Burned escrita por Shalashaska


Capítulo 3
Raposas, leões e lobos


Notas iniciais do capítulo

Olá! Não demorei desta vez, né? Haha Promete responder em breve os comentários. Vocês são uma fofura!



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Acordar no próprio quarto ainda desnorteava Hans.

Era como acordar de um sonho pesado e de repente estar num lugar muito familiar. Não exatamente um lugar bom, mas tratando-se de seu quarto, era seguro e guardava ainda objetos da infância e da adolescência. Poucos minutos depois de abrir os olhos, Hans embebia-se ainda da sensação de ter despertado de um sonho ruim, no qual tinha cometido erros terríveis e passara um punhado de anos sorvendo suas punições. Tudo era ilusão. Porém, escorridos alguns minutos, conformava-se com a realidade e levantava da cama. Ele não era mais um menino inocente que acordava de um pesadelo, mesmo que a maresia entrasse pela janela tal qual fazia nas manhãs de sua infância.

Os criados seguiram com sua orientação repassada por Anette, limpando apenas uma vez por semana o pó de seus aposentos, trocando as roupas de cama quando necessário e levando suas roupas para as lavandeiras com frequência. O banheiro sofria os mesmos cuidados. Portanto, mesmo que três semanas já tivessem transcorrido desde que pusera seus pés no palácio, todos os objetos em seu quarto permaneciam em suas respectivas posições.

E bem, os criados tinham maiores preocupações: em dez dias haveria um novo baile e tudo precisava estar perfeito, pois a rainha supervisionava o andamento da limpeza, organização e recebimento de suprimentos.

Naquela manhã, Hans passou os dedos sobre as cordas de um violão em um banco perto da cama antes de seguir para a sacada e se apoiar com os braços no suporte, encarando o mar escuro.

Fazia sol e ainda era cedo. Ele sempre tivera o sono muito regulado e acordava no mesmo horário, por mais que tivesse ido dormir tarde. Às vezes, isso o atrapalhava. Quando trabalhou na Marinha e depois, no campo, esse hábito tivera sua serventia. Agora, ele não sabia muito bem o que achar e encarar o mar adiante obrigava-o a refletir mais.

Três semanas. Ainda não descobrira nenhum suposto segredo que seu pai e seu irmão mais velho escondiam e talvez nem devesse cavar mais fundo esse assunto. Quem sabe não fosse nada ou quem sabe fosse algo completamente inútil. Hans apenas torcia para que o segredo não fosse constrangedor, como a busca pela cura da impotência sexual de um deles ou algo do tipo. Considerando que o pai tivera doze filhos, soava improvável. E, vendo que não era absurdamente incomodado por ninguém, Hans poderia até mesmo esquecer-se tudo — assim como sua família parecia fazer — e seguir sua vida daquele jeito, acordando cedo de manhã e focando-se em si, nas leituras que deixara para trás e pequenos outros prazeres, como alguns instrumentos musicais.

Desviou sua atenção das ondas distantes e virou-se para dentro do quarto, repousando o verde de seus olhos na mesa que tinha encostada na parede, com livros apoiados acima e outros nas estantes superiores. Aproximou-se devagar deles, lembrando-se do conteúdo de cada um: Livros de História, Aritmética e Álgebra, Geografia, tratados, instruções de política e diplomacia. Em seguida, explorou os mapas que colecionava, as cartas náuticas e refez os cálculos entre as distâncias das cidades nas Ilhas do Sul com a ajuda de um compasso. O último lugar marcado era ao Norte: Arendelle.

Ele soltou um suspiro e o vento entrou pela sacada, resfriando a pele nua de seu tórax. Sim, ele podia seguir sua vida como se nada tivesse acontecido. No entanto, isso era uma frágil ilusão e quem sabe a única pessoa que ele não conseguisse enganar fosse si mesmo. As coisas haviam mudado. Imaginava que sua suposta paz era até mesmo causada por sua recém fama de instável, pois esperava que seus irmãos fossem ainda mais insuportáveis quando chegasse em seu lar. Se ele soubesse que Rudi e Runo tornariam-se mais mansos — dentro, é claro, do que lhes era possível — Hans teria cometido alguma loucura violenta mais cedo.

