Fiat Ignis escrita por SophieRyder


Capítulo 14
Capítulo 13 ou “Presságio de incêndio”


Notas iniciais do capítulo

Capítulos enormes vêm com grandes responsabilidades... Nesse caso, mais tempo de revisão, rs. As chances de erros de digitação terem escapado são maiores, me avisem se acharem algo.

Aproveitem!



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— Mais uma vez!

Chris arfava apoiando-se em seus joelhos para se manter de pé, enquanto Leon o pressionava para continuar a batalha. Spike havia derrubado Arken pela oitava vez, ou algo assim; Abigail já havia perdido a conta. A menina estava sentada perto deles, as costas apoiadas numa árvore e um livro com capa de couro preto aberto em seu colo.

— Você vai fazê-lo desmaiar. – Resmungou a menina, aborrecida.

— Não, ele aguenta mais um pouco. – Respondeu Leon, com igual aspereza.

— É óbvio que não.

— Pare de tratar ele como uma coisinha delicada, você também não é grande coisa.

— Ora seu...

— Eu aguento mais um pouco. – Disse Chris interrompendo-os, e colocando-se ereto de novo. – Só estou um pouco cansado.

— Ridículo. – Abby murmurou, sentindo-se derrotada.

— Ótimo. – Leon parecia animado. – Escuta, vou te dar um enorme conselho.

Chris assentiu, olhando para ele concentrado. Leon parecia extremamente satisfeito com atenção

— Se você estiver em desvantagem... Use as coisas em volta de você.

— Usar... o terreno? – Perguntou Chris.

— Isso. Você precisa usar tudo ao seu alcance. E também pode tentar usar dois dos seus bichos contra um.

— Que coisa estúpida. – Falou Abby levantando a voz. – Você acha que ele nunca leu um livro de estratégia de guerra?

— Ninguém está falando com você, seu Rattata metido a besta.

Uma pinha que estava no chão ao lado de Abigail repentinamente flutuou sozinha no ar, saiu voando e acertou a testa de Leon.

— Ai! Que porra foi essa?

Abby e Chris olharam para Charles, confusos.

Estou usando o terreno.

Havia algo que se assemelhava a riso na expressão do felino.

— Acho melhor fazermos uma pausa. – Disse Chris, percebendo que o clima caminhava para outra briga. – Tudo bem, Leon?

— Tá. – Resmungou ele esfregando a testa aborrecido, e andou até a beira do lago para beber água.

Chris se aproximou de Abigail.

— O que você está lendo, Abbe?

— Uma compilação de anatomia dos dragões. Peguei na sua biblioteca.

— Ah! Ela é bem detalhada. – Chris sentou-se ao lado dela. – Tem dragões de todos os tipos, de fogo, de água, voador...

— Meu pai estava fazendo anotações sobre isso igual um louco nos últimos dias.

Leon se aproximou dos dois, com a cara e o pescoço todo molhado.

— Quando ele vai partir? – Perguntou Chris.

— Daqui a três dias.

— Do que vocês estão falando?

— Não interessa. – Respondeu Abby bruscamente.

— Vamos Abbe, não precisa ser assim. – Disse Chris rindo. – O pai dele vai sair em uma viagem para caçar ovos de dragão.

— Sério? – Os olhos de Leon brilharam de interesse, enquanto ele se sentava ao lado dos dois. – Que tipo de dragão?

— Do tipo que transformaria você em cinzas. – Retrucou Abby.

— Parece interessante. – Leon riu. – Mas o que ele vai fazer com ovos? Não é super difícil treinar um dragão?

— Bom, o pai dele encomendou quatro ovos para os filhos. – Disse Abby, apontando para Chris. – O que na minha opinião é uma péssima ideia, não quero imaginar Morgan andando por aí com um bicho desses.

— Você tem outros irmãos? – Leon perguntou, curioso.

— Dois mais velhos, Lotte e Fred, e Morgan, um ano mais novo, que você já conheceu.

— Espera... Aquele pivete que tentou te surrar é mais novo que você?

