Fiat Ignis escrita por SophieRyder


Capítulo 2
Capítulo 1 ou “O dia em que a miséria de minha vida começou”




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— Mestre Charles?

— Hm?

Bernard e Charles estavam na área externa da universidade, sentados em bancos de pedra, enquanto o final da tarde aos poucos desaparecia no horizonte e dava lugar para estrelas.

— Antes de você começar a me contar, eu poderia pegar um pergaminho e tinta?

— O que você quer fazer, criança tola?

— Seria muito abuso eu escrever a história?

— Para que fim?

— Registrar para a posteridade as palavras que eu ouvir.

Charles pensou por um instante. Parecia muito cansado, principalmente dos caprichos dos jovens.

— Bem, desde que guarde apenas para você, não vejo problema. Mas preste atenção porque eu não vou repetir nada. Além disso, é bom você não demorar demais escrevendo, senão meu humor vai me impedir de ser atencioso com você.

— Sim senhor...

 

—----

Numa manhã fresca e nublada, duas figuras adentraram no castelo da nobre Família Artois, carregando uma carta de recomendação. O imenso castelo de pedra se levantava sobre um morro, diante de um vasto vilarejo, e fazia sombra nas casas dos camponeses.  Uma das figuras era um homem alto e magro, vestindo roupas de viajante, cor de terra, cheias de bolsos de diversos formatos, e cobertas por uma capa verde escura. Um enorme Stoutland, de aparência severa, o acompanhava. A outra figura era de uma criança, de porte pequeno para a idade, aparência frágil, franja cortada acima das sobrancelhas e semblante desinteressado. Em cima de sua cabeça estava pousado um hoothoot sonolento, e ao seu lado caminhava um Meowtic macho bastante mal-humorado. Atrás de ambos, o grupo era fechado com um Rhydon carregando as bagagens, um Venomoth pairando acima dele e uma pequena Petilil que pegava carona dentro do bolso de uma das malas.

Os dois viajantes foram recebidos no portão do castelo por servos e levados para um salão para aguardar o Marquês estar disponível para recebe-los. No enorme salão, foram servidos de pão, manteiga, frutas, vinho e suco de maçã para a criança. O homem parecia cansado da viagem, e aceitou de bom grado os alimentos, começando imediatamente a comer. A criança, entretanto, não estava muito interessada. Pegou uma fatia de pão que o homem cortou para ela, e mastigou lentamente, com cara de tédio. O hoothoot permanecia em cima de sua cabeça.

— Abbe, você precisa comer.

— Sim pai, estou fazendo isso.

A figura pequena dava minúsculos bocados na comida, observando o salão. Algo lhe chamou a atenção. Um rosto, escondido pela metade no batente de uma porta, espiava para dentro do recinto com enormes olhos azuis. Uma mecha de cabelo longa e cinzenta caia por cima de seu ombro. Ao lado dele era possível ver um focinho vermelho farejando os visitantes. Abbe, que não gostava de ser observado, colocou a expressão mais rabugenta que conseguia no rosto e encarou a criança de volta. Não pareceu fazer muito efeito, pois no instante seguinte o menino adentrou no recinto cheio de curiosidade.

Tratava-se de um nobre, o que era possível perceber a partir de suas vestimentas de tecido delicado e fino, e parecia ter no máximo 10 anos de idade. Tinha um sorriso enorme no rosto, bochechas rosadas, um corpo pequeno, cabelos compridos e bastante lisos amarrados num rabo de cavalo com uma fita azul, e vinha acompanhado por um Growlithe bastante amigável. A primeira coisa que Abbe pensou foi que ele se parecia muito com uma menina. A segunda foi que ele era irritantemente simpático.

Um dos criados tratou de ser aproximar rapidamente do garoto para tirá-lo da sala, antes que ele tivesse tempo de incomodar os convidados. Entretanto, o homem pareceu imediatamente interessado nele e se levantou.

— Olá meu jovem, que belo espécime de fogo você tem consigo. Como se chama?

O garoto pareceu feliz com o cumprimento.

— Christophe! E esse é Arken – apontou para o cão.

O breve diálogo foi interrompido por um grito em algum lugar fora do salão.

