Fiat Ignis escrita por SophieRyder


Capítulo 9
Capítulo 8 ou "Três idiotas fazendo idiotices"


Notas iniciais do capítulo

[EDIT: A primeira vez que eu postei o capítulo, ao copiar o texto na área de postagem, algumas frases desapareceram. Eu percebi e corrigi, mas se você leu o texto antes disso e viu que algumas passagens estavam estranhas, ou faltavam frases ou palavras, eu peço imensas desculpas]

Peço desculpas pelo atraso, mas a faculdade me sabotou. Em compensação, trouxe um capítulo longo.

Como sempre, agradecimentos a meu Beta HolonExplorer por ajudar na revisão.



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— Leon, o Indomável!

Bernard interrompeu a narrativa para soltar tal exclamação.

— Quem? – Respondeu Charles, irritado.

— Leon, o cavaleiro impetuoso que acompanhava Christophe de Artois! – Percebendo o olhar de inquérito de seu interlocutor felino, Bernard percebeu que precisaria se explicar melhor – Ouvi um bardo falando sobre ele. Dizia que ele era um nobre guerreiro, gigantesco, tão feroz quanto um Ursaring selvagem, e que era extremamente leal a Christophe. Suas conquistas só não foram maiores do que as de seu companheiro, e ele era o único que conseguia se igualar com as habilidades dele.

Charles soltou um som que poderia ser entendido como riso. Ou como escarnio. Ou os dois. Era difícil saber.

— Guerreiro nobre? Conquistas? Que tavernas de baixa qualidade você tem frequentado?

Bernard pareceu ofendido com o último comentário.

— Se bem que ele estava certo quanto ao tamanho. Ele realmente era gigantesco. E quanto a lealdade, também. Mas chamar aquele bárbaro grosseiro de nobre guerreiro, é a melhor piada que eu ouvi em um século.

— Mestre, você poderia parar de destruir todas as histórias que eu escuto?

— Não é minha culpa se você não sabe lidar com a realidade. Você poderia parar de gastar seu tempo bebendo cerveja e ouvindo bardos, e se concentrar na sua pesquisa?

— ...Ai.

— Eu vou te contar quem era Leon. Ele era um pivete iletrado do vilarejo, filho de um alcóolatra e de uma plebeia. Ele era grande, rude, tinha o vocabulário de um Primeape particularmente burro, a inteligência e teimosia de um Rhyhorn que só sabe andar em linha reta, e a libido de uma Poochyena no cio. E Abigail o odiava.

— ...Isso de fato não parece muito nobre.

— E se eles não tivessem se conhecido, Christophe teria morrido muito antes de chegar perto de qualquer uma de suas conquistas. – Bernard o encarou, incrédulo. – E qualquer cavaleiro da mais alta nobreza ficaria envergonhado diante da lealdade e devoção que ele tinha para com Christophe.

 

—---

Abigail havia acabado de acordar, e ainda era bastante cedo. Seu pai roncava alto no aposento ao lado. A garota já estava bastante acostumada com os hábitos noturnos do progenitor, que passava horas a fio na madrugada lendo e fazendo anotações de suas pesquisas, e depois dormia durante boa parte da manhã. Como ele sempre dizia, entre risos, “um bom pesquisador trabalha a noite, e se alguém disser o contrário, desconfie do caráter dessa pessoa.”

Mas Abby gostava de acordar cedo, e aproveitar as primeiras horas da manhã. Ela levantou-se, lavou o rosto em uma pequena bacia de água que repousava em uma estante baixa ao lado de sua cama, e foi até a janela fechada e coberta por uma cortina fina, por onde entravam os suaves raios de luz do início do dia. Charles estava acordado, sentado imóvel em uma poltrona, os olhos azuis enormes e felinos observando os movimentos da criança. Abby abriu parte das cortinas, depois a janela, e sentiu o vento gelado do início de maio atingir seu rosto ainda quente da cama, dando-lhe um calafrio. Ela fechou a janela, arrependendo-se da ideia.

Você vai receber uma visita, e acho que será desagradável.”