— Sim, por quê?

— O que eles colocam na comida dos nobres? E por que você não está comendo?

— Haha... Acho que o problema não é a comida... – Chris parecia um pouco constrangido - Você tem irmãos, Leon?

— Um monte deles. Acho que seis, da última vez que contei.

— Estou impressionado que você sabe contar. – Disse Abby, e recebeu um gesto obsceno de resposta.

— E você, Abbe? – Chris já estava começando a desistir de tentar fazê-los se darem bem.

— Não.

— E sua mãe, onde ela está?

— Morta.

Chris ficou constrangido com a resposta brusca.

— Eu... Desculpe.

— Não tem problema.

— Meu velho também está morto. – Disse Leon, colocando um pedaço de capim na boca de modo desinteressado. – Não que faça diferença. Ele era um bêbado desgraçado. Mas me falem mais sobre esse dragão.

Parecia uma desculpa perfeita para mudar de assunto, de modo que Chris, que estava começando a ficar tenso, não hesitou em começar a falar com empolgação sobre os ovos.

 

—---

— Lotte, você deveria parar com isso.

Era noite. Charlotte estava em seu quarto, acompanhada de Elise, já trajada com suas roupas de dormir  e com os cabelos presos em uma trança volumosa. A filha do marquês procurava algo no armário.

— Bobagem. Eu já fiz isso dezenas de vezes.

— Sim, mas não deixa de ser perigoso. E cada vez é um risco renovado dessas excursões noturnas chegarem aos ouvidos de seu pai. Você confia demais nos guardas.

— E você se preocupa demais, Lis. Ah, achei.

Charlotte tirou do armário uma capa vermelha, de um tom vivo e extravagante, contemplou-a por alguns instantes com um olhar sonhador, e depois a jogou em suas costas por cima das vestes de montaria, amarrando a fita que a prendia na frente.

Elise a contemplava com um olhar preocupado.

— Pelo menos leve Vincent com você.

— Ele já ia de qualquer jeito. Ele me ouviu conversando com os guardas. Vincent não gosta de perder uma boa luta.

— Se me perguntar, eu diria que ele gosta mais dos lucros das apostas.

Charlotte riu.

— Bem, não é como se os plebeus tivessem muito para apostar. Mas alguns deles são bons de briga.

— Você não tem medo que alguém te descubra?

— Não, nem um pouco.

Alguém bateu na porta, atraindo a atenção das meninas.

— É ele. – Disse Charlotte,  abrindo a porta. – Oi Vince.

Vincent adentrou no quarto com elegância, com um Kecleon pendurado em seu ombro e seguido por um Marshtomp coçando o olho, certamente incomodado com as atividades a essa hora da noite. O garoto era alto, com pernas compridas e ombros fortes. Seu cabelo e seus olhos eram castanho-escuros. Ele tinha o rosto fino e um nariz aquilino, assim como seu pai, mas sua herança paterna mais marcante certamente era o sorriso debochado.

— Boa noite meninas. Pronta? – Perguntou o jovem, enquanto Charlotte corria até sua mesa e pegava um elmo prateado que estava sobre ela. – Espera... Você vai desse jeito?

Ele avaliava a figura da garota de cima a baixo.

— Sim, por quê?

— Capa vermelha e elmo?

— É obvio, é um disfarce. – Disse ela, colocando o elmo embaixo do braço. – E eles adoram!

— Adoram rir de você, só pode.

— Deuses, como você é chato. Emma, Merak, vamos.

A Nidorina e o Teddiursa de Charlotte se levantaram. Elise lançou um olhar aborrecido para Vincent, que imediatamente entendeu a mensagem.

— Lis, você pode tomar conta do Bolha? Ele está morrendo de sono.

O Marshtomp de Vincent soltou um enorme bocejo e sentou-se em um tapete do quarto.

— Claro. – Disse a menina de modo ríspido.

Enquanto Charlotte dava as costas para os dois e saia do quarto, Vincent murmurou de modo quase inaudível para a menina que ficava para trás: “vou ficar de olho nela.”

