O Museu das Coisas Desaparecidas escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 2
O Museu




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O Curador não estava com a concentração em sua melhor forma, o que não era comum, mas nem mesmo sua dispersão era estável. Às vezes ele se perdia em pensamentos, passando o mesmo objeto de uma mão para a outra sem o foco necessário para pensar no que mexia, por que estava ali e onde guardar, pois certa garotinha perdida em algum corredor sombrio ocupava sua mente com preocupações inéditas para sua existência cada vez mais incerta. Porém, diametralmente oposto a esses momentos, ele se voltava com todo o ardor para suas tarefas sem dedicar um mísero fragmento de ponderação sobre aquela curiosa criatura ao ponto de esquecer brevemente o encontro inusitado.

Até que algo o trazia de volta. Um brinquedo de criança perdido, uma fotografia rasgada de uma família separada… Esquecia o que estava fazendo e se perguntava se ela ainda estaria lá quando voltasse àquele corredor. Talvez nada tivesse acontecido, talvez tivesse imaginado toda a conversa, mas sabia que a hipótese era uma tolice.

Em uns momentos pensava ouvir passos apressados de uma criança saltitando pelo piso de madeira envernizada ou na voz preocupada dizendo que tinha que esperar pela mãe onde fora deixada, e concluía apenas que às vezes o Museu podia ser cruel. Depois mudava sua opinião. O Museu não tirou a criança da vida que tinha antes, apenas a abrigou quando ela já não tinha nada. Mas, fora seus monólogos contemplativos, a criança estava fora de sua mente quando se concentrava.

Espanou da capa de um livro de folhas chamuscadas suas cinzas, haviam outras centenas como aquele. Todos queimados, todos destruídos. Não de fato, pois as páginas ainda eram legíveis no Museu, mas haviam sido destruídos em algum outro lugar. Ele nem sempre entendia o que os objetos significavam ou por que não apareciam todos juntos no Museu, mesmo que nitidamente tivessem sido destruídos na mesma noite, e mesmo que sentisse vislumbres do que se passara ao tocá-los. O calor irradiando de uma grande fogueira que o fez fechar os olhos mesmo nos salões escuros do Museu, com o brado incompreensível e visceral de uma multidão que continuava a alimentar o fogo com os escritos de seu próprio povo… Balançou a cabeça, afastando-se do calor e do barulho sufocante. Deixou o livro com os outros do seu tipo, com um suspiro curto de incredulidade, o máximo de reação que demonstrava em sua rotina.

— Tem certeza que é isso que veio ver?

Não costumava ver os visitantes, mas sabia que livros queimados os atraíam bastante. Podia senti-los por perto, e sempre se perguntava se eram seus autores ou seus donos que lamentavam. Ou apenas os poucos rostos melancólicos na multidão, cujo silêncio era engolido pelos gritos apoiadores de seus semelhantes, que de semelhantes nada tinham. No entanto, aquele espectro indistinto inclinava-se sobre outros assuntos. O Curador não tinha o direito de restringir o acesso a nada no Museu e raramente falava com um deles, mas algumas coisas… algumas coisas ele sentia que deveriam continuar perdidas.

Ao receber a reprimenda, a sombra do visitante se retraiu da direção que contemplava e desvaneceu. Acordaria em um mundo mais concreto e real e provavelmente não lembraria de já ter estado no Museu até que precisasse retornar. Tão logo ele desapareceu, o Curador o esqueceu, almejando voltar aos seus assuntos.

— Senhor Curador?

O puxão leve na manga do terno cinzento o fez despertar duas vezes: a primeira, de seus devaneios com rostos receosos e livros incinerados, com visitantes curiosos e caixas seladas; a segunda, do vazio costumeiro da rotina. Não se acostumaria a ter outra pessoa por perto. Ocultou a desatenção em um olhar sério, porém prestativo. Unindo as mãos atrás do corpo e franzindo as sobrancelhas, encarou a menina.

— Pois não, senhorita?

Ela abaixou a cabeça, preocupada que tivesse atrapalhado seus afazeres. Pequenas folhas verdes se emaranhavam em seu cabelo e os dedos que seguravam a manta sobre os ombros traziam traços claros de geada, mas ela tremia menos. Não soube dizer se isso era bom ou ruim.

— Foi mesmo muito fácil encontrar o senhor.

— Precisa de alguma coisa?

— Eu… estou com fome.