A voz de Charles ressoou, como sempre, em meio aos próprios pensamentos da garota. As cordas vocais do felino não o permitiam que ele vocalizasse os mesmos sons que os humanos, de forma que sua “voz” não era bem uma voz no sentido estrito, mas algo como um fluxo de pensamento que invadia a privacidade da mente das pessoas. Entretanto, mesmo que ela não produzisse som algum, para Abby ela sempre soava como algo rouco, grave e aborrecido.

Apesar de Chris ser cansativo, não consigo imaginar como ele possa ser desagradável. De fato, ele é o exato oposto disso.”, respondeu a garota em sua típica comunicação silenciosa com o gato, supondo que ele se referia a Christophe.

Veremos.

Um som interrompeu o silêncio do quarto. Primeiro, o barulho de algo arranhando a pesada porta de madeira. Depois, um uivo prolongado e angustiado. Abby olhou para Charles alarmada. O som de garras arranhando a porta recomeçou, mais frenético.

Ela correu para a porta, e ao abri-la encontrou Arken arfante e ansioso. O cão movia-se de um lado para o outro, corria adiante no corredor, e retornava, apenas para encara-la, e depois repetir a mesma sequência.

Tem alguma coisa muito errada.”, pensou Abby.

Ele quer que você o siga.

Abigail entrou no quarto, vestiu uma calça e uma camisa com pressa, e colocou uma capa sobre seus ombros, porque o dia estava frio.

Você vem comigo.

Por quê?”, protestou o felino.

Porque sim.”, respondeu a garota, com mais intensidade do que o normal. Seu olhar acentuado e aflito que não demonstrava margem para qualquer tipo de contestação.

Charles soltou um grunhido de insatisfação, mas levantou-se da poltrona e a acompanhou até a porta. Norbert continuava dormindo.

 

—---

Leon e Christophe estavam sentados um ao lado do outro, encostados no muro de pedra, perto do portão do jardim. Chris estava em silêncio, abraçando suas pernas, encolhido e concentrado em lidar com as pontadas de dor que percorriam todo seu corpo, e seu rosto, parcialmente escondido pelos braços, não tinha uma expressão muito agradável. Ele havia enrolado o Emolga machucado em sua capa, e mantinha-o em seu colo, protegendo-o do frio – ele respirava pesadamente, apesar de desacordado, mostrando que ainda estava vivo.  Leon, sentado de pernas cruzadas, movia suas mãos nervoso, apertando as articulações de seus dedos, e furtando, de tempos em tempos, olhares desconfiados para a outra criança. Não sabia se deveria falar alguma coisa, se podia fazer alguma das dezenas de perguntas que passavam por sua cabeça, ou se deveria simplesmente ficar quieto. Ele não era bom em ficar quieto.

Decidiu observar Chris. Suas roupas claramente eram da mais alta classe, mas estavam arruinadas – sujas de terra, suor, saliva e sangue, e rasgadas em diversos pontos. Haviam muitos cortes em suas mãos, mas seu rosto, por algum motivo, estava intacto, tirando um pequeno arranhão no queixo. Seu cabelo comprido estava solto, sujo e bagunçado por causa do ataque, mas ainda descia com alguma leveza por suas costas. Leon se distraiu com o cabelo – sua cor branco-prateada era muito diferente de tudo que ele estava acostumado a ver no vilarejo, e, apesar da sujeira, havia algo aristocrático nele, ainda que o menino bruto não conseguisse entender exatamente o que era.

 Uma pequena mecha prateada escorregava cobrindo parte de seu rosto, e Leon percebeu que havia uma folha seca presa nela. Sem pensar no que estava fazendo, ele esticou sua mão para retirar a folha, e tocou no cabelo. Era macio.

Chris levantou os olhos para ele, confuso. Leon afastou a mão constrangido, segurando a pequena folha entre o polegar e o indicador. Ele gesticulou mostrando-a, e resmungou:

— Estava presa.

— Ah. Obrigado.

Outro sorriso. Leon sentiu seu rosto esquentar violentamente, e abaixou a cabeça para escondê-lo, coçando sua nuca constrangido. Mas Chris estava distraído demais para perceber o gesto de vergonha do adolescente.

Do outro lado do portão, eles ouviram um latido.

