O Museu das Coisas Desaparecidas escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 3
O Fantasma


Notas iniciais do capítulo

Sem banner hoje porque estou postando por impulso, confesso. O que também causou uma mudança de planos, essa fic vai ter cinco capítulos, não quatro. É que eu não queria que os capítulos ficassem "longos", queria manter entre 1.500-2.000 palavras, então acabei dividindo o que seria o capítulo 3 e dando um título diferente.
Enfim. Boa leitura ♥



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A menina sentia que aos poucos estava se desprendendo da noção de tempo. Era estranho. Quando batia o cansaço e ela precisava dormir, percebia que isso vinha se repetindo, mas não sentia que suas “noites” de sono eram confiáveis para marcar a passagem dos dias. Principalmente quando fechava os olhos e enxergava novamente a floresta, como o Curador havia ensinado quando se conheceram. Tudo parecia exatamente igual, como se nem uma hora houvesse passado enquanto sua estadia no Museu já deveria durar dias em sua percepção.

De qualquer forma, ela andava menos cansada. Era um bom sinal, estava se sentindo mais forte! Ela dormia menos, sentia menos fome, e o frio da floresta já não parecia incomodar. Precisava dizer ao Curador quando o encontrasse novamente, ele sempre parecia tão preocupado em garantir que ela tivesse tudo o que precisava. Ela nunca quis incomodá-lo, por isso não o acompanhava tanto quanto gostaria. O Curador garantia que a companhia dela não atrapalhava; pelo contrário, as perguntas que ela fazia o deixavam empolgado como se fosse ele a criança explicando a um adulto o mundo visto em seus sonhos. Mas ele também parecia uma pessoa muito ocupada – era só olhar ao redor para ver o resultado de seu trabalho –, e quando começou a fazer perguntas que o Curador parecia não saber as respostas, aquelas perguntas de criança, que as pessoas nunca teriam se preocupado antes, ela achou melhor se afastar um pouco.

Tinha aprendido que estar por perto incomodava as pessoas, mas ela nem sempre entendia o que fazia de errado. Às vezes só queria fazer uma pergunta, e os olhares duros que recebia em resposta apenas a deixavam com mais dúvidas. “Não vê que estou trabalhando?” Quando o assunto era ela, sua mãe estava sempre trabalhando – mesmo quando não estava –; e ela, sempre atrapalhando. Não queria que o Curador começasse a pensar da mesma forma, então fugiu um pouco de sua companhia.

Mas a coleção do Museu era fantástica, ela conseguia se distrair mesmo sozinha. Tudo ali parecia tão rico em história, mesmo sem o Curador por perto para explicar o que os levara até lá. Ela passava pelas estantes, segurando uma coisa ou outra nas mãos e imaginando seus segredos. Até fechava os olhos e se esforçava para ver algum lampejo como ele fazia, mas as coisas desaparecidas não pareciam dispostas a compartilhar com ela seus mistérios. Chegou a pensar que o Curador a estava fazendo de boba, mas gostava das histórias de qualquer forma, mesmo que fossem mentiras. E talvez não fossem mentiras, já que ele realmente a viu na floresta.

Como não conseguia ver os lampejos, contentou-se em inventar as histórias ela mesma. Passou pelo quadro de uma mulher muito bonita olhando distraidamente para um campo. Talvez fosse um amor do pintor! Imaginou-se no lugar dele, tentando reparar nas cores como pensava que um artista faria, mas se distraía das cores e sempre voltava ao quadro completo. Como teria sido aquele momento? Estar na companhia de alguém que se gosta, guardando cada detalhe de sua imagem, conversando com amabilidade, com a mulher apontando algo na paisagem enquanto as horas passadas juntos escorriam coloridas sobre a tela. A história imaginada não explicava como o quadro se tornara uma das coisas desaparecidas, mas isso era um detalhe.

Em um corredor, encontrou uma estante abarrotada de livros chamuscados, mas as páginas por dentro estavam em bom estado. Um deles tinha uma dedicatória estranha:

Mut, meine Liebe. Wie der Weise sagte: "Je höher wir uns erheben, um so kleiner erscheinen wir denen, welche nicht fliegen können."

Ela, que ainda não lia muito bem nem em sua própria língua, não soube nem adivinhar qual era a língua em que estava escrita. Será que o Curador sabia o que dizia? Levou o livro consigo. Infelizmente estava carregando tantas coisas interessantes que precisava deixar algumas para trás a cada novo interesse. Só então pensou sobre a bagunça que devia estar fazendo. Será que ainda lembrava onde encontrara cada coisa? Podia tentar devolver...