O garoto seguiu Charlotte, que caminhava rápido e sem hesitação na noite fresca, com Emma andando a sua frente e Merak próximo de suas pernas. Assim que eles chegaram na parte externa do castelo, o Kecleon que ainda estava em seu ombro desapareceu, deixando à vista apenas uma faixa vermelha .

— Então... Você vai mesmo fazer isso? – Perguntou Vince.

— Sim. Nós já treinamos muito, precisamos colocar as estratégias em teste.

— Mas você não acha que é cedo demais para ele?

— Tenho certeza que vai dar tudo certo.

Os dois andaram até o portão de entrada lateral do castelo, e encontraram com um dos guardas noturnos. Charlotte cumprimentou-o de modo descontraído, e ele abriu o portão para ela, sem fazer nenhuma pergunta.

Quando Vince estava para seguir Charlotte pelo portão, se deparou com uma lança que tinha sido imposta entre ele e o caminho.

— Você pode ser um nobre, mas se eu souber que tentou alguma gracinha com a senhorita Charlotte... – Mesmo por debaixo do elmo, as labaredas das tochas refletiam o olho do guarda com ameaça.

— Pode ficar tranquilo quanto as minhas intenções para com a senhorita Charlotte – Vince ria enquanto empurrava despretensiosamente a lança para o lado com um dedo. – E ela mesma daria cabo de mim antes que alguma coisa chegasse aos seus ouvidos.

— Vince, vamos logo. – Chamou a menina.

Quando os dois atravessaram a passagem para fora, o homem sussurrou palavras de incentivo:

— Dê uma surra naqueles velhos bêbados por mim, senhorita Charlotte.

 Charlotte olhou para trás apenas para piscar para o guarda, e então colocou o elmo em sua cabeça. Vincent deixou escapar uma risada abafada.

— Você está ridícula.

— Cale a boca.

 

—---

— Onde você tem andado todos esses dias?

Leon havia acabado de retornar à ferraria, e, mesmo tentando entrar em silêncio, fora descoberto pelo velho ferreiro que o acolhera. O homem de meia idade, barba grisalha robusta e braços musculosos estava sentado no escuro esperando pelo menino, com uma expressão irritada. Assim que Leon percebeu que havia sido descoberto ele tentou dar meia volta, mas o homem já o havia agarrado pelo pulso.

— Por que você está fugindo todos os dias? Leon!

— Não enche. – Respondeu ele irritado, virando o rosto.

— Moleque maldito. Eu só não queimo sua mão porque você seria ainda mais inútil. Você não pode trabalhar só pela manhã e desaparecer todas as tardes! De onde acha que vêm o dinheiro que sustenta sua mãe?

— Eu sei. Eu sei, ok? Eu estou trabalhando direito. Estou trabalhando a noite.

— Não quero saber de você acendendo a forja de madrugada, vai acabar pondo fogo na casa!

O menino tentou puxar o braço para escapar, mas o aperto da enorme mão do homem o prendia firmemente. Spike rosnou, mantendo os olhos vidrados no ferreiro.

— O que você quer que eu faça então?! – Leon gritou, furioso.

— Pare de vadiar e comece a levar seu trabalho à sério!

— Eu não quero mais ser seu escravo!

— Você não é um escravo, eu estou te pagando!

— Não está! Até agora eu não vi uma única moeda!

O velho suspirou.

— Leon, entenda, eu estou tentando te ajudar. Estou te ensinando a ter uma profissão, estou te alimentando, e estou ajudando a sua mãe a sustentar seus irmãos. Mas você precisa colaborar!

Leon estreitou os olhos, carregado de frustração.

— Ajudando o caralho, você só quer se enfiar no meio da saia dela.

Ao ouvir tais palavras, o ferreiro, furioso, acertou o rosto no menino com as costas de sua mão. Mas Leon, se aproveitando da raiva fazer o velho baixar a guarda, o chutou na canela. Assim que o aperto da mão afrouxou junto com um gemido de dor, ele saiu correndo disparado pela porta da frente, seguido por Spike e Tufão, enquanto uma voz masculina berrava por ele do lado de dentro.