Sorriu sozinho, mas logo sua expressão ficou séria novamente. Quanto mais tempo passava dentro do palácio, mais sua certeza solidificava-se: ali era sua prisão e seu pai, seu carcereiro. E mesmo que ele logo viesse a falecer, viria Caleb. E então Asger. Depois Lars, que não era mal, embora omisso. Em seguida viria Dan, Frederik e mais outros sete nomes. Hans não sabia ainda exatamente o que fazer ou como seu próprio segredo lhe ajudaria de forma eficaz, entretanto sabia sim que todo pensamento de paz naquele palácio era uma fantasia tola. Ele era invisível enquanto não fosse um problema: bastava sair dos planos para sua posição fragilizar-se.

E os planos do rei nunca eram claros, muito menos confiáveis.

Decidiu vestir-se logo e tomar um breve café da manhã na cozinha. Os empregados não reclamariam e não era hora ainda de cruzar caminho com sua família. Hans desejava apenas aproveitar o desjejum e rumar para biblioteca real, onde talvez existissem algumas respostas.

***

Agora o vento lá fora era forte e Hans enxergava o impacto feroz na copa das árvores através do vidro das janelas. Existia algo de belo no ar, em como podia ser tanto uma brisa suave quanto uma rajada que acelerava barcos ou criava ciclones. Naquele fim de manhã, ele se pôs a encarar o lado de fora e soltou um suspiro.

Passaram-se duas horas.

Mesmo que o príncipe não gostasse do palácio, tinha que admitir que a arquitetura era decente e a Biblioteca Real, apesar de não estar em uma região favorável a preservação de papéis, conseguia plenamente evitar o impacto da maresia e umidade no seu acervo. As janelas eram altas e de vidro grosso, resistente: permitiam a luz entrar adequadamente e, se a luminosidade do Sol estivesse muito intensa, cortinas leves dariam conta do recado para não danificar os materiais, afinal, iluminação por fogo lá dentro era perigosa e não deveria ser estimulada sem necessidade. Havia suportes para lampiões e uma lareira acoplada em pedra na área de leitura, mas Hans não precisava nada disso no momento.

Ele precisava de organização.

A Biblioteca que encontrou estava diferente do que se lembrava. A estrutura e a disposição das estantes permaneciam as mesmas, no entanto a bibliotecária não estava lá e havia material da pesquisa de alguém espalhado pela longa mesa de pedra polida e lisa. Hans não mexeu naquilo e talvez não conseguisse entender aquela confusão sem passar horas a mais ali dentro. Embora estranhasse a bagunça de um local sempre tão impecável, ele esperou a senhora Lagerlöf chegar e pensava que ou ela teria tido um colapso nervoso — compreensível — ou chegara a hora de fazer um novo inventário da Biblioteca, fato que levava semanas e exigia assistentes. De qualquer forma, esperar por ela era a ação mais sensata, pois poderia encontrar mais facilmente o que procurava. Enquanto aguardava, ele folheava algumas partituras que havia se deparado no meio da confusão e já tinha relido um livro de contos de fadas antigo.

Quem chegou foi seu irmão Lars.

Carregando tubos de mapas, um caderno e três livros, sua dificuldade de andar segurando tudo era nítida, mas ele não parecia se importar. Murmurava alguma coisa para si e só notou a presença do irmão quando já estava mais perto, abrindo um sorriso ao mesmo tempo em que arrumava os óculos no nariz.

— Oh, olá, Hans! Não te vi no desjejum. — Soltou o material na mesa, depois tirou um pote de vidro fechado com tinta preta de dentro do casaco. Procurava sua pena agora entre os outros bolsos. — Tentando compensar o tempo que não veio aqui?

O mais novo não respondeu de imediato. Ainda o impressionava o quanto Lars, por mais culto e comunicativo que fosse, não tivesse muito tato com as palavras. Não abordara Hans sobre Arendelle, embora a ideia de ir para lá tenha sido inicialmente dele. Não parecia ter sensibilidade o suficiente para compreender que suas palavras tinham soado ásperas. Compensar o tempo? Hans tinha sido sentenciado a trabalho braçal por anos e, mesmo que bibliotecas daquele porte não fizessem parte do cenário campestre, ele descobrira coisas que biblioteca nenhuma lhe revelou.

Mas nem esse breve silêncio incomodou seu irmão mais velho. Lars de repente fixou seus olhos na capa azul do livro que Hans estivera lendo.

— Você achou esse livro! — Aproximou-se mais alguns passos e pegou o exemplar para examiná-lo de perto. — Eu estava procurando-o há dias. Precisa muito dele? Quero utilizá-lo para uma pesquisa.

