Pieces: Em Pedaços escrita por Moonkiss


Capítulo 6
Rótulos


Notas iniciais do capítulo

Olá, meus bebês, tudo bem? Espero que sim!
Hoje veremos no que resultou a carona do capítulo anterior.
Boa leitura! ♥



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Capítulo VI – Rótulos

Escrito por @Moonkiss

 

❝E eles dizem: eu queria ser como as crianças descoladas, porque todas as crianças descoladas parecem se encaixar.❞

— Cool Kids, Echosmith.

 

• • •

Hinata

 

 

Gaara demonstra uma independência que eu jamais vi em outra pessoa. Às vezes parece ser um homem de ferro, que não possui um coração feito de carne. Ele é estranho, mas, de algum modo inexplicável, isto me chama a atenção positivamente. Para uns, Gaara provoca o receio, para mim, a curiosidade. Fico curiosa porque tudo nele irradia rebeldia, em cada gesto ou palavra seu espírito selvagem sempre transparece, contudo, a visão deste Gaara indomável se degenera quando me lembro de suas composições. E, sobretudo, quando me lembro do momento em que o vi dentro da clínica de Itachi Uchiha. Como ele pode ser tão bom em esconder os próprios sentimentos? E por que o faz? Não seria mais simples mostrar quem realmente ele é, o rapaz triste e solitário que fala sobre as suas dores nas canções da Fire Will? Por que Gaara decidiu criar esta armadura?

A passos firmes, ele caminhou até às portas de vidro e abriu uma para me conceder a passagem. Agradeci e saí, e fez o mesmo logo depois. Para a minha surpresa e angústia, Gaara se direcionou a uma motocicleta de cor vermelha enquanto aparentava catar as chaves em um dos bolsos da calça jeans. Ai, não, motocicleta não! Enfim as encontrou e usou para destravar o baú, em seguida retirando de lá dois capacetes. Gaara me entregou um e, assim que travou o compartimento outra vez, engoli seco e perguntei com relutância:

— Eu pensei que você estava de carro... — ele se virou para mim ao passo que colocava o capacete. Seu olhar sério fez o meu rosto queimar de repente — m-me desculpa, não estou querendo ser ingrata, é que...

— Tudo bem. — disse, cortando a minha fala, já com o capacete preso. A voz de Gaara estava sisuda, porém, não ao ponto de transmitir grosseria — Você nunca andou de moto?

— Não...

— Bom, para tudo se tem uma primeira vez. Mas vou entender se não quiser experimentar.

— E-Eu vou sim! Só me ajuda a colocar o capacete, por favor, Gaara.

Não queria parecer ingrata ou exigente, afinal, ele se ofereceu para me acompanhar por pura gentileza, entretanto, em outras situações eu nunca aceitaria sentar no banco de uma motocicleta. Além de haver a possibilidade de o meu pai me matar se visse a cena, é um meio de transporte perigoso e sinto arrepios apenas em imaginar aquela adrenalina medonha. A minha vestimenta sequer está apropriada para isto. Como posso fazer com que a barra do vestido não se levante conforme bate o vento? E a coragem que devo arranjar para conseguir segurar a cintura de Gaara sem desmaiar de vergonha?

Sem delongas, ele pacientemente me ensinou a colocar o capacete. Tê-lo tão próximo a mim destaca duas sensações: a primeira é boa, uma alegria de fã ao compartilhar o mesmo espaço que o seu ídolo, já a segunda não sei definir com exatidão. De certo modo Gaara me deixa nervosa e não faço ideia do porquê. É provável que seja pela aparência e pela postura intimidadora dele.

— Quer ajuda também para subir na garupa? — indagou, verificando se eu fechei a fivela de forma correta. Assenti.

— Sim, por favor.

Gaara estendeu a mão, grande e pálida, no intuito de me dar apoio para que eu subisse, e atendi a sua ajuda. Seu toque é cálido. Pisei na pedaleira e montei na garupa com um pouco de dificuldade, porém, tudo ocorreu bem no final das contas. Para evitar que o vestido voasse ao longo do percurso, pus a bolsa sobre o colo. Gaara subiu no veículo também, e, ao conectar e girar a chave na ignição, senti os meus batimentos cardíacos elevarem-se numa cadência afoita. Comecei a suar frio, a garganta repentinamente ficou seca.

