O Museu das Coisas Desaparecidas escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 5
A Casa


Notas iniciais do capítulo

Não se assustem com a atualização dupla! Eu disse que esse capítulo seria o último, mas a quantidade de cenas me fez decidir dividir ele. Ainda assim, eu não faria vocês esperarem mais. A história acaba hoje, com os dois capítulos liberados juntos. Espero de coração que gostem ♥



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Milena tinha acordado em um quarto de hospital, com três pessoas que ela não conhecia, e que, um por vez, lhe fizeram perguntas. Não respondeu de imediato, pois um sonho muito agradável ficava mais distante conforme a garota despertava de vez. Concluíram que ela estava confusa e assustada, e até que era verdade, mas a sensação estranha era a de ter fechado um livro antigo antes de ler o seu fim. Logo a impressão desapareceu, ela voltou sua atenção para as pessoas que estavam a sua frente e esqueceu as que não estavam.

Aquele dia voltava em sua memória com frequência como um dos piores. Havia uma médica, uma assistente social e um policial, e tudo parecia muito sério e importante, mas ela estava sozinha e cansada, e só queria voltar para casa. Percebeu que algo estava errado quando ao pensar em "casa", sua mente não a levou para onde vivia com a mãe. Então se lembrou da floresta e entendeu por que aquelas pessoas estavam ali. Casa lhe parecia um pensamento bem vazio, não conseguiu pensar em um lugar no mundo em que poderia se sentir menos cansada e sozinha. Por um momento, desejou que todos fossem embora para que pudesse dormir novamente. Sabia que teria algum conforto se conseguisse lembrar daquele sonho distante.

Soube que um casal a havia encontrado inconsciente na floresta, eles mesmos a levaram ao hospital e contataram a polícia. Soube que sua mãe ainda não tinha sido encontrada, e mesmo que entendesse a gravidade da situação, chegou a torcer para que não a encontrassem. Não queria vê-la novamente nem mesmo se fosse para testemunhar um crime.

O hospital a segurou por uns dias, mas ela não se incomodou. Não tinha pressa, pois não havia lugar para voltar e sabia para onde iria ao sair. Era tão criança para se sentir assim, tão sem esperança, mas quando olhava para o futuro, via a si mesma, sozinha.

Porém, o mundo ainda queria lhe provar errada outra vez, e dessa vez, para o melhor.

~*~

Mila estava ansiosa para aquele encontro.

Não precisa se preocupar”, Célia havia garantido centenas de vezes no caminho até a casa. “Ela vai amar você tanto quanto eu.”

Coisas assim ainda deixavam Mila desconcertada. Frases curtas e cheias de significado. Não fazia muito tempo desde sua adoção, então ainda se surpreendia ao perceber o quanto Célia era diferente do que ela entendia como família. Em sua outra casa, ela tentava ser invisível. Esperava a mãe ir para o quarto dela antes de sair do seu próprio. Evitava incomodá-la pedindo ajuda com coisas pequenas. Mesmo para as refeições ela tentava se virar sozinha, não podia fazer comida de verdade no fogão, é claro, mas pegava algum lanche no armário e pronto, o almoço estava feito. Mas às vezes mesmo as coisas pequenas ainda a deixavam cheia de medo. Quando pedia orientação, recebia um olhar duro. “Você é idiota? Por que está me perguntando isso, não sabe fazer sozinha?” Quando não pedia orientação e errava, recebia outras reprimendas.

A frágil e mentirosa tranquilidade só parecia durar enquanto não se viam, e Mila se esforçava bastante para mantê-la. Ainda que duas pessoas vivessem na mesma casa, cada uma delas vivia só.

Mas aquela vida era a única referência que tinha. Então Mila permaneceu só, mesmo no orfanato, uma criança assustada com pessoas e não muito disposta a ter esperança de dias melhores. Célia apareceu quase um ano depois, e mesmo que Mila quisesse se manter cética, era como se algo a instigasse a dar uma chance. Tudo era tão diferente com ela, e familiar, de certa forma, que às vezes Mila pensava que não passava de um sonho. Em vez de se esconder, Mila queria ser vista, e sabia que sua presença era percebida e desejada. Célia prestava atenção nas coisas que ela gostava e no que a deixava feliz, e isso ainda lhe pegava de surpresa.