Hans só balançou a cabeça. Precisa saber mais sobre magia e encantamentos, mas suspeitava que aquele livro não era exatamente o que procurava. Anuiu ao irmão sem fazer grande caso.

— Onde está a senhora Lagerlöf?

— Provavelmente na Quinta Ilha. O que foi? — Lars franziu os cenhos e então se recordou. Hans não sabia de certas mudanças no palácio. — Ah, sim. Ela se aposentou.

— E por que não há nenhum outro bibliotecário no lugar?

— Nosso pai não confia em mais ninguém para fazer o mesmo trabalho. — Deu de ombros, voltando a mexer nos objetos que trouxera consigo e mexendo nos outros que estavam dispostos sobre a mesa. Toda a bagunça era dele. — Bom, exceto eu.

— Com todo o respeito, Lars, mas você não parece estar fazendo o mesmo trabalho.

— Imagino que vou pegar o jeito com tempo. Mas ultimamente estou ocupado com uma tarefa que nosso pai me deu.

Uma faísca passou pelos olhos verdes de Hans. Se o rei Harald tinha lhe dado uma missão, ele sabia que era importante.

Este seu irmão não era a joia do reino, não era o favorito do rei, não clamara grandes incumbências para si ou sequer terras, como alguns de seus outros irmãos. No entanto, dedicara sua vida aos estudos de História e garantiu um acordo favorável entre os nobres da Segunda Ilha — que controlavam o porto Leste — e a família real através de seu casamento com Helga. Para seu pai, Lars já havia cumprido o suficiente de seu propósito como herdeiro, mas é claro que ainda reforçava a importância da família Westergaard como historiador oficial das Ilhas do Sul.

Hans poderia tirar proveito disto.

— E o que seria, Lars?

— As nações têm se agitado no último ano. — Respondeu ele com um suspiro. — Depois que Arendelle emitiu aquela declaração sobre os Northtuldra e Ahtohallan, algumas coisas... estranhas começaram a acontecer.

O mais novo olhou para as próprias mãos quentes, não apenas por causa das luvas.

— Eu soube.

Fazia um ano desde a declaração que a névoa mística em Arendelle havia cessado e a verdade dos Northtuldra fosse revelada: a rainha Iduna vinha desse povo e uma traição ocorrera há anos. Agora, estavam todos livres: do passado e do encantamento.

Lembrava-se da sensação exata ao saber dos desdobramentos maravilhosos daquele país mais ao Norte, pois fora noticiado boca a boca e em todos os jornalecos entregues até mesmo na mais zona interiorana nas Ilhas do Sul.

Elsa, não mais rainha, expandia mais seus poderes. Anna comandava em seu lugar.

A ironia fazia seu corpo arder. Anna tornou-se rainha, afinal, ao contrário do que se imaginava — e ao contrário, talvez, do próprio bom senso. Patético.

As letras serifadas do jornal pareciam queimar em suas lembranças, por mais que o título da declaração fosse poético, simbólico e simultaneamente literal:

A água tem memória.

O que então o fogo guardava?

— Todos têm se voltado para as próprias lendas locais em busca de orientação. Engraçado, não acha? Passamos boa parte da vida achando que são só histórias para no fim existir um fundo de verdade. — Finalmente encontrou a pena e colocou-as perto do vidro de tinta.  Ajeitou os óculos e fez um gesto expansivo com as mãos para indicar as anotações, livros e mapas entulhados sobre a mesa de pedra. O príncipe mais novo estava satisfeito por voltar ao tempo presente. — Essa é a minha nova pesquisa, Hans: a história mítica das Ilhas do Sul.

Ele pensou sobre que tipo de agitação de outros países Lars se referia mais especificamente, mas era melhor refletir sobre isso depois. Com sinceridade, Hans deu um aviso para o irmão:

— Não sei se vai encontrar a história inteira só nos livros. Existe muita coisa fora do papel.

— Bem, somos diferentes de Arendelle, em história, geografia... Principalmente política. Não sinto que vamos encontrar as mesmas coisas, ou não da mesma forma.

— Devo concordar com isso. E discordar muito de seus métodos. — Encarou com desdém a bagunça. Estivesse ou não com segundas intenções sobre a pesquisa dele, não poderia achar aquilo bonito. — Para um historiador competente, você não tem o hábito de organizar as ideias.

— E quem disse que ideias são coisas organizadas de forma linear?

