexual, vi que Sari tinha postado no status do WhatsApp uma foto nossa, na qual eu ainda estava dormindo e ela, sentada na cama, usava apenas a minha camisa. Na legenda, digitara a frase “pegar o frontman* da sua banda favorita é pra poucas”. Furioso, eu a fiz apagar a foto tanto do status — sorte que apenas duas pessoas visualizaram — quanto da galeria, e saí do apartamento dela. Nunca mais tive contato algum com ela, bloqueei o seu número e a evito o máximo que posso. A culpa foi minha, pois me permiti ser guiado pela carência. Senti-me estúpido até por ter cogitado a ideia de assumir um namoro com Sari. E desde então não me interessei por mais ninguém.

— Então foi um sexo sem sentimento? — Itachi interrogou, cruzando as próprias mãos e apoiando o queixo sobre elas. Anuí.

— Sim. Ela não gostava de mim e eu não gostava dela, embora achasse que gostava. — revirei os olhos e cocei ligeiramente a pálpebra com o dorso da mão — Mas enfim, por que essa pergunta?

— Antes de te responder, gostaria de tirar uma dúvida. Posso saber o que foi isso aí? — inquiriu, projetando a ponta do queixo na direção do meu braço direito.

Pregueei a testa, então reparei que ele estava se referindo aos pontos cirúrgicos. Não doem mais e eu estou cuidando devidamente para que cicatrizem em breve. Por enquanto não pretendo contar com detalhes sobre o incidente do espelho, deixarei este assunto mais para frente.

— Ah, os pontos? Eu quebrei sem querer o espelho da minha suíte e acabei me ferindo, não foi nada grave.

— Ah, sim, espero que cicatrizem logo. Enfim, Gaara, eu vou ser bem direto, não tenho costume e nem gosto de fazer rodeios. — ele relaxou os cotovelos na escrivaninha. Seu olhar ficou ainda mais severo, porém, com um toque de preocupação — Sei que esta é a sua primeira consulta e que temos poucos minutos de diálogo, mas este meio-tempo foi o bastante para suspeitar que você esteja com transtorno depressivo maior. Ou depressão, como é mais conhecido.

Arregalei os olhos. Engoli seco. Meus batimentos cardíacos elevaram-se, e sentia cada um batucando o meu peito como o som de uma bateria. Comecei a suar frio, então, pela primeira vez durante a consulta, achei a temperatura do ar condicionado baixa demais. Tudo isto em pouquíssimos segundos. A sensação era de haver uma arma apontada bem na minha direção.

Ah, não, cara...

Isso não pode estar acontecendo...

A única coisa que me vinha à mente era a imagem da minha mãe morta no chão do banheiro da nossa antiga casa. Sabíamos que ela tinha depressão, apesar de nunca ter recebido algum diagnóstico médico. Meu tio Yashamaru era quem a alertava sobre isto, além de ser bastante notável. Por esta razão é que mamãe costumava tomar remédios calmantes. Entreabri a boca para tentar respondê-lo, mas foi em vão. Raramente algo ou alguém me deixa sem palavras.

Mãe...

— Dentre os sintomas da depressão estão a falta de apetite, tristeza e irritabilidade persistente, desânimo, sentimento de culpa, fadiga, insônia, dificuldade de concentração, dores físicas, redução do interesse sexual e muito mais. — Itachi continuou, desta vez um pouco encabulado devido a minha reação — Foi por isso que te fiz essas perguntas. E, com exceção da sua última resposta, o que você tem passado se encaixa no quadro depressivo. Mas também é necessário o diagnóstico médico, isso se você quiser prosseguir a terapia. Entendeu?

Era por isso então que ele estava tão sério...

Sei que a depressão pode ser hereditária. Será que herdei isso da minha mãe?

— Entendi... — murmurei. Foi tudo que eu consegui proferir. Minhas cordas vocais quase não tinham forças. Itachi mordeu a bochecha interna, suspiroso.

— Peço perdão, talvez eu tenha sido direto demais. Mas sei que você prefere assim. Gostaria de continuar conversando? — indagou. Ele realmente parece empático. Tentando me recuperar, pigarreei, mas ainda um pouco inerte e tonto devido ao susto.

— Está tudo bem, Itachi, eu detesto que me enrolem quando querem dizer algo. — escorei os cotovelos na mesa e escondi o rosto entre as mãos, que até então estavam dentro dos bolsos da jaqueta — Posso fazer uma pergunta?