Calma, calma, Hinata, Gaara não é irresponsável...

Ou será que é?!

Quando acionou a embreagem e o freio dianteiro e pressionou o botão de ignição, o som arrepiante da partida fez o meu estômago embrulhar. SOCORRO, MÃE, ME PROTEJA! Num ato de desespero, abracei a cintura de Gaara e fechei os olhos, como se a minha vida fosse depender daquilo. Ele estremeceu um pouco, bem provável que tenha se assustado. E não é para menos: nossos corpos estão tão próximos que posso sentir a sua respiração e a essência amadeirada de seu perfume. Subitamente o sangue que circulava pelas veias sanguíneas do meu rosto esquentou de tal maneira que tive a sensação de estar embaixo de um Sol bem calorento. O capacete no mesmo segundo pareceu um instrumento de tortura de tão sufocante. Envergonhada, abri os olhos e tentei puxar assunto sem gaguejar:

— Que moto é essa?

— É uma Kawasaki Ninja 300. — respondeu sem rodeios — Pronta?

— S-Sim!

Enfim Gaara abaixou a viseira do capacete junto comigo e deu a partida. DEUS, ORIENTE ESSE MENINO! Meu coração acelerou tanto quanto os carros que passavam rapidamente a nossa frente, pude senti-lo quase saltar para fora do peito. Uma misteriosa corrente de ar percorreu a minha espinha dorsal, o que causou um calafrio. Por sorte o peso da bolsa foi o suficiente para que a barra do vestido permanecesse intacta assim que íamos contra o vento, mas os meus cabelos esvoaçavam de um jeito tão gostoso que por uns instantes me esqueci do medo. Acho que jamais embarquei num mar de adrenalina como agora.

Após uns dois minutos, chegamos ao Centro Universitário de Konoha. Embora estivesse receosa, o trajeto foi tranquilo, e, com um sentimento de culpa por ter cogitado tal ideia, constatei que Gaara não é um irresponsável. Ele respeitou as leis de trânsito e conduziu a motocicleta em uma velocidade média. A todo tempo o meu corpo foi tomado por uma energia eletrizante, quase prazerosa. Se eu não fosse tão medrosa, diria que o passeio foi agradável. Senti-me segura, pois Gaara é um ótimo motociclista.

— E então, foi tão ruim assim? — falou, me ajudando a descer do veículo. Não vi sua expressão devido ao capacete, mas pude notar uma pontada de humor em sua voz. Ri, já com os pés no chão.

— Não, está tudo bem. Você é responsável no trânsito. — retirei o capacete e entreguei para ele — Muito obrigada pela carona, Gaara.

— Obrigado, e não há de quê. Boa aula.

Fiz uma breve mesura em sinal de gratidão e andei rumo à escadaria. Alguns alunos espalhados pelos degraus e pela entrada nos observavam e trocavam cochichos. Desconfortável, abaixei a cabeça enquanto subia. É normal que façam fofocas sobre o que acabaram de presenciar, porque ou eu vou à faculdade sozinha ou Neji, que todos sabem que é o meu primo, me leva quando lhe é possível. Não dou importância às opiniões alheias, e sim aos olhares. Detesto ser o centro das atenções, e creio que Gaara também. Me desculpa por isso, Gaara...

Ignorando a todos, entrei no prédio. Não ouvi o barulho da motocicleta em momento nenhum, então olhei para trás. Como num passe de mágica, Gaara tinha sumido. Ainda que estivesse envolta por pensamentos, tenho certeza de que não houve um som que denunciasse a sua partida. Que estranho! De qualquer forma, comecei a atravessar o corredor.