Mas todos os seus planos continuariam sendo apenas planos. Logo se distraiu com uma pilha de caixas e baús antigos do outro lado do corredor.

Enquanto isso, o Curador não estava nem de longe tão ocupado quanto a menina pensava. Poderia estar, com todos aqueles objetos que não paravam de chegar, mas, com a caixinha de música nas mãos, apenas refletia sozinho.

Ele não diria ter muitas apreensões. Nada podia realmente preocupá-lo. Todas as tragédias que testemunhava pelos objetos estavam em um plano que não alcançava mais, portanto, eram imutáveis no que lhe cabia. Não tinha lógica em carregar o peso delas.

Fantasma.

Era mesmo a palavra certa.

"Por que você está aqui?", ela tinha perguntado enquanto brincava com uma pelúcia. A menina não tinha parado de fazer perguntas, o que jamais seria um problema, mas duas dessas perguntas ainda rondavam sua mente. "Se não tem outros fantasmas aqui, é porque eles devem ir para outro lugar… Não é?"

Impressionava-o como ela podia ser tão certeira em suas observações enquanto apenas brincava de questionar. Crianças, ele pensou. Depois estranhou a sensação familiar de já ter convivido com alguma.

De fato, o Curador sabia bem o que era e jamais havia visto outro como ele por ali. Não se importava tanto com onde ele deveria estar, porque ele estava ali, no Museu das Coisas Desaparecidas, e isso levava a uma conclusão lógica: ele estava perdido. Ele havia perdido algo, ou alguém o havia perdido. Ou ambos, o que era mais provável.

Ele dizia a si mesmo que estava pensativo e que não haviam apreensões. Mas quando o fim da música fez cair a opressão do silêncio, ele soube que era mentira, pois um incômodo temor permeava sua consciência; o temor de saber que era o assombro nos pesadelos de alguém.

Desatento aos próprios movimentos, deixou a caixa de música em qualquer lugar e se levantou. Precisava se distrair. Uma memória puxava outra e ele não queria seguir aquele fio outra vez.

Que continuasse perdido. Que o esquecessem, e ele, ao seu coração. Apenas o esquecimento traria paz.

Mas até quando podia se forçar a esquecer? Havia chegado ao Museu com poucas memórias, quando este ainda nem tinha tal aparência. Quando não era nada além de uma dimensão etérea, a foz de um grande rio para onde fluíam promessas desgarradas, e aos poucos foi tomando aquela forma, preenchido pelas memórias que o Curador se recusava a recuperar, porque mesmo as memórias perdidas de um fantasma perdido eram atraídas para aquele lugar.

"Quem criou o Museu?", ela também tinha perguntado, no mesmo tom casual em que uma criança perguntaria por que o céu é azul. O segundo questionamento que o deixara naquele estado contemplativo. Mas esse, ele tinha respondido para si mesmo em pensamento.

"Não é óbvio?" Não, nada ali era óbvio para ela como era para ele. Aquele lugar já existia quando ele chegou, apenas não tinha aquela aparência. Jamais foi criado, mas tinha sido, sim, construído. Ele conhecia aquele lugar. Tinha a impressão de conhecê-lo em detalhes por dentro e por fora, mesmo que não houvesse lado de fora. Estava enraizado ali. Não… Enraizado não. Submerso. "Fui eu."

— O senhor voltou! – ela comemorou.

Só então ele percebeu que estava vagando sem rumo pelos corredores, mas se havia chegado até ali, sem dúvida era aonde queria chegar. O Museu funcionava assim. A menina pegou um livro dentre as coisas que carregava. Notou que ela não estava mais usando a manta e não tremia mais pelo frio da floresta em que havia sido deixada. Mas espanou uma folha seca que estava emaranhada no cabelo dela, pensando que talvez ela ainda estivesse muito ligada à floresta em que fora deixada. Se ela abandonasse aquela ligação, poderia comandar a própria forma. Vestir roupas limpas, curar seus ferimentos… Mas ele jamais sugeriria a ela algo dessa natureza.

— O senhor consegue ler isso? Eu não sei que língua é.

— Não é a que estamos falando? – Com a negativa dela, ele notou pela primeira vez que nunca teve dificuldade alguma para compreender anotações ou gravações nos objetos que recebia. Pensando agora, era algo que deveria ter percebido. Ele realmente achou que tudo ali estava em sua língua? E qual era mesmo a sua língua? Espantou as dúvidas, lendo para a garota as palavras que ela apontou. – "Coragem, minha querida. Como diz o sábio: 'Quanto mais nos elevamos, menores parecemos àqueles que não sabem voar’¹."

