O Museu das Coisas Desaparecidas escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 6
O Coração


Notas iniciais do capítulo

Esse eu acabei de terminar de escrever, admito que não revisei, peço desculpas adiantadas por qualquer coisa ç.ç



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Mila tinha uma paixão por coisas perdidas.

Era mais forte do que ela, mas daquela vez, era pessoal. Ultimamente, estava passando mais tempo fora do casarão do que dentro, o que era estranho para seus hábitos, mas todos os adultos aprovaram. Só não sabiam que ela estava se afastando tanto. Mila deixava a casa em horários em que todos estavam ocupados, dizendo que apenas andaria pelos jardins. Em vez disso, descia para a orla rochosa onde as ondas arrebentavam.

Era errado mentir para eles, mas sabia que a resposta estava ali. E de qualquer forma, não estava em perigo, já conhecia bem o lugar, porque Pietro gostava de caminhar pela areia no fim da tarde, com Célia e Mila o acompanhando sempre que podiam. Lúcia não os acompanhava, dizia que tinha coisas melhores a fazer. Nunca entravam no mar, todos sabiam que a água ali não era confiável.

Ajoelhou-se na areia e lavou as mãos na água salgada. Ela ainda não sabia o que procurava. Já tinha entendido que o Museu era um reflexo da casa, e que o som das ondas em seus corredores eram um eco do passado do Curador. Ele tinha morrido ali, mas…

Um arrepio percorreu Mila, que se levantou, afastando-se da água. Não. Não era isso que ela estava procurando.

Deixou os sapatos para trás, pois gostava de sentir a areia, e continuou caminhando como se a paisagem fosse a única coisa em seus pensamentos. Mesmo sabendo o que havia acontecido ali há sabe-se lá quantos anos, o lugar não perdia seu encanto, principalmente pela forma como a maré o moldava. Quando estava alta, a faixa de areia era estreita e a água quase alcançava as pedras do paredão atrás dela. Mas seca como estava agora, a praia era plana e invadia o mar como se quisesse recuperar seu território, deixando à vista um sinuoso caminho de pedras à direita que formavam piscinas naturais onde às vezes ela podia ver algumas famílias aproveitarem. No entanto, aquela região era um tanto esquecida, pessoas eram raras, e naquele dia não tinha nenhuma à vista.

A praia era toda dela e dos segredos de seus sonhos.

Resolveu andar pelo caminho de pedras, coisa que não gostava muito, porque além da água deixar as pedras afiadas em alguns locais e escorregadia em outros, também serviam de esconderijo para animais estranhos. Mila era uma garota curiosa, mas era mais do tipo que ficava satisfeita com uma montanha de livros da biblioteca, não tinha o desejo de encontrar pessoalmente as coisas que via em seus livros.

Parou ao final da “trilha”, quando o caminho de pedras começava a submergir. Inspirou fundo o cheiro do mar e apreciou o som das ondas. “Que calmaria enganosa.” Era a primeira vez que via a praia desse ponto de vista, distante, e pensou que daria um belo quadro. Seu olhar vagou perdido por todos os cantos que já tinha explorado, recomeçando o caminho de volta.

— O senhor bem que podia ter dado uma dica, senhor Curador.

Não era costume divagar em voz alta, mas como estava sozinha, não se importou. Ela vinha resmungando muito em pensamento, embora suspeitasse que ele não a ouvia, não parecia funcionar dessa forma. Não entendia a insistência dele em não dizer como ela podia ajudá-lo. Se sabia que ela não era uma criança obediente, como tinha dito, deveria saber que ela tentaria sozinha de qualquer forma.

Distraída como estava, pisou no lugar errado, uma pedra mais lisa que as demais, e o que antes era céu claro e calmaria se tornou um turbilhão gelado e escuro. Além do susto de perder o ar de repente, sentiu a lateral do rosto arder com a água salgada, onde havia acertado a pedra na queda. Desesperou-se por um momento, um pouco desorientada demais para voltar à superfície rapidamente. Agarrou-se às pedras submersas, mas tudo o que os dedos conseguiram foi se enroscarem no sargaço agarrado nas rochas. Os pulmões clamavam por ar e sua visão escureceu ainda mais.

No futuro Mila saberia que em algum momento sua consciência havia vacilado por causa da pancada, embora não mais do que alguns segundos. Mas, naquele instante, a mão que segurou seu braço parecia ser bem real, em vez de um amigo feito em um sonho.

Mila tossiu ao respirar, percebendo que, sem saber como, estava de volta à segurança da areia da praia. Havia um pouco de sangue em sua testa e sargaço no vestido, e enrolada nos dedos, uma corrente dourada com um relicário. A água salgada tinha tirado muito de seu brilho e estragado a foto que guardava, mas as pequenas letras gravadas na parte de trás ainda eram visíveis.

Para Lúcia.

Feliz aniversário, meu Coração.