— O que precisar… Espera, você disse fome? – Ergueu uma sobrancelha, questionando no mesmo tom que usaria caso ela tivesse dito que um lago cor de rosa havia se formado no centro da biblioteca, e nele um golfinho estudava uma pilha de livros sobre macroeconomia. – Tem certeza?

Ela balançou a cabeça, mas nem precisaria, pois o ronco do estômago lhe serviu de testemunha. O Curador permaneceu com aquele olhar parte calmo, parte descrente.

— Ah. Que estranho.

Movendo-se o mínimo, ainda com os braços para trás em uma postura prestativa, o Curador olhou ao redor, claramente sem ideias do que fazer. Nem percebeu que havia dado um giro sem sair do lugar até encontrar-se novamente de cara com a menina. Apesar de parecer uma suposição absurda, ela questionou mesmo assim:

— Não tem comida aqui, tem?

— É claro que tem. Em algum lugar. Eu volto já.

Antes que ele se afastasse, a menina segurou novamente sua manga. Mesmo que tivesse sido fácil encontrá-lo, ela não queria que ele fosse embora e desaparecesse pelos corredores novamente.

— Eu posso ir também?

Internamente, o Curador lamentou sua inépcia para lidar com aquela situação. Ela era uma criança, estava sozinha, e ele vinha sendo muito insensível em achar que podia lhe dar as costas e continuar trabalhando. Ele não se definiria como uma pessoa insensível, mas reconhecia que era injusto ser tão impressionável por objetos e tão distante quando o assunto era uma pessoa real na sua frente.

— É claro pode. Eu não disse que lhe contaria a história das exposições?

A animação da menina ultrapassou as barreiras de sua timidez, mostrando-se num sorriso. Ela segurou sua mão, esperando que guiasse o caminho, e a única coisa em que o Curador pensou, após o estranhamento pelo gesto, foi em como a mãozinha dela, mesmo parcialmente coberta de gelo, ainda parecia mais quente que a sua.

— Não precisa ter medo de se perder. Isso não acontece aqui. Se souber aonde quer ir, então saberá chegar lá.

— Mas… isso não é assim em todo lugar? Se a gente sabe onde algo fica…

— Eu não disse “saber onde fica”, eu disse “saber onde quer chegar”. É bem diferente. Você não sabia onde eu estava, mas sabia que era onde queria chegar, então você me encontrou. Entende?

— Não…

— Tudo bem, eu também não. Só saiba que você pode perambular por aqui o quanto quiser e nunca vai se perder. Espere aqui um instante.

Ele soltou sua mão e partiu abrindo caminho sobre alguns objetos aparentemente sem padrão. Passou por trás de um móvel, murmurando coisas como “Eu tenho certeza que vi por aqui” e “Isso aqui é novo… Não, deixa pra depois…” e outras coisas ditas para si mesmo, a ponto dela começar a se perguntar se ele tinha esquecido que a deixara esperando e simplesmente voltara ao trabalho. Mas logo ele retornou com um prato de um café da manhã completo, o vapor quente indicando que acabava de ser preparado, e tanto a visão quanto o cheiro da comida fizeram seu estômago gritar em ansiedade.

O Curador improvisou um lugar para sua refeição, usando como banco um baú de madeira gasta e tranca emperrada, e um tabuleiro elegante de algum jogo antigo como mesa. Ele sentou no chão mesmo, sem se incomodar em fazer algo para si, e colocou o prato diante da garota.

— Acho que vai gostar.

— Você que fez?

— Claro que não. – Ele riu. – Pertence ao Museu, como todas as coisas desaparecidas.

— Como alguém perde um prato de comida? – Ela não esperou pelas explicações antes de comer a primeira garfada. Estava delicioso como nunca experimentara. – O senhor não vai comer nada?

— Eu não como mais. E ninguém perdeu um prato de comida. Veja bem… – Pensou por um momento sobre como explicar aquilo para ela. Talvez nem precisasse explicar nada, mas descobriu rápido que gostava de compartilhar o que sabia sobre o Museu e suas exposições. Afinal, era o único assunto do qual tinha conhecimento. – Existem dois tipos de coisas perdidas entre os pertences do Museu. A maior parte é realmente de coisas perdidas, como essa manta que está usando ou os livros que eu estava guardando. Outros não são bem objetos, mas memórias, promessas, expectativas… São representações de um valor emocional perdido de forma abrupta.

— Então… – perguntou, desconfiada. – Isso está aqui há muito tempo?

Ele deu um sorriso complacente para a pergunta repetida. Sabia que era difícil se desprender da percepção do tempo, então era bastante paciente.