Mas talvez Célia fosse uma exceção, por isso ainda se sentia insegura de conhecer outras pessoas. Ela já estava um pouco nervosa, e ficou mais ainda ao vê-la. Dona Lúcia parecia uma senhora muito séria, de cabelos castanhos presos com firmeza e um semblante neutro que não parecia muito dado a sorrisos. As mãos unidas atrás do corpo apenas aumentavam a aura de rigidez, e Mila emudeceu quando ela se curvou para encará-la. Mas todo o nervosismo desapareceu quando Lúcia sorriu com um olhar travesso e perguntou:

Então é você a minha netinha?

As mãos atrás do corpo apenas escondiam um brinquedo, um presente para a mais nova integrante da família. Mesmo muito agradecida, o brinquedo acabou ficando de lado. Mila passou a tarde observando os enfeites antigos que Lúcia exibia em sua casa. Não sabia explicar, mas tinha uma paixão por coisas antigas.

Essa é uma menina estranha”, ouviu Lúcia dizer à filha. Mila recuou de perto das estantes, envergonhada pelo comentário. Mas viu o olhar de Lúcia enquanto as duas conversavam, e então soube que era um elogio.

~*~

Mila foi a primeira a entrar na casa.

Talvez fosse deselegante, visto que era a casa de infância de Célia. Depois de décadas longe, a propriedade finalmente voltava para a família dela, a mulher provavelmente estava mais ansiosa para revê-la. Porém, Mila não conseguiu evitar, estava tão curiosa para conhecer o casarão que correu na frente assim que o carro parou. Uma energia vibrava no ar como se um sonho antigo tentasse voltar a sua memória.

— Sabia que você iria gostar – disse Célia, ao entrar pouco depois, sorrindo mais para a animação de Mila do que para o fato de ter voltado ao lar de sua família.

Ela sabia da paixão de Mila por coisas antigas, coisas perdidas, e, principalmente, coisas recuperadas.

Apenas quatro anos haviam passado desde que Mila acordara naquele hospital, e só três desde que Célia entrara em sua vida, mas ainda assim, ela a conhecia muito bem. Lamentava por não conseguir chamá-la de mãe. A palavra ainda deixava um gosto de ressentimento em sua boca quando falado, mas Célia entendia a razão e nunca pareceu se incomodar. Isso não as tornava menos próximas. Ainda surpreendia Mila o quanto era fácil se aproximar de alguém quando ambas queriam essa conexão. E também o quanto era difícil, quando uma das pessoas não queria pertencer a ninguém. Mila não tinha sido uma criança fácil no começo.

— Vamos, Célia, me mostre o lugar! – Agarrou o braço dela, a animação quase a fez correr, uma péssima ideia, visto que os carregadores ainda atravessavam o lugar descarregando seus móveis de um caminhão e retirando da casa os móveis velhos que não iriam utilizar.

— Espere, eu preciso cuidar da mudança…

— Isso ainda vai demorar, temos um tempo! Me mostre onde cresceu – insistiu.

— Ok, ok, mas eu não me lembro de nada, eu era muito pequena. Vamos procurar minha mãe, ela disse que chegaria antes de nós.

Célia e Milena seguiram pelos corredores, vagando por um tempo. Por dentro, a casa era maior do que parecia, com muitos corredores escuros e portas que davam para salas vazias ou para outras portas. Viram salões um após o outro. Viram o jardim nos fundos, onde a brisa suave trazia um pouco do cheiro do mar e o som das ondas era uma melodia distante. Mas após alguns minutos andando, Célia teve que voltar para finalizar a mudança e deixou Mila continuar suas explorações sozinha.

A garota olhava para tudo com deslumbramento, os quadros antigos, as escadas elegantes, portas de madeira bem trabalhada e minúsculos desenhos esculpidos na madeira do corrimão. Ela achava cada detalhe maravilhoso, mas era um pouco estranho como não se sentia em um lugar novo. A real estranheza era como tudo parecia tão vazio. Não deveria ser vazio assim. Uma casa só era um lar quando estava preenchida de boas memórias. Decidiu, então, que não ficaria vazio por muito tempo; faria novas memórias, melhores dos que as que tinha, habitarem cada centímetro do lugar.

Uma música atraiu sua atenção, uma melodia familiar. Seguiu o som até encontrar uma sala com um piano no centro, com Lúcia diante dele. Seu marido, Pietro, andava pela sala sem fazer muito barulho, observando-a com ternura. Ele sorriu para Mila ao vê-la chegar e fez um gesto pedindo silêncio. Não precisava pedir, Mila nem pensaria em interromper.

— Lu, querida, acho que você tem uma fã – Pietro falou quando ela terminou.

— Que música linda, dona Lúcia. Não sabia que tocava.