— Claro que pode, Gaara.

— Se eu estiver mesmo com depressão, você vai receitar medicamentos pra mim?

— Na verdade, eu, como psicólogo, não posso receitar remédios. Este é um trabalho que cabe ao psiquiatra, e depende muito de como se encontra o estágio da depressão. Há casos em que é recomendado somente a psicoterapia ou ambos os tipos de tratamento. Por que a dúvida?

Ufa. Mais aliviado, apoiei a têmpora sobre o punho. Se eu estiver mesmo com isso, espero que não esteja tão crítico. Não fui capaz de olhá-lo. Minha visão se perdia entre os objetos em cima da escrivaninha. A surpresa foi tanta que acarretou numa dor de cabeça.

— Bem... a minha mãe tinha depressão e tomava remédios. Ela acabou viciando, até que teve uma overdose. Achamos que foi suicídio. — bufei. De repente senti os meus olhos encherem-se d’água. Os fechei com rigidez e engoli o choro — Me desculpa, eu não gosto de falar sobre ela, nem estou acostumado com isso.

— OK, Gaara, não precisa entrar em detalhes se não quiser. Eu já entendi. — ouvi o ruído de um papel sendo rabiscado, e deduzi que Itachi anotava algo. Funguei e, já mais seguro, pude abrir os olhos e voltei a encostar-me na poltrona. Ele de fato estava escrevendo — Só uma pergunta: a sua mãe fazia algum acompanhamento psicológico?

— Não, ela se medicava por conta própria. — respondi, cruzando os braços. Ele assentiu, sem interromper a sua anotação, e conteve um suspiro.

— É aí que está o erro. As pessoas subestimam a depressão, acham que podem resolver o problema sem nenhuma ajuda profissional. Infelizmente ainda há muita falta de compreensão quando o assunto é este.

Itachi tem razão. A minha mãe não se atentou à própria saúde mental. Além de não ter denunciado o meu pai por violência doméstica, nunca buscou um amparo médico para se tratar de forma adequada, e eu nunca soube o porquê destas duas questões. Aliás, uma grande parte das pessoas com este transtorno não procuram ajuda. Li recentemente que a depressão é a doença mais incapacitante do mundo. O curioso é que, de alguns anos para cá, percebi que várias pessoas desenvolveram esta síndrome, sobretudo aqui no Japão. Antigamente era raro encontrar um depressivo, hoje se tornou algo natural.

— Por que a taxa de depressão cresceu tanto no mundo de uns tempos pra cá? — questionei de repente. Itachi voltou a atenção para mim, pensativo e surpreso. Por fim ele comprimiu os lábios e deu de ombros.

— É uma pergunta um pouco complexa. Mas sempre achei que isto se deve às mudanças das relações sociais, humanas, econômicas e de produção. Vivemos numa modernidade líquida, como diria Bauman.

— Como assim?

— Bem, a modernidade líquida, segundo o sociólogo Zygmunt Bauman, deu início depois da Segunda Guerra Mundial, mas se tornou evidente durante a década de 1960. Esse período se caracteriza pela sobreposição das relações econômicas às relações sociais, e isto fez com que cada vez mais houvesse uma fragilidade de laço entre pessoas e de pessoas com instituições. Por exemplo, você já notou que, quanto mais “amigos” a pessoa tiver, mesmo que não passem, na maioria dos casos, de colegas ou conhecidos, mais ela é considerada? Ou que as pessoas são analisadas não pelo que elas são, mas pelo que elas compram? Ou que arranjar um emprego passou a ser um empreendimento totalmente individual? 

— Sim. Mas não entendi sobre o último...

— Pois bem, vou ser mais específico. Já reparou que, se você não entrar para uma faculdade aos 18 anos ou se não quiser se graduar em algo, você geralmente acaba sendo visto como um incompetente, um fracassado? Principalmente no nosso país? Lembra do Seppuku*, no qual os samurais eram submetidos? Nós, japoneses, nunca aprendemos a lidar com o fracasso. Devemos sempre seguir a cultura da honra, obter o sucesso. Mas a vida não é um mar de rosas, e nem todos entendem isso. Não podemos ser perfeitos ou ter uma vida perfeita.