Ela segurou seu braço para olhar para o livro como se esperasse ver palavras diferentes escritas, mas ainda era incompreensível a seus olhos. Que magia era entender aquelas palavras…

— Para que ela precisa de coragem? – perguntou, ansiando por ouvir mais de suas história.

Ele não sabia, era algo além do que levara o livro até o Museu. A pessoa a quem a dedicatória se destinava não era mais a dona do livro quando ele parou nas chamas junto aos outros. Estava para responder quando um dourado fugaz refletiu a pouca luz, capturando sua atenção. Então a resposta esmaeceu como fumaça pálida ao vento. O Curador apontou para o pingente do colar que a menina usava.

— Isso estava em uma caixa fechada… não estava?

Ele não falou com raiva, mas a menina se preocupou que o tom diferente de seriedade significasse que ela tinha feito algo errado. Pegou o pingente, um relicário dourado em formato de coração.

— Desculpe… Eu não devia ter pego sem perguntar!

— Espere!

A garota devolveu o colar com tanta pressa, que apesar do reflexo de recusar o objeto, o Curador se obrigou a agarrá-lo, seria pior se o deixasse cair por descaso. Era estranho ter aquilo na palma da mão, e quando levantou o olhar, ela já tinha sumido, como se tivesse medo de receber alguma repreensão.

Suspirou, sem uma desculpa boa o bastante para evitar olhar para o relicário. Fez menção de tocá-lo com a mão livre, mas seus dedos pairaram sobre o metal dourado sem se aproximarem mais. Não esperava encontrar o colar novamente, o que era estranho, já que não lembrava a quem pertencia ou como o reconhecia. Sabia apenas que o queria longe, trancado em algum lugar daqueles corredores. Sempre permitiu que os visitantes desbravassem aquele acervo inteiro, exceto por aquilo, que toda vez ele desviava do caminho de olhares curiosos…

E a menina tinha encontrado. É claro que tinha encontrado. É claro que traria aquilo para ele.

O som distante das ondas no mar que não existia ecoou mais forte, e por um instante parecia soar de dentro, como se as ondas arrebentassem furiosas em seu peito em vez da praia. Obrigou-se a abrir o relicário, esperando encontrar uma resposta, mas o que quer que guardasse, agora estava indecifrável, estragado pela água e pelo sal.

O Curador riu sem alegria ao ter negada a resposta que queria. Mas o riso foi cortado por uma tosse ruidosa e engasgada, forçando-o a curvar o corpo para a frente, cuspindo água salgada. A garganta queimava por ar como se estivesse se afogando, uma sensação era familiar. Havia experienciado vez após outra, mas nunca ali, apenas nos pesadelos de alguém. Deveria estar seguro nos corredores do Museu.

Quando a tosse parou, devolvendo-lhe não o ar, já que não respirava mais, mas a sensação de alívio de voltar à superfície após um mergulho mais do que demorado, foi que percebeu o quanto estava cansado. Não viu quando se sentou, talvez tivesse caído de joelhos enquanto sufocava, mas em vez de se levantar e procurar pela menina para garantir que ela não ficasse preocupada à toa, apenas continuou olhando para o coração na palma da mão.

O que isso já significou para mim?”

Mesmo que ainda pudesse afetá-lo, o passado era o passado. Estava lá fora, tinha ficado para trás. Levantou-se para encontrar a menina, mas antes levou o colar ao bolso interno do paletó, sugestivamente próximo ao próprio coração.


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Notas finais do capítulo

¹Nietzsche. "Aurora", aforismo 574. Espero não ter errado muito no alemão, a citação eu peguei direto do livro, mas a mensagem anterior eu tive que recorrer ao tradutor, então nunca se sabe .-.
Eu adoro dedicatórias, vocês não? Mas admito que é um pouco frustrante comprar um livro no sebo com dedicatória e ficar sem saber quem escreveu a dedicatória, para quem estava dando o livro e o que aconteceu para que o livro fosse parar num sebo, eu sou fofoqueira ;-;
É meio que o clima da história deixar as coisas meio vagas, mas eu fico olhando e pensando: "mds, tá meio mal explicado isso tudo" kkkkkk Mas espero que esteja um "mal explicado" charmosinho XD
Enfim, eu espero que tenham gostado ♥