Hans riu de maneira breve, daquele jeito que conseguia fazer sem soar rude, mas sem abrir mão de uma dose de sarcasmo. Na realidade, era uma alfinetada para fazer Lars pensar mais um pouco.

Mas não em tudo.

— Explique sobre abstração e não-linearidade ao rei. — Comentou. — Imagino o quanto ele irá concordar com você. Se bem que ele não te deu prazo, ou deu?

Lars permaneceu quieto por alguns segundos, ajeitou os óculos pela milésima vez. Pálido. Hans teve vontade de tirar os óculos da face do irmão para obrigá-lo a ir atrás de uma armação nova e mais apropriada para o tamanho de sua cabeça. E ao fim, Lars chegou a conclusão que o mais novo desejava: ele não daria conta do volume de trabalho sozinho. Precisava de ajuda, mesmo sendo uma tarefa confiada somente a ele.

Afinal, o rei não contratara nem uma nova pessoa para administrar a Biblioteca Real e facilitar as coisas. Hans imaginava se a senhora Lagerlöf realmente estava na Quinta Ilha. De qualquer modo, Lars respondeu:

— Se não estiver muito ocupado… Duas cabeças pensam mais que uma.

Outro sorriso brotou em Hans, mais espontâneo. Não era pelo motivo que o irmão mais velho pensava.

— De fato seria útil para você… E também prefiro não comentar isso com mais alguém, não quero que nosso pai considere seu trabalho preguiçoso.

— Bom, Hans… Pode começar por esse lado, com os mapas. Enquanto isso, vou buscar algumas coisas no outro cômodo.

Ele anuiu e logo o outro saiu para procurar o que precisava. Hans aproveitou o instante sozinho para saborear sua pequena vitória antes de examinar com o material ali em cima da mesa: facilitara para si o trabalho de pesquisar sobre a linhagem de magia em sua família e tinha praticamente um especialista ao seu lado. E mais: tudo o que o rei soubesse, ele saberia também.

E poderia ocultar o que julgasse necessário.

Ah, ele suspirou. Finalmente, ventos favoráveis.

***

A suspeita de que o rei estava apenas esperando para sentenciar condições a liberdade de Hans consolidou-se durante a tarde, quando Hans foi convocado ao escritório de seu pai. Tentou não se abalar muito com isso e manteve o queixo erguido ao caminhar pelos corredores do palácio até seu objetivo.

No entanto, o cômodo estava vazio e um tanto escuro com a luz dourada tentando atravessar as cortinas vermelhas. O príncipe encarou os objetos muito bem organizados, a bandeira real hasteada, as poltronas estofadas de veludo do outro lado, com uma mesa baixa entre elas. Havia um tabuleiro de xadrez acima e Hans podia imaginar seu pai e seu irmão mais velho conversando ali, inteiramente relaxados enquanto jogavam uma partida. Ao mesmo tempo, seus olhos verdes captavam outro pensamento: os doze filhos do majestoso Harald Westergaard mais pareciam peças em suas mãos. Hans sentia-se um mero peão.

Isso era mais um devaneio e ele deveria priorizar fatos mais práticos. Havia um mapa ainda aberto acima da mesa e, mesmo que daquele ângulo estivesse enxergando de invertido, era óbvio que tratavam-se de todos os territórios das Ilhas do Sul, com certas marcações em vermelho tanto em terra quanto no mar.

Estranho. Estranho e interessante.

Entre tantas cidades, ele ficou seu olhar em Kobenhavn. Não era a mais próxima, por mais que fosse importante.

Guardou a informação na cabeça e antes que se aventurasse em mais alguma coisa dentro do escritório, o rei adentrou pela porta de madeira pesada e entalhada. Ele não disse nada até sentar-se em sua cadeira de trás da mesa, seu verdadeiro trono apesar daquele que existia no salão do palácio.

A coroa discreta adornava os cabelos grisalhos do rei. Uma pessoa qualquer diria que o ego dele não combinava com sua coroa de prata usual, outra pessoa mais desatenta diria que era humildade. Não. O principal da figura do rei era seu rosto, seu semblante. A coroa de metal fino apenas lhe conferia um ar imponente, mas que exibia todo o peso de sua expressão.

Sua voz era ainda mais firme:

— Você sabe a razão de estar aqui.

