Fiat Ignis escrita por SophieRyder


Capítulo 3
Capítulo 2 ou “Christophe era adorável e eu ainda odeio isso”


Notas iniciais do capítulo

Estou desenhando esboços dos personagens, aguardem nos próximos capítulos ;)



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Abby caminhava ao lado do garoto radiante, tentando avaliar que tipo de personalidade ele teria – muito provavelmente algo que ela iria desgostar, considerando a animação dele.  Ela era uma criança bastante introvertida, de difícil comunicação, humor irritadiço e arredio. Preferia passar seu tempo com adultos, mas odiava adultos que a tratavam como criança, e odiava particularmente adultos que a tratavam como uma menina. O jovem Christophe, animado, sorridente e simpático, era o tipo de criança com quem ela tinha mais dificuldade de lidar.

Chris a segurava pelo pulso delicadamente, mas a conduzia com passos largos pelo corredor de pedra, e parecia bastante feliz por ter escapado de sua aula de arquearia e ainda arrumado um amigo para mostrar o castelo. Seu Growlithe caminhava ao lado dos dois, sem desgrudar os olhos do mestre.

— Como você se chama?

— Abbe...

— E eles? – Chris indicava o Meowstic que os acompanhava, e o Hoothoot pousado no ombro da visitante.

— Charles... e Archimedes.

O Meowstic não parecia nada satisfeito com a situação. Chris, entretanto, estava extremamente interessado com o felino de pelos curtos e escuros. Encarava-o com olhos brilhantes de uma criança que está tomada por curiosidade.

— Nós temos Hoothoot na região, mas eu nunca tinha visto um desses. Qual é o tipo dele? Parece bastante inteligente.

— Psíquico...

— Aaah, eles são tão raros, é muito difícil vê-los.

Chris continuava encarando-a com animação, como se esperasse ouvir mais informações sobre o assunto. Abby não sabia se continuava o assunto dando detalhes técnicos sobre a espécie, o que o garoto provavelmente não entenderia, ou simplesmente dizia “eles são gatos espertos e mau humorados, você não vai querer conviver com um”. Porém, chegou a conclusão de que se desse alguma descrição chata, o garoto provavelmente pararia de perguntar.

— Hm... Eles são comuns na Escócia, mas dificilmente as pessoas os treinam, dada a personalidade antipática deles, e por não serem muito úteis em batalha... – Charles lançou um olhar mal-humorado à garota, o que só reforçou a descrição. – Eles possuem dimorfismo sexual, as fêmeas são brancas, possuem rabos e orelhas diferentes, e tem comportamento mais agressivo. O primeiro estágio é chamado de Espurr, eles são tímidos e de hábito noturno.

“Obviamente ele não entenderia o que é dimorfismo sexual”, pensou Abby. Isso deveria encerrar o assunto. Nenhuma criança saberia que isso significa que os machos e as fêmeas são claramente distinguíveis aos olhos por sua aparência externa. Nenhuma criança a não ser ela, é claro. Mas ela não se encaixava nos padrões de uma criança normal.

— Ah, assim como o Pyroar! E o Unfezant, e o Nidoran! Você tem alguma ilustração das fêmeas? E do primeiro estágio? Eles possuem diferenças de força e agilidade, ou de habilidades?

A garota foi pega de surpresa pelas perguntas um tanto específicas. Ele tinha entendido a descrição, e queria saber mais. Era a primeira vez que alguém tão pequeno parecia entender os detalhes técnicos de pesquisador que ela estava acostumada a ouvir na universidade junto com seu pai.

— Quantos anos você tem? – Perguntou com suspeita, estreitando os olhos.

— Doze.

Novamente inesperado. Pela aparência pequena e delicada, ela havia suposto que ele tinha apenas 10 anos. Eles eram mais ou menos da mesma altura, mas garotos da idade de Abby costumavam ser maiores que ela, e ela era pequena até para os padrões femininos. Mas os dois tinham a mesma idade. Aquele garoto era realmente pequeno.

— Eu também.

— Ah! Incrível! Vamos ser amigos? Você tem as ilustrações?

Ela tinha certeza que alguém que faz amizade nos primeiros dez minutos de conversa tinha uma personalidade que não iria agradá-la. Mas não havia como fugir da situação naquele momento. Um comentário sarcástico com a voz de Charles ecoou em sua cabeça “Ele não é encantador? Primeira criança que quer ser sua amiga depois de ouvir a expressão dimorfismo sexual”.

Charles parecia estar se divertindo bastante às custas dela. Não que sua expressão estivesse diferente, mas Abby já conhecia as sutis mudanças de humor do felino que havia virado, à força, sua babá.

— Não, não tenho aqui. Mas meu pai tem nas bagagens dele, posso te mostrar depois.

O rosto de Christophe se iluminou na expectativa de poder conhecer uma nova espécie, do mesmo modo que uma criança fica inflamada ao ouvir que irá ganhar um brinquedo novo. “Esquisito” pensou Abby. “Eu diria hilário”, retrucou Charles novamente em sua cabeça.