Abby, Charles e Arken adentravam no jardim, o cão na frente, e os outros dois seguindo-o. Chris deixou escapar um suspiro aliviado, e se aproximou do portão.

— Abbe! – Chamou ele, sem elevar muito a voz, pois não queria chamar a atenção de nenhum adulto no castelo. – Aqui!

A menina percorreu o jardim com o olhar, procurando a origem do som, até ver Chris sentado do outro lado do portão, com uma aparência deplorável.

— Mas... O que...

Ela não conseguia articular as palavras, tamanha a incoerência da cena. Em primeiro lugar, Christophe estava do outro lado do portão trancado, separado dela por um muro de sete metros de altura.

Como?

Em segundo lugar, ele estava coberto de sujeira, e seu cabelo estava solto e bagunçado, algo que ela ainda não tinha visto. Em terceiro lugar, ele estava segurando em seus braços um Emolga machucado. Em quarto, havia um garoto plebeu de pé atrás dele, como uma aparência muito consternada. E em quinto lugar, havia sangue. Muito sangue.

Essa última constatação deixou a garota com náuseas.

A consciência de Abby foi trazida a força de volta da realidade pela voz de Leon.

— Puta merda, você chamou outra criança?

Abigail não sabia quem era aquele garoto, mas ela ficou furiosa. Deu um passo para a frente e se preparou para responder a grosseria, mas foi interrompida por Charles.

Você não deveria se preocupar com o principezinho sangrando?

Abby parou, e concordou com a cabeça. Claro, não era hora para brigar.

— Calma, ele é meu amigo. – Dizia Chris a Leon, tentando amenizar a situação.

— Chris, o que foi que aconteceu? Como você foi parar aí?

Abigail finalmente havia conseguido colocar seus pensamentos em alguma ordem, e se aproximava do portão.

— Eu também queria saber. – Reclamou Leon.

Abby bufou.

— Quem é esse idiota? Foi ele que fez isso com você?

Leon se empertigou diante da acusação injusta. Como ele temia, os nobres provavelmente tentariam jogar a culpa nele. Até mesmo uma criança faria isso. Aquilo o fez cerrar os punhos e assumir uma postura agressiva.

— Escuta aqui... – Começou a dizer, mas foi interrompido por Chris.

— Não! Ele me ajudou. – Respondeu Chris aflito. - Bem... É uma longa história, mas primeiro eu preciso que você pegue a chave do portão. Ela fica guardada no...

Isso não será necessário.

Com um “click”, o cadeado do portão abriu. Sozinho. Abigail e Christophe olharam para Charles, entendendo a situação, mas Leon começou a gaguejar, perplexo.

— Mas... Mas...

A situação já era confusa o suficiente, e Abby queria resolver aquilo tudo o mais rápido possível.

— Depois eu explico. – Ela disse, abrindo o portão e agachando na frente de Chris – Consegue andar? Quer que eu chame alguém?

— Não, você não pode. – Ela o interrogou com o olhar – Se descobrirem que eu estou pulando o muro, não vou conseguir ir no bosque nunca mais.

— Você... Pulou... – Por um instante ela tentou entender o absurdo da frase, olhando para a parede de pedra enorme diante deles, mas percebeu que havia algo ainda pior. Leon engasgou ouvindo aquilo, mas ela o ignorou. – Espera. Não existe a menor possibilidade de você esconder isso. Você está sangrando. Eu preciso chamar um médico. Você deveria ver um médio. Pelo amor de Deus Chris, isso não é brincadeira.

— Se eles descobrirem, eu não vou poder te levar no bosque.

— ...O que?

— Nem te mostrar o lago incrível onde todos os animais reúnem. Nem as espécies raras que você só vai encontrar aqui.

Abigail o encarou por um instante. Engoliu em seco e balançou a cabeça, de um lado para o outro, frustrada.

— Por favor Abbe, por favor.

Aquele foi o golpe fatal.

— ...Ótimo. Como você acha que vai esconder isso?

— Vocês só precisam me levar para o meu quarto, enquanto ainda tem pouco movimento no castelo.