Ultimamente vir para a faculdade está sendo desgastante. Toda vez em que estou na sala de aula, além de não conseguir me concentrar por inteiro nos estudos, tenho vontade de sair correndo sem destino algum. Mesmo com a depressão, as coisas seriam bastante diferentes se eu estivesse estudando sobre Artes Visuais, que é o que realmente desejo seguir carreira. Suspirosa, peguei o celular dentro da bolsa para verificar as horas. Na barra de notificações, havia mensagens do grupo do curso de Administração. Cliquei e comecei a lê-las:

 

Fuu

Boa noite, gente! 18:13

Para quem não viu a mensagem do professor Kakashi Hatake (de Educação Corporativa) no grupo do Facebook, ele vai faltar hoje devido a problemas pessoais. 18:13

Vou mandar o print! 18:14

 

Baixei a imagem e confirmei a informação. A disciplina do senhor Hatake seria a minha primeira aula da noite. Ah, eu vim cedo à toa! Em partes foi bom o cancelamento da aula, já que a minha mente não está nada disposta. Parei em um canto do corredor e digitei um agradecimento para Fuu, pensando no que iria fazer neste meio-tempo. São nestas ocasiões em que eu mais sinto falta de uma amizade. Guardei o telefone e resolvi comer algum doce e ler um pouco.

Passei em frente à cantina e dei uma olhadela para a vitrine. Fiz um bico insatisfeito, não há nada que eu goste em especial. A minha opção mais vantajosa é o Restaurante Ichiraku, que fica aqui ao lado do prédio. Apertei as alças da bolsa e caminhei até a saída.

Já na porta do estabelecimento, me surpreendi ao ver a motocicleta de Gaara  estacionada em uma das vagas exclusivas para o veículo. Ou, se não é a dele, é muito parecida. Acredito que seja uma parecida, porque seria coincidência demais encontrar Gaara mais de uma vez no dia. Considerar a probabilidade de vê-lo novamente gerou um friozinho na barriga. Respirei e expirei, entrando no restaurante.

Cumprimentei Ayame, a recepcionista e filha do proprietário, que me avisou sobre todas as mesas estarem ocupadas. Sendo típico daqui, o cheiro de comida boa impregnava o local e o aparelho de som tocava diversas músicas. Mas infelizmente sou obrigada a esperar em pé alguém ir embora. Decidi aguardar por cinco minutos, se uma mesa não desocupar dentro deste prazo, vou procurar outro lugar para comer.

Observei a área, e logo uma figura conhecida se destacou entre as demais: é Gaara. O friozinho na barriga surgiu outra vez. Ai, meu Deus! Estava sozinho à mesa, com os braços cruzados e os olhos vagando pelo nada. Por admirá-lo e por me despertar a curiosidade, passar um pouco mais de tempo com ele seria interessante, no entanto, já o perturbei hoje, então fingi que não o vira. Sequer seria capaz de arrumar um assunto para dialogarmos. Eu sou tímida e ele apático, não é uma combinação conveniente. Contudo, meus planos foram por água abaixo quando Gaara reparou na minha presença.

Seu rosto está inexpressivo, mas ergueu minimamente a cabeça e os ombros, como se me questionasse o que está acontecendo. Para respondê-lo, fitei todo o espaço, indicando que não havia lugar para mim. Ele fez um gesto com a mão, chamando-me para sentar. Hesitei um pouco, mas imaginei por quantos minutos continuaria ali. Sem alternativas, caminhei até onde Gaara estava, próximo à janela. Comprimi os lábios e tentei não expor a minha ansiedade.

— Por que não veio antes? — perguntou, apoiando os cotovelos na mesa. Puxei a cadeira e me sentei, colocando a bolsa sobre o colo.

— Eu não queria te incomodar de novo. Mas agradeço o convite.

— Não é nenhum incômodo. — ele me ofereceu o cardápio e eu apanhei — Desistiu de assistir aula?

— Oh, não mesmo! — dei uma pequena risada e abri o menu a fim de buscar a categoria de sobremesas — Meu professor não virá hoje, então resolvi comer algum doce.

— Entendo, eu vim porque estou faminto. Não almocei hoje e duvido que já estejam preparando o jantar em casa. — afirmou, juntando as próprias mãos. Um garçom jovem e novato, segurando um bloco de notas e uma caneta, veio em nossa direção. Parece simpático.

— Boa noite, sejam bem-vindos ao Ichiraku! — o saudamos em voz única, e ele, sorridente, se aprontou para anotar os pedidos — O que vão pedir?

