Fiat Ignis escrita por SophieRyder


Capítulo 5
Capítulo 4 ou “Meus instintos sempre estão certos”




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Charlotte conduziu as duas crianças até um quarto do castelo, fez Christophe tirar a camisa e limpou o corte em seu ombro com um pano limpo e molhado. Depois, com muito cuidado, fez um curativo enrolando bandagens em seu braço, aparentando estar acostumada com isso. Abby observou enquanto ela calmamente cuidava do irmão mais novo, pensando que a ela era uma jovem bastante elegante. Seus cabelos pretos eram muito lisos e compridos, seus olhos eram claros como os de Chris, mas ao contrário dele, não eram tão grandes e redondos, e passavam certa sensação de, simultaneamente, serenidade e força. O olhar de Abby acompanhou os fios escuros que desciam pelas costas, observando sua constituição: seu corpo era esguio e atlético, suas mãos tinham calos por manusear espadas e estavam esfoladas em alguns pontos. As roupas de montaria masculinas chamaram sua atenção, pois era a primeira vez que ela via uma mulher vestir-se assim abertamente, sem esconder sua identidade. Era estranho, mas ao mesmo tempo, fez Abby se sentir um pouco mais segura.

Após acabar de cuidar do irmão, Charlotte chamou uma criada e murmurou algumas instruções a ela. A mulher assentiu e deixou rapidamente o quarto. Então, ela se voltou para as duas crianças, colocando as duas mãos na cintura em uma postura assertiva.

— Ok, comecem a me explicar o que aconteceu.

As duas crianças se entreolharam.

— Lotte, como eu disse, foi um acidente...

— Não existem acidentes com Morgan. Eu quero saber exatamente o que ele fez.

Abigail desviou o olhar dos dois irmãos com uma expressão ansiosa, que claramente demonstrava sua insatisfação por ter se envolvido naquilo.

— Ele... – Chris falava com hesitação. – Estava brincando com o arco... E sem querer me acertou. De raspão.

— Ele atirou em você?

Christophe parecia constrangido. Sua expressão corporal mostrava desconforto, seus ombros estavam encolhidos para frente, ele não fazia contato visual com a irmã, olhava para suas próprias mãos cruzadas em seu colo. Por algum motivo desconhecido por Abby, ele não queria denunciar o comportamento agressivo do irmão como algo proposital.

— Vou entender seu silêncio como um “sim”.

“Parece que ela conhece os irmãos”, disse Charles para Abigail.

— Chris. – O garoto não respondeu. – Chris.

A voz da irmã mais velha era dura, mas ela não parecia brava com ele. De alguma forma seu rosto parecia esboçar preocupação.

— Sim?

— Eu vou conversar com papai sobre isso. Não fique com medo. Por hora, por favor, tente não andar sozinho pelo castelo. Eu vou pedir para alguém vir cuidar das feridas do Arken, ok?

— Certo...

— E você... Como era seu nome mesmo? Abbe?

Ela olhava agora para Abby, que concordou balançando a cabeça.

— Eu peço desculpas pela experiência desagradável com meu irmão mais novo. Eu não entendi direito o que aconteceu, mas vi que seu companheiro interviu na situação, e eu sou muito grata por vocês terem impedido que ela continuasse. Porém, acho prudente que você também não ande sozinho pelo castelo, Morgan deve estar de péssimo humor agora. Vou pedir para alguma criada cuidar de você até seu pai retornar.

Dito isso, ela abriu um sorriso amistoso, que lembrou um pouco a expressão de seu irmão mais novo, mas mais madura. Abby ponderou que ela era uma pessoa confiável, apesar de jovem, pois apesar de seu comportamento incisivo, ela tratava os outros com gentileza.

A criada que havia sido despachada retornou ao quarto, com uma camisa limpa nas mãos. Atrás dela, chegou também o irmão mais velho da família, Frederick, que havia se separado deles brevemente após o incidente no jardim. Ele vinha com uma expressão austera no rosto.

— Os criados não sabem onde Morgan se escondeu, mas eventualmente vamos achá-lo – Anunciou ele para a irmã, enquanto ela pegava a camisa limpa das mãos da criada e ajudava Chris a se vestir.

— Certo. Precisamos conversar.

Os dois saíram do quarto e fecharam a porta, deixando as crianças com a criada. Entretanto, eles permaneceram no corredor, e era possível entreouvir partes da conversa.

— ...está ficando pior, Frederick. Precisamos conversar com o papai.

