A Face Oculta Da Lua escrita por Lady Salieri, Nami Otohime


Capítulo 8
Capítulo 7: O dromedário de fogo (I)


Notas iniciais do capítulo

Entraram todos no templo. Rei fez seu ritual característico e lançou a pastilha ao fogo. No mesmo momento o fogo explodiu alto em uma torrente de labaredas que desenharam o rosto de uma mulher cuja fisionomia lembrava vagamente a figura de Serenity. Desenhado o rosto, a forma se redesenhou em uma cabeça de dromedário* avançando, com a boca aberta, diretamente sobre eles que, caindo no chão, tentaram proteger o rosto daquela imagem assustadora.



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Duas semanas se passaram e as coisas quase voltaram ao normal para Lyene. Takeo era uma excelente companhia, assim como o era no Milênio de Prata, ainda que persistisse a dificuldade em manobrar a proximidade de que dispunham, ali, longe de todas as preocupações que perpassaram a cabeça dela no passado longínquo. Ele parecia, aos seus olhos, ter superado tudo muito tranquilamente em sua ânsia costumeira de engolir o presente com tudo o que ele tinha por oferecer. Havia se adaptado muito bem à vida na Terra, muito mais que ela, obviamente. Deveria seguir o exemplo do amigo. Passava os dias ou preocupada pelo silêncio de Kitty, ou tentando recolher dados, ou investigando pistas... Temia pelo tempo de paz que estava vivendo... O amigo fazia de tudo para distraí-la, chegando, às vezes, fazer determinados tipos de passeios que ela não sabia em quais proposições ele se baseara para concluir que ela gostaria de semelhante disparate, mas por alguma razão absurda, terminava sempre se divertindo.


Takeo se sentia estranho durante essa curta convivência com a amiga, entre feliz e triste, resignado e curioso. Jamais pensara que seria possível presenciar Lyene sorrir tão frequentemente e comentar de maneira despreocupada sobre determinadas situações, e de como era engraçado ela mesma dar-se conta disso em seguida e retirar-se no seu silêncio conhecido, porém que se desfazia tão logo aparecia outra coisa, sombreando aquilo que lhe turvava a mente... Disso falaram no dia da grande guerra, e nisso estava incluído o medo de ambos ali, naquele presente, descobrindo-se e concluindo coisas que poderiam terminar, de certo modo, manchando o que já sentiam uns pelos outros... Malditos assuntos inacabados, precisava tomar coragem para falar com ela.

Todavia, no começo da terceira semana, por volta das seis horas da tarde, Lyene abriu a porta e viu Takeo andando de lá pra cá:

– Isso tudo era pra me esperar?

Ele parou, olhou para ela:

– Ah, princesa, que bom que você chegou!

Olhou o relógio:

– Espera, você não sai por volta das 4horas?

Lyene arqueou as sobrancelhas em sinal de desprezo:

– Saio.

Ele colocou a mão na cintura, contraiu o cenho:

– E isso são horas de chegar?

Lyene se sentou nas almofadas:

– Primeiro: pelo que é mais sagrado, não me chama de princesa, soa ridículo... E, segundo: Vai ser preciso dizer que você não é a minha mãe?

Ele voltou a andar:

– Desculpa, é que eu estou incomodado com uma coisa. Estava te esperando para que investigássemos.

Lyene suspirou:

– É, isso não ia durar mesmo pra sempre... Fale sobre o que te incomoda.

– Bom, vi uns amigos meus da faculdade com um aspecto muito estranho. Fui conversar com eles e me ofereceram umas pastilhas, disseram que é pra animar.

– Anfetamina?

Takeo parou outra vez, de olhos arregalados, e quase engasgou com o próprio ar. Que tipo de pessoa ela estava pensando que ele era, para andar com pessoas de caráter ambíguo?

– Não, Lyene, não seja louca! – Exclamou, voltando a circular a sala outra vez.

– Pois a fama dos universitários não é que seja das melhores, Takeo...

– Não é nada disso, eu SOU universitário e NÃO sou viciado. E nem ando com eles. E você nem deixou eu te contar a parte mais estranha...

– O quê? Eles te ofereceram um pozinho branco que te faz voar pra Terra do Nunca... – Lyene nem sequer falava sério, por estar extremamente irritada com Takeo andando de lá pra cá insistentemente. Isso não a ajudava a pensar sobre o tema, muito pelo contrário, deixava-a enjoada.