— Não existe isso aqui, menina. Os objetos chegam quando chegam, é o máximo que dá para atribuir ao tempo. Não percebeu que a comida ainda está quente e o cheiro ainda está forte? Isso acabou de ser feito, mesmo que já estivesse aqui, esperando.

Ela assentiu. Ainda não tinha entendido bem, mas a comida claramente era nova.

— Isso é uma memória sua?

— O quê? Não, minha não! Você não consegue mesmo sentir?

Com a boca cheia, respondeu com um aceno negativo. O Curador estranhava o porquê dela não perceber as histórias nos objetos, já era a segunda vez. Pensou se a habilidade de entender aquelas histórias era algo próprio dele ou se ela apenas ainda não pertencia ao Museu da mesma forma que ele pertencia.

— Disse que me contaria as histórias. Sabe mesmo todas as histórias que estão aqui?

— Apenas lampejos… Só vejo o que importa em volta do objeto. – Ele tocou de leve a borda do prato com o indicador, seu semblante tinha um ar distante, como se lembrasse de uma memória antiga. – Tinha um garoto, acho que ainda menor do que você… Os pais trabalhavam muito numa fábrica, então ele praticamente era criado pela avó, que ele adorava. Todos os dias eles conversavam por longas horas, principalmente quando ela cozinhava e ele insistia em ajudar em vez de ir brincar só para poder ficar mais perto. Ele parecia muito feliz. Mas os pais acharam que seria melhor tentar a vida em outro lugar. Acho que não contaram para ele, pois quando se despediu da avó, ele não sabia que estava falando com ela pela última vez. As horas de conversas e histórias acabaram só como uma lembrança distante depois disso, mas tenho certeza que lembrar da infância sempre lhe trouxe paz. Por isso achei que a comida lhe traria um pouco de paz também.

A criança o encarou com a testa franzida.

— Mas isso é muito triste.

— É?

— Ele nem sabia que não a veria mais! Se soubesse, talvez tivesse prestado muito mais atenção no que conversaram, e teria mais lembranças.

— Mas o que eles conversavam não é tão importante quanto com quem. Você ainda é pequenininha para saber disso, mas, quando as pessoas crescem, elas não lembram do que conversavam ou faziam na infância, lembram apenas de quem estava lá com elas. A memória é boa o bastante para o garoto, ele sempre vem visitar a avó em seus sonhos.

— O senhor já falou com ele?

— Não, ele não me vê nem eu o vejo, só sei que está lá.

A menina ouviu outras histórias enquanto comia. Pela primeira vez, o Curador não sentiu urgência alguma em retornar à rotina. Não conseguia lembrar da última vez que conversou com alguém. Na verdade, não conseguia lembrar sequer de já ter conversado com alguém antes da menina chegar. Certamente não parava para cumprimentar os visitantes no Museu, que estavam em um nível de existência muito diferente do dele para que a comunicação tivesse algum propósito. Estava habituado ao som da própria voz, mas falar para si mesmo não era nada como falar com uma criaturinha curiosa e questionadora como a criança.

Quando ela terminou de comer, começou a examinar as prateleiras com interesse, apontando e perguntando as histórias por trás de cada coisa. Às vezes fazia menção de tocar em algo, mas desistia no meio do movimento.

— Pode pegar se quiser – informou, ao vê-la reprimir o gesto pela terceira vez.

— Minha mãe diz para não mexer nas coisas. Ela diz que eu estrago tudo o que toco.

— Bom… – Sempre que a razão da garota estar ali vinha à tona, ele perdia o rumo de seus pensamentos. Estava novamente em seu primeiro encontro, quando tudo o que queria era não precisar ser responsável por ela naquela situação, nem mesmo ter de explicar a situação em si. Mas sabia que era um desejo egoísta que só trazia conforto a ele mesmo. Ainda assim, não conseguiu dizer o que precisava. Mudou o rumo dos pensamentos, respondendo apenas o literal. – Você não precisa se preocupar com isso aqui. Nada aqui se quebra. A menos que já esteja quebrado, mas aí não seria por sua causa.

— Como assim? Também guarda coisas quebradas?