— Meu pai tem dois Pyroar, como você pôde ver. E um Nidoking. Eu fiz desenhos deles, posso te mostrar também. Ah, chegamos no jardim.

—---

 

— Mestre Charles?

— Hm?

— Você está me dizendo que Christophe... Aquele Christophe de Artois... Era uma criança pequena demais para a idade, com aparência feminina, e fofa?

— Ah sim, ele era adorável. Nunca mais vi nenhuma criança tão encantadora quando Christophe. Tão adorável que até a minha pequena e ranzinza Abby caiu em suas graças.

— Tenho minhas dúvidas quanto a verossimilhança dessa história.

— Você leva a sério demais o que escuta pelas bocas dos bardos. É claro que eles não descreveriam um herói de seus épicos como um garoto magrelo e delicado, com olhos enormes e doces.

— Continuo achando difícil de acreditar que alguém desse porte pudesse fazer tudo o que dizem que ele fez.

Os olhos do velho Meowstic de repente se preencheram com um brilho penetrante, bastante diferente de sua expressão comum.

— Só espere.

—---

 

O jardim causou uma grande impressão até na normalmente desinteressada Abigail. A área ficava na parte de trás do castelo, seu acesso se dava por um arco de pedra, a partir de onde se abria um grande espaço verde, com pinheiros rodeando o muro dos fundos, de três metros de altura, coberto com musgo e tufos de vegetação por entre as conexões das pedras. Havia caminhos de pedra sinuosos no chão, e, à direita, um pequeno lago com plantas aquáticas flutuando sobre a água escura. Em torno do lago havia bancos de granito, e um gazebo de madeira escura e polida, com trepadeiras subindo por suas laterais, e orquídeas brancas penduradas no teto. Ao lado, fazendo sombra no lado, uma enorme e velha árvore flamboyant que não estava florida. No fundo, entre os pinheiros, havia um portão de grades de ferro trancado, que mostrava o bosque atrás do castelo, onde os nobres costumavam caçar.

 Entretanto, não foi a súbita mudança de paisagem e cores que atraiu a atenção de Abby, mas os habitantes que ali se encontravam. Era naquele jardim que o Marques de Artois mantinha suas capturas mais exóticas. No topo do gazebo havia dois pássaros que ela só conhecia por ilustrações, um com plumas vermelhas e pretas, outro com plumas roxas, e ela precisou acessar as partes mais distantes de sua memória para lembrar como eles se chamavam. “Oricorio. Possui quatro variações, suas plumas mudam de cor e de forma dependendo da região. O vermelho pode ser encontrado em algumas regiões da Espanha, o roxo vem da Ásia.” Charles emitiu um leve som da garganta, sem abrir a boca. “Esforçada como sempre”, ele murmurou na cabeça da menina.

Abby expandiu seu olhar para o resto do jardim. No topo dos pinheiros era possível ver três Aipoms, espiando interessados os visitantes. Havia diversas criaturas do tipo grama e veneno espalhados pela área: Duas Sunfloras, um Hoppip e um Skiploom, uma Roselia cuidando de dois Budews, Beautiflys sobrevoando algumas flores, um casal de Nidorans mastigando algumas frutas depositadas no chão. Havia ainda outros, escondidos entre a vegetação, que não estavam à vista. No lago estavam dois Swannas flutuando, um Surskit em cima de uma vitória régia, e alguns Poliwags brincando entre si. Na beirada, deitado na sombra, era possível ver um Vaporeon. Ao ouvir as crianças entrarem no jardim, ele abriu um dos olhos, encarou-as por alguns segundos, então se levantou elegantemente, sem emitir nenhum som, e deslizou para dentro da água, sumindo completamente.

Abigail estava tão impressionada com a quantidade de espécies diferentes que podia ver ali, sua mente vagava rapidamente procurando todas as informações que tinha sobre cada um deles, até que algo lhe chamou a atenção.

— As cores dessa Rosélia estão estranhas. – Constatou a garota.

A Rosélia possuía uma flor roxa e outra preta. Normalmente deveria ser uma vermelha e outra azul. Abby sabia que era possível ocorrerem cores diferentes em muitas espécies, mas elas eram extremamente raras, e os pesquisadores ainda não tinham certeza se esse fenômeno podia ser generalizado para todas. Ela conhecia muitas por ilustrações, mas antes desse dia, tinha visto apenas uma ao vivo.

— Ah, sim. Ela é especial. – Respondeu Chris - Papai a deu de presente para minha mãe quando eles ficaram noivos. Mas por algum motivo, mamãe não parece gostar muito dela.

Ao dizer isso, brevemente uma expressão triste passou pelo rosto de Chris. Abby não conseguia entender por qual motivo alguém não iria gostar de uma raridade como aquela, mas claro, os dois eram ainda muito jovens para compreenderem os problemas dos adultos. Mas Christophe rapidamente abriu outro sorriso e segurou Abby pelo pulso, levando-a pelo jardim. Archimedes, que até então estava pousado cochilando no ombro da menina, percebeu que as crianças não ficariam quietas e, levantando voo, pousou em um dos pinheiros para poder continuar dormindo.