— Hinata? — Gaara me chamou, virando-se para mim. Li rapidamente as opções e fechei o cardápio, pondo-o de volta na mesa.

— Quero uns três rolinhos de canela e um cappuccino cremoso, por favor.

— Moela de frango com cebola e shoyu, por favor. Para beber pode me trazer um Melon Soda*.

— Querem uma água enquanto esperam? — questionou depois de escrever. Balançamos a cabeça em sinal negativo — Com licença.

O garçom saiu, e então estar frente a frente com Gaara voltou a ser desesperador. Gostaria de saber como iniciar uma conversa com ele, de conhecer melhor o rapaz que, aparentemente, me entende como ninguém. Dizem que, para ver o eu interior de um determinado artista, basta analisar as suas obras. Mas algo em mim sempre desejou analisar mais além das suas composições, desde que ouvi pela primeira vez uma música da banda. Talvez isto se deva ao fato de que eu de algum jeito me identifico com ele. A vontade é de perguntar quais são suas paixões, seus hobbies, seus sonhos, suas canções prediletas e entre outras coisas, todavia prefiro não ser invasiva ou dar uma impressão de fã fanática.

— Quem costuma cozinhar lá? — retornei ao assunto, pondo uma mecha de cabelo para trás da orelha — Ou todos fazem a comida?

— Kiba e eu, o restante é péssimo na cozinha. Seu ex, por exemplo, faz um arroz empapado que chega a dar náuseas só de olhar. — explicou, torcendo o nariz e abrindo um sorriso bem miúdo. Dei uma pequena gargalhada.

— O que você sabe fazer?

— Várias coisas, menos doces.

— Eu sei fazer doces. Todo mundo gosta quando faço esses rolinhos de canela, é o meu doce preferido.

— Imagino que fiquem bons mesmo, mas eu prefiro comida salgada. — ele se recostou na cadeira e conteve um suspiro. Aparenta estar cansado. Assenti a fim de mostrar que ingeri a informação.

— Ah, sim. Você gosta de cozinhar?

— Acho interessante, mas não é algo que eu goste tanto assim. O caso é que eu aprendi a me virar desde cedo. E você?

— Eu gosto. Via a minha mãe cozinhando com tanto afinco que fiquei igual a ela. — disse, sorrindo. Meu olhar, entretanto, voou para longe em virtude da nostalgia. Lembrei-me do rosto de minha mãe.

— Acho que aconteceu o mesmo com a minha irmã. — Gaara articulou o mesmo semblante melancólico e nostálgico — Até os temperos que a nossa mãe usava ela conseguia reproduzir na própria comida.

— Não sabia que tinha uma irmã...

— Tenho sim, ou tinha, não sei. O nome dela era Temari.

De repente ele desalinhou o sorriso, e o seu espírito foi guiado para uma dimensão mais longe ainda. Gaara nitidamente se perdia nas próprias lembranças. Se antes a dor de vê-lo desgostoso era grande, agora é imensa, porque eu sei bem como as memórias podem ferir. Não tenho quase nenhum conhecimento sobre o passado dele; Naruto, enquanto namorávamos, contou somente que seu padrinho Jiraiya adotou Gaara depois de encontrá-lo nas ruas, e a partir daí os três viveram juntos. Sequer sabia que Gaara tinha uma irmã. Mordi o lábio, aflita por ele. O que aconteceu com esse garoto?

O mesmo garçom que nos atendeu retornou com o meu pedido, e a sua presença retirou Gaara dos próprios devaneios. Repousou com delicadeza o prato de rolinhos de canela e a caneca de cappuccino cremoso na mesa, e, após agradecê-lo, peguei um guardanapo para comer. Estão quentinhos como se tivessem saído do forno há poucos minutos. Ofereci para Gaara, mas ele não quis. Apesar de apreciar aquele sabor delicioso, tentei me concentrar no diálogo.

— Sua irmã é igual a você? — indaguei, em seguida mordendo outro pedaço. Gaara umedeceu os lábios e cruzou os braços.

— Sorte a dela que não. Temari se parecia com a mamãe, tinha os olhos azuis e os traços parecidos com os dela, mas era loira como o nosso tio. Ela era muito bonita, apesar do temperamento forte. — forçou um riso, sem ceder o ar tristonho. A visão, outrora para o colo, voltou-se para mim — Você também tem uma irmã, certo?