Algo incompreensível foi murmurado em resposta. Charlotte elevou a voz, e parecia bastante alterada. Abby observou Chris afundar mais em sua cadeira, olhando para o chão.

— Atirou com um arco, você acredita? Ele podia ter se machucado seriamente, isso é grave.

— Realmente, dessa vez ele passou dos limites das suas brincadeiras de mau gosto.

— Não são brincadeiras, são comportamentos agressivos e cruéis. Alguém precisa pôr um fim nisso, e rápido. Não podemos ter um irmão mais novo descontrolado.

A voz de Frederick era mais comedida e apenas algumas partes escapavam aos ouvintes dentro do quarto.

— .... perigoso para a família... um comportamento inapropriado...

Houve um breve momento de silêncio. Então, Charlotte abriu a porta do quarto com ímpeto, parecendo nervosa.

— Chris, venha, vou te levar até o quarto da mamãe. Eu sinto muito, Abbe, mas você precisa esperar aqui por enquanto. Vou avisar seu pai para vir buscá-lo depois.

Ela pegou o irmão mais novo pela mão com delicadeza, pediu para a criada permanecer ali e se retirou, fechando a porta.

“Encontramos uma família bastante incomum”, afirmou Charles.

 

—---

Bernard colocou sua pena de lado para fazer uma breve pausa.

— Consigo ver algumas características de minha mestra já aparecendo na infância. Particularmente, o humor. Mas devo dizer, um tanto peculiar para uma criança.

— Ela foi criada por um acadêmico inglês e por mim, o que você esperava?

O jovem pesquisador riu.

— Até conhecer o Chris, ela passava o tempo todo na universidade lendo livros, ouvindo as aulas de seu pai e do professor Étienne, e observando os outros alunos. Não havia espaço para ser criança. Apenas após ter contato com Christophe ela pôde ter experiências de uma criança normal. Ou quase.

Bernard permaneceu pensativo por algum tempo, e depois contatou:

— Mas ela parecia particularmente observadora já na infância.

— Sim, ela sempre foi curiosa, ainda que de um jeito ímpar. Sua curiosidade era diferente da de Chris, ela não procurava aventura nem emoção, e dificilmente se empolgava, mas observava tudo a sua volta com muita atenção, atentava para os mínimos detalhes, e memorizava uma quantidade enorme de coisas. Foi algo que a ajudou muito com suas pesquisas no futuro.

— Confesso que ainda tenho dificuldade de imaginá-la como uma criança.

— Meu caro Bernard, todos nós já fomos crianças um dia. E idiotas. Muito idiotas.

 

—---

— Como foi seu dia, Abby?

Quando estavam sozinhos, o pai a chamava carinhosamente de “Abby”, e não “Abbe”, sem se preocupar em esconder seu sexo.

Era noite, e Norbert e Abigail estavam instalados em um quarto amplo de hóspedes. Arquimedes havia saído do castelo para um voo noturno, como era habitual de sua espécie. O enorme Stoutland do professor estava dormindo em um canto do quarto, sobre um tapete, cansado da viagem, e sua Petilil estava deitada próxima aos pés de Abby. Ambos eram usados por ele para realizar suas pesquisas de campo, e os acompanhavam nas viagens.

— Horrível. Extremamente ruim. Absolutamente desagradável. Completamente detestável.

— Não gostou do filho do Marquês?

Abby bufou. Ela fazia isso com frequência quando estava irritada.

— Aquela criança barulhenta? Ele me arrastou pelos pulsos por todo o castelo, não parava de falar, não parava de sorrir como um Popplio bobo, não parava de me encarar com aqueles olhos enormes. Foi insuportável.

Norbert levantou uma sobrancelha.

— Um... Popplio?

— E o Archimedes ainda continua um covarde. – Disse bocejando. – Eu preciso arrumar um jeito de treiná-lo melhor, ele não me obedece nos piores momentos.

— Você vai aprender com o tempo, só precisa ter paciência.

— Hunf. E depois, apareceu uma criança pior ainda! Ele atirou no irmão com um arco e ficou frustrado por errar. Eu odeio crianças.

— Mas você é uma também. – Norbert riu da ênfase que a garota dava para as palavras, como se não pertencesse àquela categoria.

Você parecia estar se divertindo muito com o pequeno príncipe albino.”, zombou Charles. Abby lançou um olhar rancoroso a ele. “Andando de um lado para o outro, ouvindo sobre as espécies no jardim, e até tentando ensiná-lo a escrever uma descrição acadêmica. Parecia muito, muito divertido. Até o fraticida em miniatura aparecer, é claro.