Era impressionante que uma criança tão pequena pudesse formular e explicar um plano tão ousado enquanto sentia dor. Mas Chris parecia decidido.

— Mas você não vai conseguir andar.

Chris se voltou para Leon, que continuava resmungando palavras incompreensíveis atrás dele.

— Leon, você pode me ajudar de novo?

Leon olhou para quem ele imaginava ser uma encantadora garotinha nobre, de olhos azuis enormes e brilhantes e suplicantes e...

— ...Ok.

Ninguém resistia a ele.

 

—---

 “Não existe a menor chance de isso dar certo. Vou enumerar três motivos para vocês. Primeiro, vocês vão ser descobertos. Segundo, vocês vão ser descobertos. Terceiro, vocês vão ser descobertos.

Pare de reclamar e me avise se alguém estiver vindo.

As três crianças, um Emolga, um Rockruff, um Growlithe, um Pidgey e um Meowstic se esgueiravam pelos corredores, tentando driblar os criados que já começavam a andar pelo castelo. Leon carregava Chris novamente, e soltava exclamações baixas a cada momento que eles viravam em algum corredor, e ele via algo novo. O garoto plebeu nunca havia colocado os pés na morada de um nobre. De tempos em tempos, ele fazia algum som mais alto, ou ofegava com o peso de Chris, ou parava para admirar alguma das riquezas do castelo, como as enormes tapeçarias bordadas que desciam pelas paredes, e os salões de festa suntuosos, tão destoantes do mundo em que ele vivia. Nesses momentos, Abigail virava-se para ele, irritada, colocando o dedo em frente à sua boca fina e mostrando os dentes.

— Shhhh.

Leon franzia o cenho, aborrecido, cada vez que a menina chamava sua atenção. A cena se repetiu algumas vezes.

Após alguns desvios, e algumas broncas silenciosas por parte de Abigail, as três crianças conseguiram chegar rapidamente no quarto. A ajuda de Charles havia sido fundamental: a capacidade de identificar com antecedência pessoas se aproximando nos corredores facilitava o deslocamento furtivo.

Enquanto Leon levava o menino, que ainda abraçava o pequeno Emolga com excessivo cuidado, em direção à cama, Abby colocou-se diante deles com os braços cruzados.

— Ok, agora você vai me explicar o que está acontecendo. – Disse ela em um tom imperativo.

Chris não parecia bem. Seu rosto estava pálido, e enquanto Leon o ajudava a sentar-se, ele deixou escapar um gemido.

— Eu também quero saber o que diabos uma garotinha nobre estava fazendo sozinha no meio da floresta.

Abby, surpresa, o encarou por alguns segundos em silêncio, o semblante cerrado. Charles soltou um som do fundo da garganta, que provavelmente era uma risada.

— O que você está falando? Chris é um garoto.

Se bem que eu consigo entender a confusão”. Pela primeira vez no dia, o felino estava achando aquilo divertido.

— Que? – Leon não parecia achar graça nenhuma nas duas crianças e no gato esquisito encarando-o com sobrancelhas levantadas.

— Um ga-ro-TO. – Insistiu Abigail, mudando sua voz para um tom pedante, destacando a última sílaba.

— Não é possível.

— É verdade. – Confirmou Chris.

Leon encarou Chris de cima a baixo duas vezes, tentado avaliar o seu corpo.

— Não.

— Ok, nós estamos claramente perdendo tempo. – A menina parecia interessada em interromper aquele diálogo ridículo. – E você está com cara de que vai desmaiar. – Disse ela para Chris. – Depois você me explica o que está acontecendo, primeiro a gente precisa parar esse sangramento.

Chris assentiu, e fez um sinal para ela ajudá-lo a tirar sua bota. Um pouco desajeitada, Abby desamarrou os cadarços dela, e se preparou para puxá-la.

— Acho que é melhor tirar de uma vez. – Chris concordou silenciosamente. Seu rosto estava péssimo. – Ok. No três. Um... Dois... Três.