— Eu não tocava há bastante tempo, perdi completamente a prática…

— Mas está tentando recuperá-la em um dia – disse Pietro, com falso sarcasmo. – Eu já decorei a música só por causa de hoje!

— Então eu lamento, mas decorou a música toda errada, porque o que eu toquei não chega nem perto do que deveria ser. – Lúcia zombou. Ela fez um gesto para que Mila se sentasse no banco ao lado dela, e embora seus dedos ainda passeassem por algumas teclas de forma despretensiosa, sem realmente tentar alguma melodia, ela puxou um novo assunto com a garota. – E então, o que achou da casa?

Os olhos de Mila brilharam com a pergunta.

— É incrível! Ainda bem que estou de férias, porque ninguém vai conseguir me fazer sair por um bom tempo.

Lúcia riu, mas Pietro retrucou:

— Ora, não vai passar as férias inteiras trancada em casa, vai? Com tanto lá fora para ver também? Brincar lá fora é importante também, pegar ar fresco e sol, dar uma volta no campo ou uns mergulhos no mar.

Lúcia balançou a cabeça.

— Você fala como um velho.

— Nós somos velhos, querida.

— Só você – respondeu a senhora.

— Tudo bem! Sou um homem velho com hábitos de gente velha, como gostar de jardins e de caminhar na praia. As mocinhas me acompanhariam?

Lúcia olhou para o marido com falsa irritação pelo sarcasmo, e Mila cobriu a boca para não rir. Lúcia parou de tocar, levantando-se.

— Você já viu a casa, Mila? Posso lhe mostrar o resto. Faz muito tempo desde que morei aqui, mas ainda me lembro exatamente do lugar.

Mila aceitou e seguiu a avó, animada, resistindo ao estranho impulso de responder: “Eu também”.

~*~

Mila não lembrava de ter acordado.

Estava no topo das escadas, totalmente vestida como se estivesse pronta para sair. A casa estava quieta. Por ser grande, era normal que a casa fosse bem silenciosa, mas sempre havia sons distantes, como dona Lúcia no piano, coisa que se tornara um hábito nos meses em que estavam ali, ou Célia andando pela casa, conversando com seu assistente sobre alguma reunião importante. Às vezes, até podia ouvir Pietro lutando com as ferramentas de jardinagem, pois ele recusava a ideia de contratarem um jardineiro, mesmo com a insistência de Célia.

Mas ali, o silêncio era completo. Parecia para Mila que o tempo havia pausado durante a madrugada, e apenas ela estava acordada. Desceu as escadas sem se importar muito com a estranheza daquela atmosfera, mas parou ao ver um homem na frente de um dos quadros do salão com as mãos cruzadas nas costas, as roupas elegantes e antigas lhe davam um ar sério e ilustre. Por algum motivo, a presença dele em sua casa não parecia errada. Mila continuou descendo as escadas, aproximando-se dele com curiosidade, apenas.

Sem retirar os olhos da pintura que analisava, ele falou:

— Eu nunca estive desse lado, sabia? Nos sonhos de alguém, quero dizer. Só fui chamado para pesadelos. – Dito o estranho cumprimento, ele virou o rosto para ela e sorriu. – Você não é uma criança muito obediente, não é?

— “Viva sua vida e não lembre de mim”? – Mila lembrava da frase, apesar de não lembrar de quando a ouviu. Mas sabia que era disso que ele falava. Devia ter ouvido em um sonho, mas ainda assim, era uma frase carregada de melancolia. – Isso não é coisa que se peça.

— Perdoe-me. Eu não queria que você perdesse tempo me procurando. Tempo é precioso, mesmo quando pensamos que ele não existe. – Ele voltou a olhar para o quadro. Aquela conversa lhe trazia uma sensação de tristeza, apesar dela não entender bem sobre o que estavam conversando. Ao contrário dela, ele tinha uma expressão tranquila. Talvez algo em sua postura a tivesse denunciado, porque o homem riu. – Sei que não lembra de onde me conhece, não se preocupe, não estou ofendido. Eu já esperava por isso, na verdade.

Ela sentia a presença de uma memória quase tangível. De repente, aquela conversa lhe parecia muito importante. Repetia as palavras em sua mente como se pudesse desvendar o significado oculto delas, como se suas vozes carregassem a chave de um enigma. Se havia algum segredo nas palavras, não conseguiu desvendá-lo. Uma palavra, porém, clamou por atenção acima das outras.

— O que disse sobre lhe procurar?

— Disse para não fazer isso.

— Você está perdido, não está? – Mila não entendia por que motivo a pergunta pesou tanto em seu peito, mas naquele sonho estranho, estar perdido soava algo desesperador. – Como posso lhe achar?