— Seu moleque desgraçado, volte aqui! Leon!

Mas Leon já estava longe, correndo sem olhar para trás. Quando finalmente parou, estava do outro lado vilarejo, sem fôlego. Ele apoiou-se em uma cerca para se recuperar e começou a massagear seu maxilar, onde fora  atingido. Leon resmungava enraivecido emitindo sons sem sentido, e seus dois companheiros o olhavam preocupados. Suas mãos tremiam um pouco enquanto ele tentava se acalmar.

Aquela era a terceira vez na semana que ele era repreendido com violência pelo velho – o homem estava furioso porque Leon continuava se esgueirando para fora de casa todos os dias para se encontrar com Christophe e Abigail.

Dois anos atrás, após a morte do pai de Leon, o ferreiro o acolhera em sua casa, sustentando-o e dando moedas à mãe do menino em troca do trabalho dele. Leon não desgostava do trabalho, mas odiava o homem que o ensinava. Desde o começo os dois haviam entrado em um ciclo eterno de discussões, brigas e fugas por parte do menino. Mas ele sempre acabava voltando, pois não tinha outro lugar para ir.

O menino cuspiu uma gota de sangue no chão. Havia mordido sua bochecha. Voltar para casa naquela noite estava fora de cogitação, ele precisava se manter distante até o humor do velho amenizar um pouco. Aborrecido, sentindo-se fraco e esgotado, ele virou-se em direção à estrada e começou a andar.

 

—---

Leon se esgueirou para dentro da taverna, onde havia muito barulho. O local estava abafado e cheio, transbordando exageros de homens bêbados e suas gargalhadas. Entretanto, não era aquilo que ele procurava. Entrando sem chamar atenção, com Tufão pousado em seu ombro e Spike seguindo-o, Leon caminhou entre os adultos bêbados em direção à porta dos fundos, abriu-a e saiu para o pátio que ficava escondido atrás do bar.

Não muito tempo depois, a porta de entrada abriu novamente e duas figuras jovens caminharam para dentro. Alguns gritos animados foram ouvidos no salão quando os homens avistaram a menina vestida de vermelho que havia chegado. Outros, porém, olharam desconfiados por ela estar acompanhada de um jovem bem vestido, claramente pertencente da nobreza.

Charlotte caminhou pelo salão com Emma animada à sua frente e Merak tentando se esconder timidamente atrás dela.

 O taverneiro a avistou e cumprimentou-a com um sorriso astuto.

Mademoiselle Rouge, que agradável visita! Entre, entre. – Alguns homens gritavam o nome da menina e batiam com suas canecas na mesa. –  Estávamos sentindo sua falta. Quem é o seu amigo?

— Olá Hector – Disse Charlotte, parando em frente ao balcão e levantando a viseira de seu elmo e deixando seus olhos à vista. – Esse é meu amigo Vincent. Como vão as coisas hoje?

— Muito barulho e suor. Está cheio, creio que você não vai se decepcionar.– Respondeu o homem de meia idade, enquanto avaliava o companheiro de Charlotte com um misto de curiosidade e de suspeita. – Mas nossas noites sempre melhoram com uma presença... nobre. 

Vincent não pode deixar de perceber que estava sendo analisado.

— Eu só estou aqui para me divertir um pouco. – Disse Vince, abrindo um sorriso largo e oferecendo um aperto de mão. – E talvez ganhar umas apostas. Pode me arrumar uma caneca de cerveja?

— Claro. – Respondeu o taverneiro, e, após apertar a mão do menino, deu as costas para eles para buscar a bebida. – Se querem lucrar alto, hoje o Marcel, aquele estúpido, está ganhando todas. Todas as apostas estão a favor dele. Se vocês conseguirem chutar o traseiro fedorento dele, eu te dou duas rodadas da minha melhor cerveja de graça. Nunca gostei daquele bruto.