Mila apertou o objeto nas mãos, quase não acreditando que estava ali. Deixou-se cair com as costas na areia, um sorriso de alívio indo de lado a lado do rosto.

— Eu encontrei você... Não está mais perdido.

Apenas o vento e as ondas responderam.

Ela se permitiu relaxar por alguns segundos, enquanto recuperava o ar, para então se levantar e correr novamente para casa. Só na metade do caminho percebeu que tinha esquecido os sapatos na praia, mas animada como estava, decidiu voltar depois. Descalça, não fez muito barulho quando entrou na casa e atravessou a sala correndo, e por causa disso, Célia só olhou em sua direção quando já estava muito perto. Mila não entendeu de imediato o olhar assustado dela, que soltou os documentos que folheava quando a viu. Então lembrou que sua aparência devia estar péssima e nem um pouco adequada ao sorriso eufórico.

— O que aconteceu?! Você está bem?!

— Estou bem. – Mila não diminuiu a corrida, passando direto por ela. – Explico depois, mãe, preciso achar a dona Lúcia!

— Mas... Por que? O que... O que você disse?

Só então Mila parou. Voltou alguns passos a a abraçou com força.

— Mãe. Desculpe demorar tanto para chamar você assim. – Ela sorriu. Célia ainda parecia não acreditar, mas sorriu também, seus olhos úmidos pela emoção. Nunca pediu que Mila a chamasse de mãe, entendendo a história da menina, mas não podia mentir, era um de seus maiores desejos. Mila segurou sua mão, puxando-a para voltar a correr. – Vem também!

— Para onde?

Mila apenas continuou guiando o caminho, até Célia começar a enchê-la de perguntas sobre seu estado, quando teve certo trabalho para tranquilizá-la e precisou prometer que deixaria ela dar uma olhada no corte assim que falasse o que precisava falar com Lúcia.

Levaram um tempo para encontrá-los, mas Lúcia e Pietro estavam na sala de jantar, com uma garrafa de café e um bolo partido sobre a mesa. Não ouviram o que conversavam, mas estavam rindo baixinho, como o casal geralmente era visto.

— Dona Lúcia!

— Sim, querida?

Mila não deu tempo para que perguntassem sobre suas roupas e cabelo encharcado ou os arranhões. Aproximou-se segurando firme o pingente do colar no punho fechado, apenas a corrente ficava visível, e por um curto instante, teve dúvidas sobre o que dizer. Seria um tema delicado demais para aquele ambiente que inspirava a leveza do fim de uma tarde tranquila? Seria sua empolgação inadequada, malvista por pessoas que não entendiam o que havia de tão importante em encontrar um vestígio da existência de alguém que já não pertencia a esse mundo? A dúvida não durou muito, e o único cuidado que tomou foi de suavizar seu sorriso para algo mais empático e menos alegre. Não precisavam saber de sua pequena e autoimposta busca.

— Eu... encontrei algo. Acho que pertence à senhora.

Em vez de entregá-lo nas mãos, deixou o colar sobre a mesa. Por algum motivo, lhe parecia certo que Lúcia o pegasse, em vez de recebê-lo de alguém. Ela olhou o objeto com curiosidade por alguns instantes, então seu sorriso se desfez como névoa, o momento do reconhecimento sendo perceptível em seu olhar sério. Estendeu a mão para o colar, mas seus dedos hesitaram a pouca distância de alcançá-lo. Pietro e Célia observavam em silêncio, não sabiam o que exatamente significava aquela cena, mas parecia algo importante e emotivo, então ninguém quebrou o silêncio.

A hesitação não durou mais que alguns segundos, mas quando Lúcia finalmente pegou o colar, Mila sentiu como se estivesse prendendo a respiração por horas. O silêncio permaneceu tão insistentemente que era como uma quarta testemunha na sala, enquanto ela apenas analisava o colar, virando o pingente na mão para ler a inscrição.

— Sabia que eu não consigo me lembrar como ele era? – Ela murmurou, sem levantar o olhar do objeto. Um sorriso frágil apareceu por um instante, desaparecendo igualmente rápido. Talvez, assim como Mila no começo, Lúcia não soubesse exatamente como reagir. Apesar de falar em voz alta, parecia mais um desabafo para si mesma. – Eu queria poder culpar a minha idade, mas, na verdade, eu passei a maior parte da minha vida sem lembrar do rosto do meu pai...

A frase soou ainda mais triste para Mila, que sabia o quanto eles eram parecidos. A mesma cor de cabelo, o mesmo tom de pele, o formato dos olhos. Até a postura séria, porém compassiva, eles compartilhavam.

— Tenho certeza de que a senhora pode ver muito dele sempre que se olha no espelho.

— Você é mesmo uma menina estranha. – Dessa vez, Mila entendeu como o elogio que era. Lúcia sorriu, alisando o colar como se fosse, e realmente era, o último vestígio de uma pessoa querida. – Muito obrigada, Mila. Muito obrigada mesmo.