— Não precisa, menina. – Ele tirou do bolso um relicário dourado em formato de coração. – Você encontrou isso para mim, já é muito. É seu, agora.

Ela aceitou o colar com relutância, como se soubesse a importância do objeto. Ele manteve o olhar no pingente, com um sorriso calmo, como se imaginasse outra pessoa usando a joia.

Então, ela lembrou.

E no instante seguinte, acordou em um sobressalto, ainda em seu quarto invadido pela luz da manhã. Sentou-se na cama, levando a mão ao peito sem encontrar nenhum colar. As lembranças fluíram, enchendo seus olhos de lágrimas.

Deixou seu quarto, descendo as escadas para encontrar o cenário de seu sonho, apenas os móveis estavam diferentes. Tinha sonhado com a casa, tinha sonhado com o Museu. Ambos eram o mesmo lugar. Como podia ter esquecido?

Ela queria ter respondido, queria ter dito que sabia quem ele era. O Curador do Museu. Ele, que tinha sido seu amigo quando ela não tinha mais ninguém. Ela só estava ali agora por causa dele. O fantasma solitário, trancado em seu mausoléu de memórias perdidas. E ela o agradecia com o esquecimento.

— Mila? – Célia se aproximou, e só por causa da preocupação em seu rosto foi que Mila percebeu estar chorando. – O que houve? Você está bem?

Mila raramente era tão aberta em seus momentos de vulnerabilidade. Ela costumava cumprimentar as pessoas queridas com abraços e conversava bastante sobre coisas superficiais, como a escola ou sobre os livros que tinha lido. Mas os momentos ruins ela encarava sozinha. Ela precisava lidar sozinha, porque seus momentos ruins a convenciam de que não tinha ninguém ao seu lado, mesmo que Célia estivesse do outro lado da porta, tentando convencê-la a destrancar o quarto. Mila não tinha sido uma criança fácil no começo. Célia lhe garantia que estava ali caso ela precisasse, que a ajudaria com o maior prazer, dizia que estava preocupada com ela por se trancar por tanto tempo e por ouvi-la chorar sem poder fazer nada.

E toda vez que ela dizia algo assim, Mila ouvia três palavras em sua memória: “Eu volto logo.” Uma mentira sussurrada às pressas antes de ser deixada em uma floresta para morrer. Aquela voz a convencia de que nunca teve e nunca teria ninguém. Que logo Célia a devolveria, porque ninguém iria querer uma filha tão difícil e cansativa de lidar, que continuava revivendo mágoas e receios implantados por outra mãe, em vez de reconhecer àquela que estava ao seu lado. E naturalmente, esse medo só fazia aumentar o pânico, porque amava cada uma das novas pessoas em sua vida, mas a voz na sua cabeça a convencia de que nunca seria amada por eles.

Uma voz que sempre se mostrou mentirosa. Sempre que abria a porta, muitas horas depois da insistência parar, Célia ainda estava lá, sentada no chão, esperando o momento em que a menina permitiria que segurasse sua mão e mostrasse que estava ali para ficar. Uma vez, Mila saiu apenas de madrugada, e a encontrou com a cabeça apoiada na parede, de olhos fechados, mas não estava dormindo. Ela sempre pedia que se sentasse ao seu lado, e sempre começava as conversas perguntando se estava melhor. Mila sentia culpa por deixá-la preocupada.

Você não precisa se esforçar tanto por mim.” Ela disse naquela madrugada. “Você já faz por mim muito mais do que eu poderia esperar.”

Você é minha filha, e eu confesso que ainda não tenho muita prática nisso, mas sei que, para mim, não basta apenas fazer o mínimo. Quero e vou fazer por você sempre o melhor que eu puder.”

Com o tempo, essas crises foram rareando conforme Mila reaprendia a confiar em uma família. Não queria se trancar novamente, atualmente seu primeiro instinto não era mais fugir e se esconder.

— Foi só um pesadelo. – Abraçou Célia, escondendo o rosto em seu ombro, agradecida por ela nunca exigir explicações além do que Mila era capaz de dar. Mesmo que o Curador tivesse chamado aquilo de sonho, tinha sido um pesadelo. Ver o amigo tão sozinho, saber que nem mesmo seus pensamentos o acompanhavam. Alguém que já tinha vivido a solidão não deveria esquecer outros na mesma situação. Porque teve a sorte de ser resgatada dessa solidão, precisava encontrá-lo, seja lá o que isso significasse. Antes de se afastar, sussurrou para Célia: – Que bom que eu tenho você.


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