Os olhos de Charlotte brilharam.

— Parece um bom negócio. – Vince pegou a cerveja que lhe era estendida, olhando interessado para o taverneiro, e bebeu um gole. – É boa. – Disse ele, surpreso.

— Eu guardo a bebida vagabunda para os bêbados que já não sabem a diferença entre cerveja e o próprio mijo. – O taverneiro ainda o avaliava. Entretanto, Vincent não estava acompanhado de nenhum animal, o que aliviava um pouco suas preocupações.  – De onde você é mesmo, rapaz?

Vincent bebeu três grandes goles com gosto.

— Condado de Dampierre. – Disse o menino, distraído, voltando-se para Charlotte. – Vamos?

— Já estava ficando entediada de te esperar.

— Fiquem à vontade. – Falou o taverneiro, indicando a porta dos fundos.

Quando os dois deram as costas ao balcão, o taverneiro notou uma listra vermelha que aparentava flutuar nas costas de Vincent, sobre sua capa.

Mas o que diabos é aquilo... ?

Charlotte cruzou o salão e caminhou em direção à porta, e, ao verem isso, vários homens se levantaram e a seguiram. Vincent a acompanhou com a caneca em uma das mãos e satisfação de quem esperava voltar para casa com o bolso mais cheio.

— Não é que você é mesmo popular?

— Eu disse. – Respondeu a menina. Sua voz entregava sua animação.

Quando os dois atravessaram a taverna e saíram para o pátio, Vincent não pôde deixar de soltar um assobio. Nos fundos do bar havia um amplo espaço cercado por muros de pedra e iluminado por várias tochas. Bancos de madeira foram espalhados ao longo das paredes, e estavam ocupados por diversos homens barulhentos que bebiam cerveja e eram servidos por uma moça jovem. Ao centro do pátio uma roda havia se formado, e os homens gritavam empolgados olhando para algo dentro dela.

Quando Charlotte se aproximou, a plateia vibrou em uníssono. Parecia que a luta havia terminado. No centro da roda estava um homem mal vestido e levemente bêbado, acompanhado de uma Diggersby que acabara de nocautear um Raticate. Ele contava vantagem em alto e bom som:

— Essa é a sexta vitória hoje! Quem é o próximo vadio que vai me desafiar?

— Cale a boca, Marcel! – Um dos homens gritou.

— Volte para o buraco de onde você veio! – Outra voz escapou do meio da multidão.

— Vocês são todos uns covardes! – Respondeu Marcel, cheio de si depois de uma noite de bebidas e vitórias inebriantes.

— Eu quero lutar!

Charlotte deu um passo à frente para dentro da roda, e vários homens assobiaram. Vincent observava tudo como se estivesse assistindo um espetáculo bastante divertido. Entre os berros da plateia, era possível ouvir homens gritando: “Dê uma surra nele!”. Charlotte parecia ter vários fãs.

— Mocinha, da última vez você perdeu. – Disse Marcel, abrindo um sorriso grosseiro. – Mas se quiser me fazer lucrar mais esta noite, eu agradeço.

— Eu não cometo o mesmo erro duas vezes, ainda mais perder de novo para um homem tosco como você. - A plateia vibrava com a provocação. Alguns homens riam. – Se me permite, pretendo usar meu novo companheiro essa noite. Merak!

O Teddiursa de Charlotte, que até então estava agarrado em uma de suas pernas, se colocou timidamente no centro da roda diante da Diggersby. A plateia aquiesceu por um breve instante, estranhando a decisão da menina; entretanto, quando o som retornou, os expectadores pareciam divididos entre ruídos de empolgação e risadas. O pequeno urso tinha uma aparência adorável, olhos grandes e meigos, e aparentava estar assustado.

— Você vai usar essa coisinha contra mim? – Marcel estava incrédulo. – Depois da surra que eu dei na sua Nidorina, tudo o que sobrou foi o ursinho que você usa para dormir?