— Sim, a Hanabi. Ela é uma versão feminina do Neji.

— Ele fala muito de vocês. — revelou com um pouco de ânimo, dissipando gradativamente aquela tristeza. Mastiguei mais um pedaço do rolinho — Me lembro de uma vez em que ele contou que é uma tradição na família Hyuuga aprender a tocar pelo menos um instrumento. O que você toca?

— É verdade, eu toco flauta, piano e violino. E você, sabe tocar algo além de violão e guitarra?

— Sei tocar baixo, bateria e um pouco de piano também. Adoro piano. Gostaria de te ouvir tocar um dia. — ele sorriu e me observou de uma maneira tão profunda que quase me fez engasgar com o último pedaço. A revelação me alegrou.

— Sério? — Gaara assentiu sem desviar a atenção de mim. Minhas bochechas ferveram e tentei controlar um sorriso bobo. Para disfarçar, beberiquei um gole do cappuccino — B-Bem, o engraçado é que você não parece gostar de piano...

— Por que não? Só por causa das minhas roupas e das minhas tatuagens? — ele de súbito enrugou a testa e seu tom de voz soou desafiador. A áurea de Gaara está hostil. Estreitei ligeiramente os olhos.

— Um pouquinho... não que eu esteja te julgando, já que mal te conheço.

— Eu posso te fazer uma pergunta, Hinata? — Gaara desencostou da cadeira e escorou os antebraços na mesa para me encarar. Sua seriedade surte pavor em mim. Engoli seco.

— Sim, Gaara.

— Você se incomoda com pessoas tatuadas? — interrogou, severo. Ele não pisca um segundo sequer.

Ele está me testando.

A que ponto ele quer chegar?

— Claro que não! — de sobrancelhas franzidas, elevei um pouco a voz. Senti raiva — Tatuagens não definem o caráter de ninguém!

— Não foi o que pareceu quando estávamos naquele elevador. — Gaara retribuiu o tom. Embora não tenha sido um grito, suas palavras ecoaram como um tapa — Você só olhou para mim depois de eu ter escondido as minhas tatuagens. Antes você agiu como se eu fosse te roubar a qualquer momento.

Eu, do fundo do meu coração, não me sinto incomodada com tatuagens como a maioria dos japoneses, sobretudo a faixa da terceira idade. Na família Hyuuga é estritamente proibido aderir à arte corporal e somos instruídos a não termos quaisquer tipos de contato com um indivíduo tatuado, pois, segundo os mais velhos, todas as pessoas tatuadas possuem envolvimento com a máfia. Neji e eu não obedecemos esta regra, visto que é um argumento baseado em preconceito. Portanto, fui franca na minha afirmação: tatuagens não definem o caráter de ninguém. Contudo, além de irritação, pude perceber a decepção nos olhos de Gaara. Eu não o culpo por se sentir assim.

Sobre a minha reação diante dele no elevador, a razão é inteiramente simples: fora o poder de Gaara em me deixar exasperada, fico agoniada por dividir o mesmo espaço com um único ser do sexo oposto, abro uma exceção apenas para meu pai e meu primo. Há alguns anos esta exceção também era aberta a Naruto, porque eu estava apaixonada, mas hoje em dia nem com ele sinto-me segura. Até com os meus ex-melhores amigos, Kiba e Shino, sou atordoada por este desconforto, não foi à toa que cortei laços com eles. Mesmo que não tenha convivência com Gaara, sei bem que é um rapaz de boa índole, porém, infelizmente esta reação já faz parte do meu instinto. Encabulada, pus a palma da mão sobre a têmpora.

— Oh, Gaara, me desculpa por ter passado essa impressão! Não foi proposital! — lamentei, dissolvendo o aborrecimento. Suspirei, sem forças para olhá-lo — Eu só fico desconcertada na companhia de um homem com quem não tenho afinidade, e também só olhei para você porque começamos a conversar... enfim, mil desculpas.