~*~

O Museu estava diferente agora.

Engraçado como depois de se lembrar de ter passado um tempo incontável ali, que no mundo real não tinha sido mais do que dois dias, todas as suas memórias voltaram vívidas. Ela lembrava de cada corredor, cada estante, cada tesouro perdido e guardado com tanto esmero. E, é claro, lembrava de cada conversa com o fantasma solitário que também era parte do acervo de seu próprio Museu. Portanto, ela tinha certeza: não sabia o que era, mas o lugar estava diferente.

— Sou eu – respondeu o Curador, como se tivesse lido suas suspeitas. Ele parou a seu lado e pareceu estudar junto com ela o santuário que tinham compartilhado durante uma pausa da existência. – O Museu sabe que estou indo embora. Não precisa mais guardar minhas memórias.

Era verdade que as paredes pareciam mais etéreas, menos reais do que antes. Como se as memórias que haviam levantado aquelas ilusões já não fossem mais necessárias. Afinal, o Museu era um lugar jamais criado, mas, ainda assim, era constantemente construído pelo que quer que o habitasse. Aquela dimensão abrigava muito mais que objetos perdidos.

O Curador se virou. Acompanhando seu movimento, Mila viu que estavam diante de uma grande porta, que não era nenhuma daquelas que levavam aos sonhos ou aos pesadelos das pessoas. Era a porta da entrada, aquela que nunca tinha sido aberta porque supostamente não havia lado de fora. Mesmo assim, ele estendeu a mão para a maçaneta.

— Muito obrigado pelo que você fez – pronunciou as palavras devagar, como se pudesse fazer cada uma delas valer dez vezes mais, e ainda não expressariam corretamente o que sentia. – Significou muito... Significou tudo para mim.

— Eu não podia deixar você aqui. – Antes que ele dissesse algo, Mila recuperou a lembrança da conversa estranha de quando o conheceu. – Ah! Meu nome é Milena. Eu disse que todo mundo tinha um nome.

Ele riu.

— Achei que não devia contar para estranhos.

— O senhor não é um estranho. É meu bisavô.

Mila nunca viu um sorriso transmitir tanta paz. Ele se afastou da porta para um último abraço.

— Que bom que eu pude conhecê-la. Tenha uma boa vida, Milena. Espero que demore bastante para nos vermos novamente.

Após se despedir, ele abriu a porta que nunca tinha sido aberta, e ao mesmo tempo em que ele deixava o Museu, Mila acordava no outro mundo, pronta para viver a vida que tinha sem mais querer se abrigar no mundo dos sonhos.

Ainda havia um "não lugar", fora do plano da existência e fora do tempo das coisas, para onde convergiam todas as correntes do universo, para onde todas as coisas perdidas fluíam em suas correntes como as folhas levadas por um rio. Já houve quem cuidasse desse lugar, guardando as tragédias de outras pessoas para tentar esquecer a própria. Agora não havia ninguém, e as poucas pessoas que ainda se lembravam dele acreditavam que o motivo de sua ausência era a própria razão da existência desse não lugar. Um Museu de memórias perdidas, futuros quebrados, promessas não cumpridas, mas que estavam sempre ali, pela mais ínfima esperança de que o que foi perdido, às vezes, pode ser recuperado.


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Notas finais do capítulo

Estou tão feliz por ter terminado, essa fic foi o primeiro sucesso da minha promessa de Ano Novo de terminar as histórias que comecei kkkkkk
Agora a parte que eu mais gosto, as notas finais gigantes no fim da história XD
Curiosidades:
— A história veio desse prompt (eu literalmente só peguei a primeira metade da frase): https://i.pinimg.com/564x/4b/c7/7c/4bc77c06e0bbff9e28738db3a10f9c35.jpg
— Acho que eu devia ter deixado isso nos capítulos anteriores para ajudar com o "clima", mas essas duas playlists foram todo o combustível da história. Fica pela sugestão/curiosidade mesmo:
https://www.youtube.com/watch?v=c1BJ4U9cJFc
https://www.youtube.com/watch?v=ihUVPIp4nJA
— Não achei que cabia mencionar na fic, mas como a Mila tem essa paixão por coisas antigas e recuperadas, e uma inclinação pela arte, eu imagino que ela vai trabalhar com restauração de obras de arte no futuro. É, info aleatória jogada aqui mesmo kkkkk
Eu espero que tenham gostado. Agradeço muito a quem acompanhou a história, apesar das atualizações demoradas. Muito obrigada mesmo! ♥ Se quiserem deixar um comentário, falar o que gostou, falar principalmente o que NÃO gostou, que é pra eu saber se errei em algo XD Ou só dar um oi, também vou ficar feliz :3
Até a próxima vez que nos encontrarmos! ♥