Enquanto Itachi explicava, as minhas memórias num instante captaram a figura de alguém: meu pai. Antes de Temari nascer, Rasa era bem sucedido e tratava a mamãe como se ela fosse uma rainha — segundo o que esta mesma contava. Mas algo dentro dele mudou após ver a própria empresa indo à falência. Apesar de reconhecer que o meu pai não optou por um bom caminho e que este meu sentimento de ódio por ele não vai se desfazer facilmente, pela primeira vez eu enxerguei as coisas de uma forma diferente. Ora, como um homem acostumado com o sucesso, com uma família para sustentar e uma reputação a zelar poderia suportar aquela pressão? Sobretudo em meio ao sistema capitalista em que vivemos, como Itachi acabou de mencionar? Rasa agiu errado, muito errado, entretanto, era uma pessoa como qualquer outra, que não teve estrutura psicológica para resistir às adversidades. Além disto, concluí a partir desta teoria da modernidade líquida que, se não fosse a importância exagerada do empreendimento individual, talvez o meu pai não tivesse se perdido. E, se ele não tivesse se perdido, a minha mãe não haveria se matado. E, se ela não houvesse se matado, meus irmãos e eu não levaríamos a vida que levamos agora. Quem sabe o meu eu interior não fosse tão caótico? Quem sabe a minha família não estivesse desajustada? Como um problema social e político pode influenciar tanto na vida das pessoas, tal qual um efeito dominó?

— Agora eu entendo. — respondi, me situando ao ambiente novamente — Então você não acredita nesse papo de que a depressão é o mal do século?

— Não mesmo, Gaara. — ele deu uma risada sarcástica e balançou a cabeça em negação — Eu acredito que o mal do século é a falta de amor e de empatia para com o próximo, geradas pela modernidade líquida. A depressão é apenas uma das consequências disto.

  

[...]

Ficamos conversando por cerca de mais uns trinta minutos. Embora ainda estivesse abalado com o meu prognóstico, já estava um pouco mais calmo. Aceitei fazer o tratamento, então Itachi me encaminhou para o psiquiatra, Inoichi Yamanaka, a fim de que ele diagnosticasse o meu quadro de depressão — isto se eu estiver mesmo com depressão. Pude constatar que Itachi continua sendo um profissional competente, e foi o suficiente para que eu desestruturasse a imagem de um psicólogo inconveniente na minha cabeça. Demorei um bom tempo para chegar a esta conclusão, mas enfim percebi o quanto preciso de ajuda, e farei o que estiver ao meu alcance para cumprir a minha parte. E estou começando a cumpri-la agora ao agendar a próxima consulta.

Após apanhar o comprovante de agendamento com Fuu, a recepcionista e uma colega minha, verifiquei as horas no relógio de parede atrás dela. São 18:00 horas e eu ainda sequer comi alguma coisa. Vim diretamente do estúdio e não senti vontade nenhuma de almoçar no início da tarde, e neste momento me arrependo de ter feito tal escolha. Meu estômago dói de fome, a sorte que não chegou a roncar durante o atendimento.

— Gaara? — chamou Fuu com um pequeno sorriso. Olhei para ela — Boa sorte para essa semana, espero que ocorra tudo bem! Sei que vocês vão arrebentar nesse sábado!

— Agradecemos o apoio e o carinho, Fuu. — sorri de volta. Ela deu uma piscadela.

— Estarei na primeira fila lá no show!

— Te vejo lá então!

Acenei para Fuu e ela retribuiu, então andei até o corredor. Me despedi também de dois auxiliares de serviços gerais que encontrei no caminho e parei em frente aos elevadores. Dentro da cabine do que desceria, havia uma moça teclando os botões: é a prima de Neji e ex-namorada de Naruto. Se eu não me engano, o seu nome é Hinata.

Embora nunca tenha conversado decentemente com ela, sei que é uma garota educada e bondosa — e, convenhamos, de um gosto bem peculiar, a julgar por sua antiga paixão em Naruto —, mas que sofre bastante devido aos problemas com o próprio pai. Ouvi dizer que o senhor Hyuuga é tenebroso, foi ele quem expulsou Neji de casa. Não tenho a menor dúvida de que ela esteja frequentando uma clínica psicológica por causa dele.

Entrei no elevador, e notei que a senhorita Hyuuga também iria para o térreo. Quando parei ao seu lado, ela estremeceu um pouco e tentava desviar a visão de mim. Não sei se tomou um susto com a minha presença repentina ou se eu a incomodo por alguma razão. Será que sou tão repulsivo assim? De qualquer maneira, tentei sorrir e a cumprimentei enquanto as portas do elevador se fechavam:

— Boa noite.