— Eu aposto quatro moedas de ouro no Teddiursa! – Gritou Vincent.

A reação foi imediata. Quatro moedas de ouro era muito dinheiro para os plebeus. Vários homens começaram a colocar suas apostas na Diggersby, rindo da ousadia de Charlotte de trazer um filhote para uma briga de rua. Vincent observava a reação dos bêbados tentando esconder seu prazer.

— Ótimo. Desafio aceito. – O homem parecia irritado. – Rubi, vamos surrar esse ursinho!

Que nome estúpido para uma toupeira.”, ponderou Vincent. “Charlotte, não vá estragar minha diversão perdendo essa luta.

— Comecem a luta! – Os homens gritavam em furor. O filho do taverneiro, que coletava as apostas, fez um sinal para que eles começassem.

 Ao perceber que a luta iniciaria, os olhos do Teddiursa ficaram ainda maiores e brilhantes, como se ele implorasse por clemência, e mais risadas ecoaram na roda. A própria Rubi parecia mais reticente diante da luta.

Isso, continuem rindo.”, pensou Charlotte. “Continuem achando que ele é inofensivo...

Vincent assistia a cena entretido, rindo da estratégia suja da amiga.

— Olha para essa porcaria assustada. Haha. – Bradava Marcel. – Vou deixar você fazer o primeiro movimento por pena.

— Merak, não tenha medo, dê uns socos nele!

O Teddiursa de Charlotte avançou. Nenhum dos dois era particularmente rápido, mas a Diggersby tinha a vantagem de tamanho e força. Ao invés de desviar do golpe do Teddiursa, ela esperou o soco chegar e, após ser atingida, atirou o adversário com uma pancada de suas orelhas. Merak rolou para longe, mas rapidamente se levantou e avançou para outro soco. A plateia ria enquanto a Diggersby, que não aparentava estar recebendo muitos danos, deixava o pequeno adversário acertar seus socos apenas para atirá-lo novamente para longe.

Cada vez que o Teddiursa se levantava, seus olhos brilhavam de modo infantil novamente, arrancando gargalhadas dos expectadores. Alguém gritou elogiando a persistência do urso. Outros gritaram para Marcel parar de brincar e acabar logo com aquilo.

Mas Charlotte, que deveria estar desesperada, estava sorrindo, fato que passava despercebido pelos expectadores que viam seu rosto coberto pelo elmo.

Continue usando Baby-doll Eyes como nós treinamos, Merak.

No quarto soco, alguma coisa mudou. Quando foi atingido, a Diggersby deu dois passos para trás e fez uma expressão de dor. Confusa, ela não empurrou o Teddiursa, e acabou sendo atingido por um quinto soco, que dessa vez a derrubou para trás. A plateia observou a cena confusa, e o barulho dos gritos diminuiu por um instante.

— Que porra está acontecendo? – Gritou Marcel. – Ruby, levante daí!

Charlotte riu, e com isso a farsa acabou. Repentinamente, a expressão adorável e frágil no rosto do Teddiursa foi substituída por um sorriso zombeiro, e seus olhos pararam de brilhar de forma infantil.

Essa é definitivamente uma estratégia suja”, pensava Vincent. “Meu pai ficaria orgulhoso. Enquanto ela diminuía o ataque do adversário se fingindo de fraca, aumentava o poder do Teddiursa usando Power-up Punch. Qualquer idiota distraído seria pego de surpresa.

O Teddiursa avançou para mais um golpe, e dessa vez a Diggersby desviou assustada. O pequeno adversário avançava e ela tentava escapar dos golpes dele, mas a exaustão das lutas anteriores aos poucos diminuía sua velocidade. Outro soco a atingiu, e ela rolou alguns metros, atingindo um dos homens da plateia. Os bêbados gritaram em furor.

Charlotte estava plenamente satisfeita. Afinal, sua estratégia havia funcionado. Merak era mais fraco e estava num nível inferior ao de seu adversário, mas ela havia encontrado um jeito de contornar a dificuldade. E os gritos da plateia enchiam a menina de orgulho.