— Às vezes…

E não explicou mais. Coisas quebradas geralmente tinham histórias que uma criança não precisava ouvir. Como a taça quebrada no alto da prateleira, estilhaçada em vários pedaços quando um homem a arremessou contra a parede na primeira vez que gritou com a esposa. A taça nunca se reconstruiu, assim como o futuro imaginado por ela se desfez em uma única noite. Algumas coisas perdidas não podem ser recuperadas, e era melhor assim. Precisavam ser deixadas para trás e refeitas em outros lugares, com outras pessoas. Agarrar-se ao futuro perdido era insistir em beber de uma taça quebrada, sempre haveria o risco de sentir o gosto de sangue em vez do vinho.

Outros objetos quebrados tinham histórias igualmente agoniantes. Não tinha por que contá-las. Mas a menina podia perceber isso sozinha a qualquer momento, bastava apenas olhar para si mesma. Pálida, fria, cansada… Arranhões e cortes pelo corpo, grama entremeada nos cabelos e terra no vestido. Ela também estava um pouco quebrada, era ela mesma uma promessa perdida ou um futuro esquecido, apenas não tinha percebido.

Com a explicação parcial do Curador, a menina pegou de uma prateleira uma caixinha de música dourada. Uma bailarina girava no eixo ao som da Valsa das Flores de Tchaikovsky. Ele tinha a vaga impressão de que música não soava da mesma forma no Museu. Não lembrava de já ter ouvido música antes do Museu, mas sabia, de alguma forma, que a música trazia de volta um conceito perdido. Como se o tempo passasse a existir brevemente, apenas enquanto as notas soavam, e a melodia trazia um sopro de realidade para aquela dimensão ao mesmo tempo em que parecia torná-la também um pouco mais etérea.

— O senhor me ouviu? – Quando ele negou, a menina repetiu. – Perguntei sobre os visitantes. Como eles entram aqui?

— Como entram?

— É que eu tentei sair, mas as portas não abrem, nem as janelas. Achei que podia voltar para a floresta lá fora.

— Acredito que não há lado de fora. Eu disse, isso aqui não é bem um lugar… – Não soube interpretar o olhar que a garota lhe dirigiu. Mesmo que ela ainda parecesse confusa com tudo relacionado ao Museu, pensou ver um lampejo de compreensão e desconfiança surgir e sumir rapidamente. E então ela parecia apenas cansada. – A maioria dos visitantes vem… Bem, eles costumam vir dormindo. Vagam por aqui para rever o que perderam, às vezes tropeçam nos tesouros perdidos de outros também, e por isso descobrem histórias que não têm nada a ver com as deles.

— Eles estão sonhando?

— Sim, acho que sim… Mas também tem os…

— Pesadelos?

— Isso. É como se existisse um salão para os sonhos onde eles reveem memórias queridas. Você pode ir lá se quiser, às vezes é divertido. E um de pesadelos, para as memórias… marcantes, mesmo que não tão queridas. Você pode ir lá se precisar.

— Por que eu precisaria ir lá?

— Isso depende mais deles do que de nós.

A garota o olhou novamente com uma suspeita que se concretizava a cada instante. A suspeita que rondava sua cabeça deveria assustá-la, mas ainda parecia muito absurda para isso. Ou então estava cansada demais para pensar direito. Reprimiu um bocejo.

— Eu preciso dormir. – O Curador franziu a testa e nada disse, mas a menina achou uma reação parecida com o estranhamento de quando disse a ele que estava com fome. – O senhor não precisa?

Ele fez um gesto indiferente.

— Não mais.

Com essa resposta, ela resolveu fazer a pergunta antes que a timidez e o bom senso lhe roubassem a coragem.

— O senhor é um fantasma? – O Curador pareceu surpreso com a pergunta, mas não havia confusão ou estranhamento em seu rosto, o que, para a garota, foi resposta suficiente. Ainda assim, a proposição parecia tão absurda que ela se viu na obrigação de explicar. – É que… Como é que uma pessoa pode… não precisar mais comer ou dormir?

O instante de silêncio a deixou sem jeito, mas o Curador apenas sorriu de forma amigável.

— É, eu acho que essa é a palavra certa. Sim. Sou um fantasma.

Ele não sabia o que esperar depois disso. Imaginou vários cenários enquanto a garota o encarava em silêncio. Então ela abriu um sorriso vitorioso.

— Eu sabia! Então tá, boa noite!

E saiu para procurar um lugar para dormir, deixando o Curador para trás, confuso com a descoberta de que nem todas as crianças têm medo de fantasmas, e também com a despedida em um lugar onde não havia dia ou noite.


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Notas finais do capítulo

Acabo de perceber que eu estou muito no clima de fantasmas ultimamente, que esquisito kkkkk
Espero que tenham gostado do capítulo ♥