— CHRISTOPHE, ONDE DIABOS VOCÊ SE ENFIOU DESSA VEZ?

A voz feminina vinha do lado de fora do corredor, e uma serva idosa e severa entrou apressada dentro do salão, com os cabelos desalinhados e o rosto vermelho por andar rápido pelos corredores do castelo.

— Aí está você. Fugindo de novo das aulas de arquearia, sua mãe está furiosa, trate de andar logo e ir para o pátio, e pare de incomodar os visitantes de seu pai.

O menino saiu enxotado do salão, parecendo bastante decepcionado por ser encontrado pela serva intransigente. Abbe imaginou que aquela deveria ser uma cena frequente no castelo. Christophe cruzou na porta com outro servo, que vinha buscar os dois visitantes para serem atendidos pelo Marques que comandava aquela fortaleza.

Ambos foram guiados por corredores de pedra até outro salão, onde havia um homem de aparência colossal os aguardando com a carta de recomendação em mãos. O viajante se colocou diante dele e fez uma longa reverência antes de se apresentar.

— Caro Marques de Artois, me chamo Norbert e este é meu filho Albert. Viemos até suas terras por recomendação do professor Étienne, para a catalogação dos animais selvagens da região.  Creio que a carta que tem em mãos lhe explique com mais detalhes nosso objetivo, mas já agradeço imensamente por nos receber em seu castelo e ouvir nosso humilde pedido.

O homem diante deles conhecido como Marques de Artois era grande em todos os sentidos. Seu corpo era musculoso, sua estatura era alta, mas, para além das proporções físicas, ele tinha uma aparência imponente: cabelos escuros e arrepiados, olhos azuis muito claros e penetrantes emoldurados por sobrancelhas grossas e arqueadas num rosto severo e marcado por muitas batalhas. Em um de seus braços era possível ver uma longa cicatriz que partia da mão e subia para dentro de suas vestimentas, e em sua cintura havia um facão preso por tiras de couro. Sentados na frente dele estavam dois Pyroar, um macho e uma fêmea, e atrás de sua cadeira havia um enorme Arcanine. Os três avaliavam os visitantes com olhos atentos e bem treinados. Nenhum deles se moveu nem desviou o olhar quando o homem se levantou e foi cumprimentar os visitantes com uma voz grave:

— O velho mestre Étienne e eu somos amigos de longa data, e por isso seus alunos sempre são bem-vindos em minhas terras. Diga-me o que posso fazer para ajuda-los durante sua estadia. – Disse ele dando um aperto de mão firme em Norbert, e encarando-o diretamente nos olhos.

Apesar de intimidador, suas palavras pareciam verdadeiras. Não tinha a aparência de um homem de rodeios nem de sutilezas. Constatando isso, Norbert se sentiu mais à vontade e começou a explicar os detalhes da expedição.

— Há muitos espécimes de fogo vivendo na região da montanha que fica adiante do castelo, provavelmente porque ele é um vulcão inativo. Como a posse das criaturas de fogo é proibida para nessas terras, nós precisamos de sua permissão para avaliar quais espécimes existem lá. Nós gostaríamos também de autorização para capturar e transportar alguns deles para Paris para objetivos de estudo.

O diálogo continuou com as negociações. As bestas de fogo eram consideradas posse da família Artois naquela região, e não era permitido que pessoas de fora dela as capturassem ou treinassem, por dois motivos principais: primeiro, elas eram muito perigosas e poderiam causar estragos nos vilarejos; segundo, mesmo que fossem corretamente treinadas, elas poderiam ser usadas como armas para incitar algum tipo de violência ou tentar derrubar algum nobre de seu cargo. A posse das bestas de fogo era exclusiva dos nobres, salvo raros casos em que alguém possuía uma autorização especial, como os ferreiros, que faziam uso do fogo para acelerar seu trabalho. Os indivíduos com autorização especial eram monitorados constantemente.