Abby puxou a bota abruptamente, mas ela não terminou de sair. O que se seguiu seria uma cena hilariante para qualquer expectador, se ignorasse a gravidade da situação. Os olhos de Chris, que havia mantido alguma compostura até então, se encheram de lágrimas. Abigail congelou. Leon congelou. Os dois permaneceram mudos e hirtos enquanto duas enormes gotas desceram escorrendo pelo rosto do menino. E depois mais duas. E então, ele fechou os olhos, e um pequeno fluxo de gotinhas se formou em suas bochechas, descendo pelo queixo arranhado e pingando em suas vestes.

Aquilo era demais para a cabeça racional de Abigail processar. Ela sabia lidar com livros, não com humanos. Particularmente, não com humanos chorando. A garota permaneceu estática, segurando a bota com uma das mãos, encarando Chris com a boca levemente aberta e os pensamentos em branco. Charles emitiu novamente aquele som de riso do fundo da garganta.

Leon, que observava até então a cena de pé ao lado de Chris, começou a andar de um lado para o outro ansioso, balançando a cabeça, lançando olhares para as duas crianças e grunhindo palavras sem sentido. Até que ele parou bruscamente.

— Deixa que eu faço isso.

Ele empurrou Abigail de lado, e segurou a bota, respirando fundo. Depois mudou de ideia.

— Segura ela. – Disse em tom impositivo para Abby.

— Ele. – Corrigiu a garota, finalmente saindo de seu transe, torcendo o nariz após ser empurrada sem nenhuma cortesia pelo menino.

— Tá, que seja. Só segura. E não deixa ele gritar.

Abby encarou-o com muita ferocidade, mas depois de alguns segundos, assentiu. Ela subiu na cama e segurou os ombros de Chris passando seu braço sobre eles, e tampou a boca dele com outro.

— Ok, de novo. – Disse a menina. – Um... Dois...

Mas Leon não esperou o três e puxou com força a bota enroscada. O calçado foi arrancado sem qualquer resistência, e voou para um canto do quarto. Leon observou sua trajetória até o chão, antes de voltar seus olhos para as outras duas crianças na cama.

Chris não havia gritado. Nem sequer emitido algum som. Mas ele estava aos prantos, encostando sua cabeça em Abigail. E a garota simplesmente não sabia o que fazer com suas mãos, ou com ele, ou com aquela cena toda.

— Tá. – Resmungou Leon. – E agora?

 

—---

Levou um longo tempo para Chris se recompor. Nesse período, Abby e Leon permaneceram em silêncio, sem saber exatamente o que falar. Abby não podia deixar de pensar que se a situação fosse diferente, e não fosse Chris a criança machucada, ele provavelmente saberia o que fazer. Leon andava ansioso pelo quarto, olhando de tempos em tempos a janela, para checar a posição do sol. A manhã avançava e o quarto aos poucos se aquecia com o fraco calor que entrava pela janela. 

Quando Chris finalmente conseguiu voltar a falar, Leon estava claramente estressado. Sua expressão corporal indicava muita insatisfação com tudo o que estava acontecendo. Abby tentava ignora-lo, mas Chris não pôde deixar de perceber os sinais de ansiedade.

— Bem... Nós precisamos fazer curativos agora. – Disse Chris, tentando recuperar um pouco de compostura. E então apontou para o Emolga. – Nele primeiro, ele está bem pior do que eu.

— Eu preciso ir embora. – Resmungou Leon.

— Você não pode. – Abby retrucou, desinteressada.

— Por quê?

Ela suspirou. Chris a olhava, apreensivo. Era óbvio que a essa altura do dia todos já estavam acordados e circulando pelo castelo, seria impossível levá-lo para fora sem ninguém perceber.

— Agora o castelo está cheio de gente... – Disse Chris lentamente - Só vamos conseguir te levar para fora a noite.

Leon parou abruptamente, e os encarou furioso.

— Ei, ei! Vocês criancinhas nobres podem ficar à toa o dia inteiro, mas eu preciso trabalhar. Não posso passar o dia todo aqui de babá de vocês!

— Você não é tão mais velho que a gente. – Respondeu Chris, juntando todas as forças que lhe restavam para gesticular com a mão que Leon falasse mais baixo.

— É, você tem cara de pivete. – Completou Abby.

— Eu já fiz quatorze anos, ok?

— Um pivete.

— Minha irmã é mais alta que você.