— Ora Charles, não fale assim de uma criança. – Norbert o repreendeu.

Você não viu nem o começo.

  — Eu não estava me divertindo – Protestou Abby. – Só achei que aquilo era um enorme desperdício de talento. Como ele pode fazer um desenho tão bom e escrever ao lado “pelo fofinho”?

Você sabe que ela deveria passar menos tempo com adultos, não é?” Ironizou Charles para Norbert. “Você precisava vê-la tentando intimidar a criança com o termo ‘dimorfismo sexual’, foi ótimo”.

— Acho que o problema é que ela passa tempo demais com você.

“E de quem é a culpa?”

— Vocês dois estão me entediando. – Reclamou Abby. - Vou dormir.

Ela se enfiou debaixo das cobertas e deu as costas para os dois.

“Ela está muito cansada depois do dia extremamente divertido”

Norbert riu alto, deu boa noite para sua filha e apagou a vela que estava ao lado da cama. Depois, chamou Charles para o quarto adjacente, onde ele havia instalado um pequeno escritório para realizar suas pesquisas, e começou a desfazer as malas que continham seus livros, cadernos e manuscritos. O ambiente estava um pouco escuro à luz de velas, mas ele estava acostumado com essas viagens, e suas malas eram sempre muito organizadas, de forma que a atividade não demandava tanto esforço.

— Conte-me, Charles, como são os filhos do marquês?

“Bastante atípicos.”

— Bem, isso era esperado, considerando o pai deles. Ele me disse que o mais velho tem dezesseis anos, a filha catorze, e os dois mais novos doze e onze. Mas eu gostaria de mais detalhes. O pequeno que acompanhou vocês tem talento mesmo?

“Acho que sim, as ilustrações eram boas, e ele só tem doze anos. Parece bastante inteligente também, e instruído. Bem, crescer numa família nobre e rica permite uma educação diferenciada.”

— Sim, mas não são muitos nobres que estimulam os filhos a se dedicarem ao campo da pesquisa. Normalmente eles estão mais preocupados com assuntos administrativos ou militares.

“Os irmãos mais velhos parecem mais adequados nesses aspectos. Dois jovens promissores, devo dizer. Inteligentes, bonitos, corpos vigorosos, andando por aí com companheiros bem treinados. Você provavelmente vai gostar da garota, ela parece bastante impetuosa, carregando uma espada dourada na cintura. O mais velho, por outro lado, faz mais o tipo comedido: tem os olhos de um homem equilibrado e astuto mesmo ainda sendo bem jovem. Ele será um bom marquês.”

— Talvez o marquês permita que cada um deles se dedique aos assuntos de interesse deles próprios. Ele me disse que parte dos livros da biblioteca foram encomendados pelos filhos.

“Um nobre curioso.”

— Ele me deu uma tarefa um tanto difícil.

“Percebi. Você vai conseguir trazer cinco ovos? Parece bastante improvável.”

— Pelas minhas pesquisas, é comum as fêmeas colocarem de cinco a sete ovos em cada período reprodutivo, então a quantidade não é um problema... O que me preocupa é conseguir afastar a mãe do ninho sem nenhum incidente grave. Isso será complicado. Preciso formular um plano de ação.

Charles suspirou e sentou-se perto da janela do quarto.

“Não me leve junto.”

— Claro. – Norbert riu. – Você não acha estranho ele querer dar bestas tão agressivas para os filhos? Quer dizer, o mais novo tem apenas onze anos... Aliás, você ainda não me falou sobre ele.

O Meowstic permaneceu em silêncio após ouvir a indagação.

— Charles?

“Aquela criança é perigosa.”

— Você estava falando sério?

“Sim. Ele realmente atirou uma flecha no irmão com a intenção de acertá-lo. Eu nunca senti um ânimo tão sinistro em uma criança antes. Os pensamentos dele eram muito confusos, e eu não tive tempo para avaliá-los, mas eles estavam cheios de raiva e agressividade. Acho prudente manter Abby longe dele.”

— Fico impressionado que uma criança tão pequena lhe cause tamanha apreensão.

“Talvez, mas eu confio em meus instintos.”


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Notas finais do capítulo

Voltar a escrever uma fanfic depois de dez anos tem sido uma experiência bastante satisfatória. Espero que vocês estejam gostando! Se sentem alguma simpatia por uma universitária cansada, deixem um comentário. S2



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