— B-Boa noite... — saudou timidamente. Ela devolveu o sorriso, mesmo que mínimo, e me espiou através do canto dos olhos. Senti um frio na barriga quando começamos a descer.

Geralmente eu não me importo com os olhares tortos que costumo receber na rua, contudo, me indignei ao deduzir que a senhorita Hyuuga poderia estar desconfortável com a minha pessoa. Com a cabeça baixa, ela mantinha o máximo de distância possível e apertava as alças de sua bolsa, como se eu fosse um marginal prestes a assaltá-la. Nunca a desrespeitei ou coisa semelhante. Por que o desconforto, afinal? Será que são as minhas tatuagens? Tinha arregaçado as mangas da jaqueta, logo as tatuagens estavam um pouco à mostra. Apesar de achar que é um tabu que ainda necessita ser quebrado no país, decidi esticar as mangas a fim de ver se de fato a senhorita Hyuuga nutre o preconceito com as tattos, e puxei conversa com naturalidade:

— Você vai para o show da Fire Will?

— Sim — ela se virou para mim, sorridente —, não perderia essa oportunidade por nada!

— Que bom, contamos com a sua presença. — afirmei, escondendo as mãos nos bolsos da calça. 

Hm, agora olhou pra mim.

Provavelmente eram as tatuagens mesmo.

— Obrigada, Gaara. — subitamente suas bochechas ganharam um leve rubor e seu olhar se esquivou de mim por alguns segundos — Gosto muito do seu trabalho...

— Fico agradecido. Seu nome é Hinata, certo?

— Sim.

— Neji sente sua falta.

— Eu também sinto a dele. — admitiu com a voz tornando-se melancólica e desfez o sorriso. O elevador se estagnou no térreo do edifício e as portas se abriram.

— Faz uma visita ao seu primo assim que puder, ele vai gostar. — sugeri, saindo da cabine junto com Hinata.

— Com certeza, assim que puder eu vou.

Um tanto amolado por causa da forte iluminação do saguão e da poluição sonora, uma mistura de falatório e barulhos de carros, estreitei os olhos. Observei o movimento da rua por meio do portal de vidro transparente e verifiquei se a minha moto continuava estacionada em frente ao prédio. Está sim. De acordo com o pouco conhecimento que tenho sobre a vida de Hinata, ela estuda à noite no Centro Universitário de Konoha. A faculdade não se localiza muito longe daqui, portanto resolvi oferecer uma carona para a senhorita Hyuuga. O céu gradativamente é pincelado por tons de púrpura e rosa claro, indicando que o escuro da noite está por vir. Mesmo que haja policiamento nas ruas, este horário costuma ser perigoso.

— Está indo para a faculdade, Hinata? — perguntei, o que a fez parar de caminhar, e ficamos frente à frente.

— Estou sim!

— Quer uma carona?

— O-Obrigada, Gaara, mas não precisa, não quero te incomodar... — ela corou outra vez e sorriu de um jeito acanhado. Achei graça daquilo — o caminho é curtinho.

— Não será incômodo nenhum.

— Está bem, obrigada.

Ao que parece ou ela não é preconceituosa em relação às tatuagens ou está cedendo para que eu não perceba. Já havia reparado que a timidez é um dos traços de sua personalidade, porém, não sei se era este o motivo de tamanho constrangimento quando estávamos no elevador. De todo modo, fomos rumo à saída, e o cheiro de shampoo de lavanda pairava no ar conforme Hinata andava ao meu lado. Lancei uma rápida olhadela para ela, seus passos tentando alcançar os meus.

Qual é o seu problema, Hinata?

Seu primo sabe que você está aqui?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

OBS.: *Frontman = homem que está à frente de uma banda, geralmente sendo o vocalista;
*Seppuku (ou haraquíri, como é mais conhecido no ocidente) = ritual entre samurais no qual exigia o suicídio (o guerreiro abria o próprio ventre com uma faca), pois deveriam escolher a própria morte ao invés do fracasso.

Isso é tudo, pessoal. No próximo capítulo, já em andamento, veremos no que essa carona vai resultar! Se liguem, porque muita coisa ainda vai acontecer!
Desde já agradeço a atenção de todos, e espero que estejam curtindo a fanfic! Beijos, até mais. ♥



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Pieces: Em Pedaços" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.