— Argh. Eu ainda tô crescendo, ok? Meu pai era um homem enorme, eu vou ficar muito, muito alto.

— Quais as chances de um camponês desnutrido crescer mais que um nobre?

Mínimas. Mas até que ele é bastante parrudo.

— Parece um Vigoroth raivoso.

— Um o que? Quer saber, já chega. Eu já salvei a princesa na floresta e trouxe ela para casa. Vou embora agora. Deem um jeito de me levar para fora!

Abby e Chris se entreolharam por um instante, pensando simultaneamente em um jeito de impedi-lo de fazer algo tolo.

— Se você ficar, a gente te dá comida. – Falou Chris, depois de um breve momento, baixando o tom de voz novamente.

— É, comida. – Confirmou Abby, rapidamente entendendo o plano do outro.

— Comida muito boa.

— Pão fresco e quentinho, com mel de Combee. E carne macia de Sawsbuck.

— E tortinhas de maçã.

Leon engoliu em seco por um instante, tomando consciência de seu estomago vazio. Depois de um dia longo de trabalho, a única coisa que o esperava era um pedaço de pão duro.

— O velho vai me matar. – Resmungou ele. Mas a fome era muito grande. Faziam semanas que ele não comia carne. – Ok, eu fico.

Isso foi fácil.”, pensou Abby.

Vocês são bem astutos para a idade.

 

—---

Abigail se esgueirou para dentro da cozinha do castelo, acompanhada de Charles. A situação toda no quarto havia se prolongado por bastante tempo, até Chris parar de chorar, e agora já passava da metade da manhã. Abby não gostava do que estava prestes a fazer. Ao contrário de Chris, que já a muito tempo se aproveitava de sua aparência inocente para ter suas vontades atendidas pelos os adultos a sua volta, ela não era habituada a atuações desse tipo. Mas bem, ele havia pedido ajuda. E ela tinha concordado.

Tentando colocar em seu rosto a cara mais simpática possível, o que não era seu hábito, ela se aproximou de uma das criadas, que estava sovando uma massa de pão. A mentira já havia sido planejada previamente, e só precisava ser colocada em ação. Isso não impediu Abby de gaguejar quando começou a falar.

A desculpa era bastante elaborada. Ela e Chris haviam encontrado um livro novo, muito, muito difícil, e muito interessante, e pretendiam passar a tarde toda tentando ler ele. Como ele era excessivamente difícil, eles não queriam sair do quarto, e Chris havia pedido para ela buscar coisas na cozinha para eles comerem durante o dia. Não havia motivos para as criadas duvidarem da história, afinal, Chris era um garotinho adorável que gostava de estudar, e agora havia encontrado outra criança igualmente interessada em livros e a arrastava todos os dias pelo castelo. Parecia coerente. Sim.

As palavras gaguejadas de Abby não causaram desconfiança nas criadas, pois para todos os fins, ela só parecia uma criança tímida. Como Chris havia previsto, elas aceitaram a história inventada e começaram a preparar uma cesta com lanchinhos para o dia todo. Enquanto Abby as distraia fazendo comentários aqui e ali, Charles, furtivo, usou seus poderes psíquicos para tirar uma pequena garrafa de vinho de uma das estantes e leva-la para fora da cozinha.

Ao sair da cozinha com uma grande e desajeitada cesta de comida, Abby gesticulou para Charles esconder a garrafa dentro dela.

“E agora?”, perguntou o gato, entediado.

Você sabe.

Os dois começaram a andar pelos corredores.

— Eu não acredito que estou fazendo isso. – Resmungou Abby.

Você se colocou nessa situação.

Abigail e Charles entraram furtivamente no quarto de Charlotte. Segundo as instruções de Chris, ela guardava lá dentro uma caixa com ataduras, pomadas e emplastros. Era mais fácil surrupiar tais itens do quarto dela, do que dos armários da sala do médico que vivia no castelo. Chris havia dito que, nesse horário da manhã, Charlotte estaria cavalgando, e ninguém entraria no quarto.

— Tem certeza que ninguém está vindo?

O que eu ganharia mentindo para você? Prefiro observar de fora os seus planos dando errado.