Após ouvir os detalhes da expedição, o Marques permitiu o estudo e a captura das espécies sob uma condição:

— Precisamos tratar do caso do dragão. Como você bem sabe, há uma fêmea vivendo no topo da montanha. Ela causa diversos problemas em minhas terras, atacando vilarejos e os queimando até o chão, e até hoje eu não consegui capturá-la. É praticamente impossível domar um dragão selvagem que já chegou em seu estágio evolutivo final. Entretanto, meus servos descobriram que ela está com um ninho com ovos. É extremamente difícil se aproximar, eu mesmo perdi quatro homens por isso, mas creio que sua habilidade de pesquisador deve permitir que você consiga afastá-la de lá por algum tempo sem sofrer consequências devastadoras. Eu quero que você traga os ovos para meus filhos.

O Marques fez a última afirmação com determinação em seu olhar – não parecia estar fazendo uma piada.

— Hm... Certamente não será uma tarefa fácil, mas eu estou disposto a me esforçar para realizá-la... Os ovos são raros e valiosos, mas eu não tenho interesse em obter nenhum para minhas pesquisas, pois acredito que não conseguiria controlar uma criatura dessas... Entretanto, você pretende entregá-los para crianças? – Norbert parecia legitimamente chocado com a ideia de entregar pequenas bestas de fogo agressivas para crianças inexperientes.

— Meus quatro filhos são, cada um do seu modo, extremamente habilidosos no trato com as criaturas de fogo, e tem experiência desde muito pequenos.

Sem dúvidas não era uma piada.

— Certo... Nesse caso, farei o possível para atender seu pedido.

— Então acredito que terminamos nossas negociações. Irei fornecer um guia, alguns homens, mantimentos de viagem e outros equipamentos necessários para você prosseguir.

— Bem, eu também peço que permita que meu filho permaneça no castelo durante minha exploração... Normalmente ele me acompanha e fornece enorme ajuda anotando as descrições, mas como estamos lidando com criaturas perigosas acho prudente deixar a criança fora disso...

— Compreendo, ele pode permanecer aqui.

— E, bem... Há algo que eu preciso discutir, um assunto delicado, sobre Abbe.

Norbert dirigiu o olhar à criança, parecendo bastante apreensivo.

— Abbe, pode me deixar conversar a sós com o Marques?

— Sim pai.

O Marques interviu no diálogo:

— Nesse caso... Christophe.

Foi apenas nesse momento que os dois visitantes perceberam a pequena criança, novamente, espiando dentro do salão com seus enormes olhos azuis.

— Você fugiu de seu treino de arquearia de novo. – O garoto parecia extremamente constrangido por ter sido pego pela segunda vez no mesmo dia. – Quer compensar sua transgressão guiando nosso pequeno visitante nos jardins do castelo?

Esperando ouvir mais uma bronca, Christophe pareceu extremamente satisfeito com o fato de que seu castigo seria guiar uma criança de sua idade pelo castelo, e seus olhos se encheram de brilho

— ...Sim!

— Então vá, rápido.

— Charles, acompanhe-os, por favor. – Disse Norbert.

O Meowstic lançou um olhar aborrecido a seu mestre, que dizia com todas as letras “Como se eu tivesse alguma opção.”, e acompanhou as duas crianças para fora do salão. Chris arrastava animadamente Abbe pelos pulsos, e ele não parecia muito feliz com a extroversão de seu guia. Quando os dois se retiraram do recinto, Norbert se virou com uma expressão séria para o Marques.

— Não vou fazer rodeios para explicar a situação. Abbe é uma menina.

 

—----

Bernard mostrou o pergaminho com as primeiras anotações para Charles, que as leu atentamente, resmungando um ou outro comentário, corrigindo brevemente alguma descrição. Parecia razoavelmente satisfeito com o trabalho do menino.

— Bom latim, gramática correta, hm.

Charles fez a pena flutuar, mergulhando-a no vidro de nanquim. Colocou-a ao lado da primeira anotação no cabeçalho do pergaminho, onde estava escrito “capítulo um”, e acrescentou as palavras “o dia em que a miséria de minha vida começou".


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Notas finais do capítulo

Vocês sabiam que existiam universidades na idade média? Na verdade, a universidade como nós conhecemos é uma invenção medieval. Esse será um assunto recorrente na história, e eu vou tentar me basear o máximo possível em elementos históricos para descreve-las.



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