Gaara, ainda circunspecto, examinava através do olhar cada ação minha. Sequer permitiu ser interrompido quando o garçom chegou com o seu jantar, um prato bem generoso de moela e uma lata de Melon Soda com um copo de vidro. Somente agradeceu e prosseguiu com a sua análise. Juntei todo autocontrole que existe em mim e me aquietei, continuando a comer. Aquela sensação dos voos de dezenas de borboletas dentro do meu estômago me invadiu. Por fim ele inclinou a cabeça para o lado de forma tênue e abrandou o próprio aspecto. Puxou uma respiração tão funda que pude notar seu tórax inflar debaixo da camisa grená.

— Acho que estou tão acostumado com os olhares reprovadores que acabo vendo coisa onde não tem. Quem deve desculpas sou eu, tirei conclusões precipitadas de você.

— Só por causa dos meus sapatos de grife e do sobrenome que carrego? — ralhei e levantei uma sobrancelha, após engolir um pedaço de rolinho. Gaara, surpreendido, entreabriu os lábios e ergueu o cenho.

Touché. — um dos cantos de sua boca esticou para cima, formando um meio sorriso. Ele pegou o par de hashis ao lado do prato e os tirou do envelope — É engraçado como rotulamos as pessoas, não?

— Sim. E é cansativo ser rotulado.

— Eu sei. — começou a comer. Enquanto eu bebia mais um gole do cappuccino, Gaara engoliu a comida — Quando era criança, queria ser exatamente igual às outras pessoas. Mas esses rótulos me impediam de fazer amigos, de me encaixar em um grupo.

— Tive um ou outro amigo durante a infância, mas compreendo bem no que diz respeito aos rótulos. — peguei mais um rolinho com o uso do guardanapo. Gaara também comia, mas prestava atenção em mim — Sobre se encaixar em um grupo, até hoje desejo saber como conseguir tal proeza.

Dentro de mim há uma pequena parcela que sente inveja de pessoas extrovertidas. Sempre almejei ter a facilidade de papear com os outros, chegar em uma festa e ir dançar como se isto não fosse um sacrifício, ter contato visual com alguém por mais de dez segundos sem inibições, falar em público sem ter um desmaio ou ser corajosa o bastante para exprimir os meus sentimentos. Às vezes me sinto desinteressante. Por mais que já tenha tentado entrar em um grupo, algo sempre me impede. Eu sou insegura, e a minha insegurança nestas circunstâncias sussurra um “Seus esforços não vão valer a pena” no meu ouvido. Ao menos eu já estou trabalhando este detalhe com o senhor Itachi; a uma certa altura da consulta de hoje, ele me disse para evitar comparações, posto que todos são diferentes uns dos outros, recordar-me da impossibilidade de alcançar a perfeição e tentar reconhecer os meus pontos fracos e corrigi-los — ainda não tenho uma estratégia em mente, no entanto, já sei por qual caminho devo trilhar.

Quanto aos rótulos, ser introvertida e ao mesmo tempo nascer em uma família de elite não é uma junção muito favorável. Por não saber entrar em um círculo de amizades, meus antigos colegas de classe tiravam conclusões precipitadas de mim, por exemplo, ser rotulada de “garota esnobe”, “nerd estranha”, “riquinha metida” ou qualquer ideia que lhes viessem à cabeça era um dos modos como costumavam me tratar. E aquele tratamento também me impedia de fazer novos amigos.

Gaara me observou por alguns segundos, e o seu rosto é uma incógnita. Parece absorver a última frase que proferi. Há algo nos olhos dele que os tornam uma profundidade obscura, tal qual um mar de águas revoltas, e, apesar de me causarem assombro, de vez em quando me sinto tentada a mergulhar neles. É um pensamento esquisito, entretanto, não posso negá-lo. Terminei de comer e bebi o cappuccino com cautela devido à quentura. No som do restaurante toca Cool Kids, uma das minhas favoritas.

— Estamos no mesmo barco. — alegou, em seguida comendo. Ainda mantemos olho no olho — Gosta dessa música?

— Ah, sim, por quê?

— Porque você está dançando. — ele formulou um sorriso um pouco mais aberto do que de costume. Corei de repente ao cair da ficha, estava empolgada com a canção. Ri pela vergonha.

— Perdão, não percebi...