Rapidamente ela percebeu que todas as criaturas que ali viviam pareciam bastante acostumadas com o menino, e interagiam com ele sem qualquer medo. Chris se aproximava delas, tocava-as, e mostrava para Abby cada uma delas, explicando suas características, suas personalidades, e os lugares de onde elas vieram. Ele havia dado nomes a todas, e parecia ter passado bastante tempo observando-as. A garota ficou impressionada com a tranquilidade com a qual elas interagiam com ele.

Chris chamou um Aipom para baixo da árvore e ele veio. Assobiou para os dois Oricorios e eles responderam. Atirou comida para os Goldeens do lago, mostrou de perto a Rosélia de cores diferentes, fez cafuné nos Nidorans e em um dos Swannas. Então, conduziu Abby para um dos bancos de pedra ao lado do lago, e, ainda com um sorriso largo no rosto, foi rapidamente até o gazebo, abriu um baú de madeira que havia ali e tirou de dentro dele um livro de anotações encadernado com couro tingido de preto. Retornando, ele estendeu o livro para ela:

— Esse é o meu catálogo de todas as espécies do jardim. Também tenho desenhos das que vivem no bosque.

Abby pegou o livro com relutância, sem saber se haveria algo bom ou ruim ali. Era certo que ela estava abalada pela demonstração de conhecimento de Chris, o que era absolutamente inesperado, mas a agradava. Por outro lado, a extroversão e expansividade dele a deixavam ainda mais retraída, como um animal selvagem fugindo de um som alto, e quanto mais ele sorria e gesticulava, mais ela ficava intimidada. Seu desprezo inicial pela companhia agora havia simultaneamente se tornado curiosidade e receio.

Ela abriu o livro sob o olhar acusador de Charles, que parecia estar se divertindo com a confusão mental de sua protegida, como quem dizia “Ora, essa é nova, alguma criança te causou interesse”. A primeira página continha um desenho feito a mão com carvão de um Pidgey pousado em um galho, e não parecia ter sido feito por uma criança. A sua forma era razoavelmente simétrica, e os detalhes das penas eram facilmente identificáveis. Abby folheou o livro olhando os outros desenhos, alguns com carvão, outros com nanquim, igualmente bem feitos, como deveria ser em uma enciclopédia. Algumas páginas continham desenhos de partes da espécie, como os detalhes de uma pata, a forma de uma pena, o tamanho do focinho e dos dentes. Haviam muitos desenhos de Growlithes, e vários outros do tipo fogo.

Ao lado de vários deles havia pequenas descrições em uma letra redonda e infantil, escritas em francês. Após folhear várias páginas, Abby tentou ler o que estava escrito - apesar de sua língua materna ser o inglês -, e sua expressão de prazer pelas ilustrações foi substituída por uma sobrancelha curvada e clara irritação.

— O que é isso? – Disse ela, apontando para as palavras ao lado de um dos desenhos do Growlithe. – “Pelo vermelho, macio e quentinho, patas largas e fofas, focinho felpudo”. Que tipo de descrição é essa?

Christophe pareceu não entender a irritação dela – na verdade, ele sequer se abalou com a mudança de tom. Pelo contrário, chamou Arken, seu Growlithe, com um assobio, e o fez sentar-se em frente da garota.

— Pode passar a mão.

Abby estava consternada.

— Não é isso que eu quis dizer. Essa não é uma descrição científica. Se você quer fazer uma enciclopédia, não pode usar as palavras “fofo” e “quentinho”.

— Mas é verdade...

Ela bufou. Aquilo estava incomodando-a profundamente.

— Não, isso é inaceitável. Você desenha bem, e ainda por cima parece mais inteligente do que a totalidade das crianças da nossa idade. Eu vou te ensinar a fazer direito, talento não deve ser desperdiçado.

— Ehh?

Você gostou tanto dele que resolveu virar sua professora?”, zombou Charles. “Vai fazer o que depois, leva-lo para a universidade?”

Mas Abby ignorou-o. Estava concentrada demais tentando explicar para um garoto extremamente confuso os motivos pelos quais ele precisava fazer uma descrição extremamente técnica e chata no seu catálogo de espécies. Chris se esforçava para prestar atenção no que ela dizia, como se fosse de fato uma lição de algum mentor, e não de uma criança de doze anos. Nesse momento, uma figura pequena adentrou no jardim sorrateiramente, e observou a cena com suspeita. Ele tinha olhos azuis como Chris, mas o brilho deles era totalmente diferente.

Um som de corda de arco sendo esticada chamou a atenção de Charles, e ele imediatamente teve um calafrio ao captar as intenções que vinham daquela direção. Não houveram muitos segundos para reagir. Uma flecha disparou cortando o ar em direção às duas crianças, Charles tentou desvia-la de seu trajeto com seus poderes psíquicos, mas mesmo assim ela passou de raspão em seu alvo, deixando um leve corte no ombro de Christophe, e fincando-se na estrutura de madeira do gazebo ao fundo. A figura do outro lado do jardim soltou uma exclamação de desprazer.

— Errei.


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