– Lyene! Você está me irritando de verdade! Não, o mais estranho é que eu juro que eu vi aquelas pastilhas brilharem. Tenho certeza de que Kitty está no meio disso.

Ela assentiu mais uma vez com a cabeça:

– E você vai me convencer da sua tese furando um buraco na sala. Ótimo método.

Ele parou, sorriu, depois voltou a andar mais uma vez:

– Estou incomodado, é como se um som agudo ficasse arranhando na minha cabeça.

A veia da têmpora de Lyene cavalgava:

– Bom, é seu dom, disso não há dúvidas... SE esse ritual irritante que você está fazendo desde que eu cheguei não está te atrapalhando a pensar. Você tem certeza de que seus amigos são de confiança, que eles não são drogados...

Takeo fechou os punhos, absurdamente nervoso pelo raciocínio distorcido de Lyene, mesmo sobre si próprio, que fazia o som dentro de sua cabeça mais agudo e mais áspero:

– Pára de falar isso!!! Claro que eu tenho certeza!!!

Lyene levantou-se num reflexo, fazendo o mesmo gesto que ele, de maneira a desafiá-lo:

– E você, para de ficar andando pra lá e pra cá porque está me deixando irritada!!!

Ela cercou-o e o empurrou para que ele caísse nas almofadas, entretanto ele agarrou os braços dela e ela foi junto com ele. Lyene levantou o rosto e encontrou os olhos de Takeo. As mãos dele escorregaram para sua cintura. Ela pensou que seu coração fosse sair pela boca. E o olhar de Takeo já estava tão diferente, misturado com o das suas lembranças e suas expectativas:

– Deveria te beijar agora? – Disse ele olhando nos olhos dela.

Lyene deu-se por si, com o estrondo do choque entre seus princípios e suas vontades. Sacudiu rapidamente a cabeça e se desvencilhou dele, sentando-se nas almofadas:

– Deixa de besteira! E, olha, se você quiser chamar as guerreiras, temos o comunicador, ainda que eu não veja necessidade.

Ele sentou-se em seguida. Sentia-se confuso e com uma leve enxaqueca. As lembranças da grande guerra vinham-lhe na mente em forma de redemoinho. E Lyene tivera razão, como sempre. Ali provava que era outra pessoa, sem as responsabilidades que pareciam fazer parte de si. Takeo, na época, não podia imaginá-la da forma como se descrevera, mas nestas duas últimas semanas sentiu o peso das suas palavras. Sabia que ela agira normalmente todo este tempo, porém tudo ia se tornando gradativamente, quase imperceptivelmente mais difícil pra ele. Passou as duas mãos nos cabelos e ficou de cabeça baixa. Lyene levantou-se, parando encostada na poltrona, e respirou fundo:

– Bom, pelo menos você ficou quieto, já melhorou a situação. Agora podemos pensar sobre o que te incomoda?

Ele coçou a cabeça, entre a Terra e a Lua:

– Essa convivência em tempo integral com você está me deixando confuso, sabia?

– Takeo, não desvia o assunto!

– Ah, o clima já não está pra isso – disse apoiando a testa na mão.

Lyene abaixou a cabeça:

– Precisamos encontrar Mihara rapidamente, pra tudo ser como antes.

Takeo sentiu as lascas de gelo no percurso daquelas palavras que lhe atingiam em cheio, doendo-lhe as articulações. Ele levantou os olhos na direção dela:

– Não gosto deste negócio de “ser como antes”, você sabe. – E voltou a abaixar a cabeça outra vez.

Ela aproximou-se de onde ele estava, e agachou-se de frente pra ele:

– O que você está sentindo?

Ele levantou a cabeça na direção dela:

– O que estou sentindo? Estou...

– Em relação ao que te incomoda, Takeo...

Ele respirou fundo. Sabia que não podia esperar nada de diferente:

– Não sei direito, não estou com um bom pressentimento. Peguei algumas destas pastilhas que eles me ofereceram, penso que seria bom investigar.

– E eu havia dito que não, mas, pensando bem, seria bom chamar as meninas, sim. Agora que me lembro, Ami tem um minicomputador muito interessante. Seguramente podemos extrair alguma informação com a sua ajuda.

Takeo olhou-a com as sobrancelhas erguidas, primeiro tentando ter certeza de que ela realmente pronunciara aquelas palavras, ao mesmo tempo enternecido por ela aceitar a ajuda das meninas:

– E como estavam seus amigos quando os viu? Digo, com que aspecto? – Lyene tirou-o do seu transe.