— Eu também gosto dela. — falou, conduzindo um pedaço de moela à boca. Após a mastigação, Gaara rompeu o silêncio — Todos os Hyuugas têm os olhos assim?

— Sim, é uma raridade. A maioria das pessoas quando nos veem acham que nós temos algum problema de visão. — respondi e acabei com a última gota da bebida. Aquela intensidade se repetiu no olhar dele.

— Não duvido. Mas os seus são diferentes dos de seu primo.

— Por quê? São cinzas, todo mundo diz que os nossos olhos são iguais.

— Não. — rebateu, pausando a refeição para abrir a latinha de Melon Soda. Pus a caneca de porcelana sobre a mesa — Os seus, se forem expostos à luz, ganham um tom de lavanda.

Ele... ele acertou!

Só a minha família sabe distinguir!

— E os seus quase não dá para distinguir se são azuis ou verdes, só se reparar muito bem. São de um azul turquesa bem clarinho. — disse, acanhada, afastando o cabelo do rosto. Despejando a metade do refrigerante no copo, Gaara projetou novamente um meio sorriso.

— As únicas pessoas que já perceberam isso foram a minha mãe e a Temari... — deu uma olhada intensiva para mim — até agora.

Sorri para Gaara ao passo que recusava o refrigerante quando ele me estendeu a lata. Exceto os meus familiares, é a primeira pessoa que acerta a cor das minhas íris. Eu sou a única Hyuuga com os olhos nesta tonalidade de lavanda. Concluir que Gaara é um ótimo observador atiçou ainda mais a minha curiosidade, e, para alguém que é tímida e alguém que é apático, até acho que conversamos bem. Ao menos de uma coisa eu tenho certeza agora: ele não é tão estranho assim.

 

• • •

Gaara

 

Estacionei a moto na garagem e peguei os capacetes dentro do baú. Quando entrei em casa, fui recepcionado por um Akamaru energético, que tinha as patas totalmente sujas de lama. Aos berros, Naruto vinha limpando com um pano todas as pegadas que o cachorro registrou no chão de azulejo branco. Kiba e ele iniciaram uma discussão, e, sem pretensão de me envolver na briga, apenas acariciei o pelo de Akamaru e tomei rumo ao segundo andar. Como havia deduzido, ninguém preparou o jantar, pois vi Neji, Sasuke e Shikamaru sentados no sofá comendo pizza.

— Cheguei. — anunciei, subindo as escadas. Os rapazes responderam juntos:

— Oi, Gaara. — sem atrapalhar a sua concentração no celular, Shikamaru perguntou — Quer pizza?

— Não, obrigado.

Já no meu quarto, deixei as chaves e a carteira em cima da cômoda e pendurei os capacetes no suporte preso na parede. Exausto, adentrei o banheiro e escovei os dentes — xinguei ao lembrar que não tem mais espelho, visto que eu mesmo o quebrei. Enquanto tirava a jaqueta e a camisa para tomar um banho, visualizei a imagem de Hinata ao fitar de relance as minhas tatuagens. Ri interiormente.

Depois de finalizar a minha refeição, continuamos conversando até o horário da próxima aula que ela teria. Paguei as duas contas a contragosto dela, então sugeri que a gorjeta do garçom ficasse a sua parte. Hinata, embora não tenhamos intimidade, é muito mais do que parece; pude ver em seus olhos o quanto estava sendo sincera ao declarar que tatuagens não definem o caráter de ninguém. Além da franqueza, vi também pureza e dor neles. Em alguns momentos, aliás, tive a sensação de que algo naqueles olhos a faz ser igual a mim. Talvez seja porque somos rotulados pelas pessoas e nos sentimos deslocados diante da sociedade. Mas sinto que é outra coisa bem maior do que isto, e gostaria de descobrir do que se trata.

 


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Notas finais do capítulo

OBS.: *Melon Soda = refrigerante coreano com sabor de melão, bastante popular no Japão.

Isso é tudo, pessoal. No próximo capítulo: chegou o dia do show! Fiquem de olho no que vai acontecer!
Espero que estejam curtindo a história, agradeço desde já a atenção de cada um. Beijos, amores, até mais. ♥



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