Hans apenas piscou fronte tal afirmação, ainda de pé. Era como se seu pai tivesse preguiça de elaborar com mais detalhes, mas o príncipe não iria se deixar enganar: entre um misto de soberba e desprezo, o rei Harald queria que ele incriminasse a si próprio jorrando afirmações e justificativas. Isso não ocorreria. Quando mais novo e sedento por uma migalha de atenção do pai, Hans só ouvia-o dizer “Vá direto ao ponto” enquanto não tirava os olhos de suas obrigações. Se agora ele imaginava um comportamento semelhante, cheio de súplicas, então o rei precisava rapidamente rever sua estratégia.

E é claro, Hans não perderia a chance de levemente cutucar seus nervos.

Com a face neutra e os olhos brilhantes, a voz do príncipe pareceu ainda mais solicita:

— Por favor, me esclareça.

— Hans, — O rei notou. Parecia entretido, embora não tenha recuado. — Você podia até ser uma raposa dos mares na Marinha, mas lembre-se que aqui as raposas viram casacos.

A bandeira com o brasão da família real indicava outra coisa. Ele calmamente observou os brocados em ouro no tecido e depois voltou a repousar os olhos no pai.

— Engraçado. Pensava que os Westergaard fossem leões.

O sorriso afiado do rei foi genuíno.

— Você sempre foi inteligente demais para o próprio bem. E impulsivo. Eu sabia que isso não iria te levar muito longe e por isso nunca foi designado a nada grandioso. — Ele balançou a cabeça levemente. — Fiquei surpreso quando quis prestar serviços em nome da coroa anos atrás. Mas não fiquei muito surpreso quando aceitou fazer qualquer coisa que eu pedisse.

Houve silêncio. Naquela época, Hans era só um rapaz. Não sabia mais do que seus tutores ensinavam e sua vida limitava-se a existir como uma sombra dos irmãos, embora sombras não possam ser humilhadas. Sonhava em ser o filho único e ser ouvido, abraçado e visto pelo seu pai. Pela sua mãe. Mas não era nem um herdeiro reserva com doze irmãos antes dele, era simplesmente dispensável. Então, sim. Naquela época, Hans faria qualquer coisa pela mísera atenção do rei: cumprir seus caprichos e tiranias, inscrever-se na Marinha, ir até Arendelle e se mostrar útil.

Até mataria alguém.

Tudo aquilo serviu somente para mostrar o quanto Hans era competente… Até certo ponto. Seu único plano próprio havia falhado de uma forma grandiosa e miserável. E o rei Harald em nada se surpreendia, na realidade parecia então estar esperando ele cair.

Era um raciocínio torpe. Em parte, era verdade. De qualquer forma, Hans foi capaz de controlar a fervura de seu sangue.

— E, mesmo assim, cá estou.

— Ah, sim. Você está, bem observado. — Sorriu com ironia. — Mas não deveria. Alguns países vizinhos pediram sua execução. Arendelle, para sua sorte, quis uma sentença perpétua e não era má ideia, sabe disso. No entanto, admitir que você era grande ameaça seria admitir a fraqueza da coroa das Ilhas do Sul. E você também sabe que isso não é verdade. — Resumiu, categórico. Suas mãos uniram-se com os cotovelos apoiados na mesa. Não demorou muito para buscar um cachimbo adiante e isso fez com que Hans sentisse menos vontade de fumar. Imaginava se ficaria parecido com ele. — A situação em Arendelle foi uma catástrofe esperando para acontecer; se não fosse você, seria o Duque de Weselton ou qualquer outro em busca de oportunidade. Foi como balançar carne na frente de lobos famintos, e no fim essa carne nada mais era que uma armadilha.

— E lobos foram extintos nas Ilhas do Sul.

— Exato. O fim de uma era de selvageria. — Hans acompanhou os movimentos de seu pai e aquela impressão da idade pesar em seus ombros se desfez. O ritmo do rei Harald poderia ser mais comedido agora, no entanto ela compreendia bem onde atacar. Experiente, poderoso. Só tinha dificuldades de acender aquele maldito cachimbo, de modo que sua expressão torcera-se em raiva.

Hans inclinou-se na cadeira, na direção a mesa.

— Deixe-me ajudá-lo.