– Um aspecto horrível: pálidos, olheiras, semblante muito cansado. Da mesma forma em que vimos algumas pessoas naquele dia em que Kitty resolveu vacinar todo mundo.

– Não há dúvidas mesmo de que ela está por detrás disso.

Takeo deu um sorrisinho vitorioso:

– Pra você ver que meus amigos são pessoas decentes.

Lyene coçou a testa:

– Eu nem estava falando sério. Foi só mesmo pra te irritar e ver se você parava de rodar a sala feito um bonequinho de corda.

– Pedido de desculpas aceito, princesa. Agora, o que precisamos fazer é descobrir pra quem Kitty trabalha. Isso é mandatório!

– Com certeza. Penso que seria útil fazer uma varredura de quem considerávamos inimigos dentro do próprio Milênio, suspeitos de espionagem, duplos informantes... Tenho esta lista quase pronta. Há uma forte evidência de que a pessoa para quem ela trabalha seja de lá também.

– Você acha?

– Eu não posso afirmar com muita precisão, mas acho que seja um ponto de partida razoável. Ou, sensato, melhor dizendo.

– Pode ser. Podemos também fazer uma varredura, como você disse, dos tesouros do reino para que possamos identificar o que eles estão procurando para querer os nossos cordões. Mas, por ora, chamemos as meninas, sim?

– Sim, senhor, comandante Takeo! – Disse ela em leve sinal de continência.

Lyene contatou-se direto com Ami e elas combinaram de encontrar-se no templo Hikawa. Ami se encarregaria de falar com as demais, o que foi um grande alívio. Assim que ela desligou o comunicador e colocou-o na mochila, Takeo levantou-se e se colocou ao seu lado:

– Pronto?

– Agora é só irmos.

– Então não esperemos mais! – Disse sorridente, ainda que Lyene pôde perceber um véu muito sutil de tristeza embaçando-lhe o rosto.

Fizeram o caminho em silêncio, cada qual lidando com o turbilhão de sentimentos que lhes invadiam naquele instante. Lyene ansiava muito pela presença de Mihara, para balancear as forças outra vez. Aquele sentimento por Takeo, ao final, não era novo e não tinha razão de ser. Na Lua tinha suas próprias responsabilidades como estadista e não tinha prazer maior que cumprir com o seu papel, mesmo contra os desejos de sua mãe. Asfixiar certas emoções inconvenientes nunca fora problema para ela. No entanto, por que estava tudo tão difícil naquelas circunstâncias? Olhou Takeo que caminhava ao seu lado de cabeça erguida, as mãos nos bolsos e o olhar distante... Pareceu-lhe mais atraente do que nunca. Por isso, passado este episódio, concentraria todas as suas forças na busca da amiga.


Takeo repetia em sua mente a cena em que caíra com ela nas almofadas. Tinha mil juízos contra si mesmo, e nenhum era suficiente para dissolver a proximidade dela consigo. Lembrou-se de algumas situações vividas no Milênio, da admiração quase devotada que sentia por ela, ao vê-la tão empenhada em proteger o reino acima de qualquer necessidade pessoal. Lembrou-se das suas palavras naquela tarde, o tenso intervalo na espera dos soldados do Negaverso, quando, mesmo privada daquilo que mais amava, não hesitou um minuto em lutar corpo a corpo contra o inimigo. Tudo isso volteava, dançando e contornando a silhueta de Mihara, sua Mihara... A pessoa que parecia haver sido feita quase que sob medida para ele, que mesmo o desenho vacilante em sua mente era capaz de deixá-lo vulnerável, fraco. Ao pensar em sua figura, suas veias reviravam-se em um nó... Não, no final das contas, não sabia mais o que queria...

Chegaram o templo Hikawa. Ami e Rei os esperavam apenas. Takeo cumprimentou-as alegre, sendo da mesma maneira retribuído e Lyene apenas acenou com a cabeça, bastante desconfortável. Nestas horas agradecia a companhia do amigo que amenizava todas estas situações estranhas.

– Queridas, eu sei que deveríamos esperar as demais meninas, mas será que podemos adiantar alguns aspectos da reunião? Estou bastante preocupado e receio que cada segundo seja muito importante.

Ami e Rei se olharam, perplexas com a maneira com que Takeo lhes dirigia. Assentiram algo coradas.

– Que bom! Fico extremamente contente. Ami, Lyene me disse que você tem um computador que podia ser útil para analisar isso aqui – entregou-lhe a uma pequena pastilha laranja –, é possível que o faça?