 

—---

Leon olhava desconfiado para Chris. Os dois estavam no quarto, esperando Abigail retornar. As crianças haviam enrolado e amarrado um pedaço de pano em sua perna, numa tentativa de diminuir o sangramento. Chris continuava sentado na cama, agora com os olhos inchados por chorar, resignado e em silêncio. Talvez sua determinação de resolver aquilo sem a ajuda de um adulto estivesse diminuindo. Um silêncio pesado pairava entre os dois. Até que Leon o interrompeu.

— Tem certeza que você é um garoto? – Disse ele olhando-o torto.

— Quer que eu te mostre? – Respondeu Chris.

—... N-não.

Leon corou, pela terceira vez no dia. Entretanto, dessa vez se sentiu idiota, tomando consciência lentamente de que estava agindo daquele jeito por causa de um garoto.

A conversa foi interrompida pelo som de duas batidas na porta. Chris enrijeceu seu corpo, nervoso, e Leon levantou da cama bruscamente. Uma voz soou do outro lado.

— Sou eu. Não consigo abrir.

Reconhecendo a voz de Abigail, Leon andou até a porta e a abriu. A menina entrou desajeitada, carregando a cesta em um dos braços, e uma pesada caixa de madeira no outro.

— Desculpe a demora, não foi fácil carregar tudo isso. – Reclamou a garota, entre dentes.

— Você não poderia pedir para o Charles fazer as coisas flutuarem até aqui? – Perguntou Chris, aflito.

— Boa sorte tentando fazer esse gato ranzinza te ajudar do jeito fácil.

Charles ignorou totalmente o comentário e foi se acomodar em uma das poltronas do quarto.

 

—---

Você não faz a menor ideia do que está fazendo.

Abigail havia ajudado Chris a tirar suas roupas, limpado os ferimentos, primeiro com água, depois com vinho, e agora tentava decidir quais das pomadas furtadas ela deveria usar.

Calado. Eu li um livro sobre isso.

Ah. Claro. Claaaro. Você leu um livro. E automaticamente virou médica. Com doze anos. Que prodígio.

Charles, saia da minha cabeça.

Ela optou por uma pomada de cheiro pungente, que parecia algo que seu pai levava com eles para expedições, caso alguém se machucasse. Então, começou a enrolar uma atadura na perna de Chris. Leon observava desconfiado as duas crianças de longe, a boca cheia, mastigando entusiasmado um pedaço de pão com geleia. O humor dele estava consideravelmente melhor. Talvez fosse a comida deliciosa, como nunca havia comido antes. Ou talvez fosse o fato de que Abby não estava insultando-o por falar besteiras, por estar com a boca cheia de comida. Ou o fato de que ela estava ocupada demais cuidando de Chris para tentar mandar nele.

Enquanto Abby tentava cuidar dos ferimentos de Chris, ele explicava lentamente o que havia acontecido, entre caretas e pequenos gemidos.

— Então o bando de Poochyenas me atacou e....

Abby não conseguia parar de pensar em como aquela história era estúpida. Ela estava inconformada com o fato de que alguém inteligente como Chris houvesse pensado que seria capaz de enfrentar tantos Poochyenas selvagens de uma só vez. Se aquele moleque plebeu grosseiro não tivesse aparecido, provavelmente não haveria sobrado nada dele. Era muita imprudência, muita burrice, muita...

Ela olhou para o Emolga ferido, que Chris havia acomodado sobre seu travesseiro. O menino insistira que ela cuidasse do pequeno Emolga primeiro, e, sem conseguir argumentar, ela havia atendido seu pedido. A única explicação plausível para aquele nível de insensatez era que Chris queria salvar o esquilo elétrico. Ao constatar isso, Abby percebeu que havia algo em Chris que se sobressaia até em relação a sua inteligência.

Esse é o pior curativo que eu vi na minha vida.”, zombava Charles. “Espero que a perna dele não gangrene e caia.


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Notas finais do capítulo

Rezam as lendas que deixar comentários anima a autora a escrever os próximos capítulos mais rápido. E está ficando chato conversar só com as vozes na minha cabeça.

Obrigada por lerem até aqui!



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