E em seguida pegou o cachimbo das mãos do pai e acendeu-o com rapidez. O rei, voltando a falar, não havia notado que a caixa de fósforo permaneceu acima da mesa e olhou brevemente para o mapa que estava aberto. Pegou o cachimbo de volta já aceso, tragou e soltou uma baforadas antes de prosseguir:

— Você é inteligente, Hans, eu já lhe disse. E melhor aproveitado quando segue ordens. — O príncipe sabia que nenhum elogio viria sem um custo. — Me certifiquei que nossos países vizinhos soubessem que você não é uma ameaça de verdade sob nossos olhos. Convencê-los a prosseguir no comércio foi outra batalha, mas não impossível. E trazê-lo de volta não foi tão difícil quanto achei que seria… Aparentemente há um boato para explicar seu comportamento em Arendelle: foi enfeitiçado por trolls. Agradeça essa coincidência ao seu favor.

Hans tentou não rir dessa última parte, pois ele não entenderia. Poupou sua reação para se focar em um ponto mais importante.

— Então, meu pai, eu na realidade não faço ideia da razão de estar aqui. Se mereço a condenação e não seus esforços para me trazer de volta ao palácio, porque não passo o resto dos meus dias no arado? Arendelle não iria reclamar.

E sua família também não.

— Foi ideia da sua mãe.

Hans sentiu um sopro em seu coração. A rainha, tão quieta e tão invisível. Se o nome do rei era dito com frequência nos vilarejos, a rainha Hilda era bem menos popular. Hans tinha ouvido pelo menos duas vezes os camponeses se perguntando se ela teria falecido. Ela nunca intervinha, fosse para poupar um súdito ou seu próprio filho. Doía, porém ele não tinha esperanças de benevolência gratuita dela.

— Por que?

— Diplomacia. Cerimônias. Bailes. — Ele fumou mais um pouco. — Casamento. Enquanto você estava em Arendelle, a noiva de seu irmão Runo desistiu de se casar. Você soube disso, não é?

— Não me surpreende.

— Não surpreende ninguém. Mas, o fato é que as Ilhas do Sul precisam se unir ainda mais em tempos de mudanças. Comércio só fará isso até determinado ponto, laços do matrimônio são mais seguros.

— Então estão buscando noivas para meus irmãos. — Hans anuiu, pensando. — E é claro que o príncipe regicida seria um assunto delicado. Uma sombra.

— Precisamente. Com você aqui, é mais simples. Calculadamente cortês e esperto, — Ele encarou Hans a fundo, de uma maneira que o príncipe não se lembrava de ter sido encarado por ele antes. Não era como se ele se sentisse realmente visto, mas havia algo a mais na expressão de seu pai. Algo que talvez dissesse que faltava pouco para Hans ser perfeito ou então que ele seria perfeito em seu papel. — É isso que espero de você.

— Sei bem o que espera de mim.

— Ótimo. Estamos na mesma página. E quem sabe no futuro exista uma noiva até para você?

Ambos exibiram feições afáveis um ao outro. Hans não saberia dizer qual dos dois era mais falso, mas não houve tempo: alguém bateu à porta e logo Caleb surgiu.

— Imagino que já tenham terminado. — Ele constatou, lançando um breve olhar de desdém ao irmão mais novo. Durou um segundo. Logo o primogênito fixou-se no rei, seu tom um tanto tenso. — Temos assuntos importantes para lidar. É sobre a costa oeste das Ilhas.

Kobenhavn, o príncipe supôs em pensamento.

O pai anuiu ao mais velho, de modo que Hans realizou uma mesura educada antes de virar-se para deixar o escritório imenso. Perto de atravessar a porta, porém, passou do lado do tabuleiro de xadrez e moveu uma peça: o peão. Não era seu passatempo favorito aquele jogo, mas Hans conhecia as regras.

Se um peão atravessa o campo até a última casa do tabuleiro, ele poderia ser promovido a outra peça.

Difícil? Absolutamente. Mas a jogada já havia sido lançada.

O rei estabelecera condições para Hans permanecer no palácio: bastava manter-se útil e obediente. Mas ele próprio escondia algo que envolvia o restante do país e não era complexo de assumir tal coisa pela afirmação de Lars sobre agitações recentes e as marcações no mapa do escritório.

O príncipe tinha dez dias para desvendar esse mistério antes que um baile acontecesse e fosse obrigado a cumprir o papel designado por seu pai; ou ainda pior, que sua mãe conseguisse convencer alguma família infeliz a considerar um arranjo de casamento.

Hans Westergaard já começava a elaborar um novo plano.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler! Que tal fazer minha tendinite valer a pena e deixar um oi? Hahahah
PS: Descobri que é Westergaard no lugar de Westgaard. Já já arrumo nos capítulos anteriores.



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