– Posso, sim, não vai demorar nada.

Ami tirou seu computador de dentro da pasta e escaneou a pastilha. Arregalou os olhos ao ler os dados na pequena tela:

– Sim, há algo de errado com isso. Ao que parece ela acelera demasiadamente o metabolismo humano, fazendo com que o organismo se desgaste muito além da conta, soltando uma grande quantidade de energia no ar.

– E podemos saber de onde vem isso? – Takeo disse com Lyene apoiada em seu ombro olhando por cima dele o que Ami fazia.

– Não, não há nenhuma descrição possível que me permita identifica-lo.

– O que já nos da a certeza de que não é nada lícito. – Concluiu Lyene.

Rei levantou-se.

– E se não é lícito, certeza de que se relaciona ao inimigo. Dê-me esta pastilha que descobrirei agora de quem se trata!

– E você pode fazer isso? – Perguntou Lyene, interessada na maneira como ela ia fazê-lo.

– Claro que sim! Eu não uma sacerdotisa por nada!

– E podemos te acompanhar? – Disse Takeo igualmente interessado.

– Claro!

Entraram todos no templo. Rei fez seu ritual característico e lançou a pastilha ao fogo. No mesmo momento o fogo explodiu alto em uma torrente de labaredas que desenharam o rosto de uma mulher cuja fisionomia lembrava vagamente a figura de Serenity. Desenhado o rosto, a forma se redesenhou em uma cabeça de dromedário* avançando, com a boca aberta, diretamente sobre eles que, caindo no chão, tentaram proteger o rosto daquela imagem assustadora.

Levantaram-se vagarosamente, Takeo havia se jogado sobre a amiga, em um ato protetor. Lyene, entretanto não se levantara. Permanecia deitada, em um estado de choque que beirava o catatônico. Takeo imediatamente ergueu-a pelos ombros, na tentativa de ajudá-la, mas sentiu seu corpo inerte, como se ela estivesse longe, dentro de si mesma. E o estava, perdida entre a grande guerra, os remorsos, as raivas e o medo, que era um só, e por isso mais maciço e mais pesado. Lutava outra vez, mas num cenário entre a Terra e a Lua, a mesma escuridão adiante e atrás de si, a mesma falta de futuro que escorria nos abismos dos limites, que cada vez eram mais visíveis e alcançáveis. E já era a Terra que escurecia, engolida, assim como o chão que estava sob seus pés.

Assustou-se com a queda em sonho. Voltou-se a si e sentiu o perfume de Takeo, por alguma razão estava em seus braços, com a cabeça recostada em seu peito enquanto ele a segurava pelos ombros. Agarrou sua camisa, na altura da cintura dele, e foi quando Takeo percebeu que ela havia acordado.

– Ah, Lyene! Graças à Rainha! – Disse abraçando-a, trazendo-a para si outra vez.

– Você conhece a face de nosso inimigo, certo, Lyene? – Perguntou Ami já consciente da resposta.

Ela separou-se dele vagarosamente, como se não quisesse fazê-lo, e Takeo notou seus olhos, discretamente marejados de lágrimas, encherem-se de raiva e desprezo. Viu claramente a comandante e sentinela Lyene tomar conta dela naquele instante, uma versão adolescente da que conhecera no Milênio.

– Reconheceria essa cabeça de dromedário em qualquer lugar. Reconheceria esse disfarce de mulher que ela usa até nos momentos mais felizes da minha vida.

Takeo olhou-a, triste. Tudo fazia sentido naquele momento:

– É o Negaverso, não é?

As meninas arregalaram os olhos em profunda surpresa:

NEGAVERSO???

Lyene olhou-o distante:

– Para quem não conhecia, foram apresentados à própria face de Metallia.




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Notas finais do capítulo

*Dromedario = É um camelo. Por que a associação? Vem de muitas coisas, na verdade. A cena em si é uma intertextualidade com um livro que li recentemente que se chama "O diabo enamorado", de Jacques Cazzote. Muito bom livro, retrata o diabo como uma cabeça de dromedário gigante, que se transforma em uma mulher para agradar o 'contratante'. Isso me lembrou aquela câmara onde Metallia era velada ( http://en.wikipedia.org/wiki/File:Queen_Metallia.jpg).
Além do mais a questão do sol, com a questão do inferno, com a questão da negaforça, tudo parecia perfeito para minhas analogias, assim que não hesitei.E assim se tem a cena.