— Ei, Marcel! Achei que você não tinha medo de garotas com seus ursinhos. Mas talvez estivesse enganada? Vou deixar você fazer o próximo movimento por pena.

Marcel cuspiu no chão. Ele não estava disposto a desistir.

— Eu não sei que truque sujo você usou, mas isso não vai acabar tão fácil. Rubi, comece a cavar.

Rubi, que havia acabado de se levantar um pouco atordoada, ouviu o comando de seu treinador e imediatamente entendeu o que ele queria. Usando suas enormes orelhas, ela começou a cavar um buraco no chão e desapareceu dentro dele. A plateia prendeu a respiração, enquanto Charlotte e seu Teddiursa congelaram esperando o adversário reaparecer em seu campo de visão. Por um longo minuto, Rubi permaneceu oculta embaixo da terra.

— Merak... Espere até ela aparecer... Quando você sentir alguma vibração estranha abaixo dos seus pés, prepare um contra-ataque.

O Teddiursa assentiu, tentando se concentrar. Mais alguns segundos se passaram antes que a enorme figura da Diggersby aparecesse novamente. Mas o urso não foi capaz de reagir quando ela irrompeu de baixo da terra, atingindo-o com precisão.

Quando Merak se recuperou do golpe, Rubi já havia desaparecido novamente. Antes que ele conseguisse descobrir um modo de contra-atacar, ela o atingiu novamente, e desapareceu sem qualquer esforço. Seu ataque estava enfraquecido, de modo que o dano causado em Merak não era tão grande, mas a estratégia de Marcel parecia ser eficiente: a escuridão da arena iluminada apenas por tochas e o barulho dos arredores mascaravam a presença dela, e Merak não conseguia reagir a tempo de evitar que fosse atingido.

Charlotte rangeu os dentes, irritada. A luta havia sido favorável a ela até então, mas, se Merak não conseguisse encontrar uma forma de evitar os golpes procedentes do subsolo, ele iria perder.

A Diggersby o atingiu mais duas vezes, deixando a plateia em euforia. Vincent murmurou nas costas de Charlotte:

— Você sabe que ele não aguenta muito dano. Se continuar assim você vai perder, e vai ter que cobrir meu prejuízo.

— Quieto. – Respondeu a menina, concentrada.

Huh. Vamos ver como você lida com isso então, mademoseille Rouge.”, pensava o menino.

Charlotte analisava a arena. A escuridão dificultava muito as chances de localizar a adversária a tempo de reagir. O barulho estava contribuindo para a exaustão de Merak, que não era acostumado a lutas longas.

Como eu faço para derrotar uma toupeira escondida no escuro? Ela enxerga muito melhor... Escuro... Escuro...? Espera aí.”

Um sorriso percorreu o rosto da menina, escondido por trás de seu elmo.

— Merak, use Sunny Day!

O Teddiursa assentiu e levou as pequenas patas até a meia lua que desenhava sua testa. Uma luz intensa começou a emanar dela, até dar forma a uma bola de luz incandescente que flutuou acima da arena, iluminando e aquecendo o local. Várias pessoas cobriram os olhos, cegadas pela luz repentina.

Quando Rubi subiu para a superfície, seus olhos acostumados com a escuridão do subsolo foram imediatamente ofuscados pelo brilho do golpe de Merak. Confusa, ela interrompeu seu ataque, e sua hesitação foi o suficiente para que ele a atingisse com um soco.

— Rápido, não deixe ela se recuperar!

O Teddiursa avançou com ímpeto em direção a sua adversária desnorteada, golpeando-a com uma sequência de socos quase desesperados, esgotando a pouca energia que havia lhe sobrado. Mas o avanço surtiu efeito, pois a Diggersby veio ao chão com um sonoro baque após o ataque.

Charlotte deixou escapar um suspiro aliviado antes de comemorar. Vincent colocou uma mão no ombro da menina.

— Bom trabalho, por um instante eu fiquei preocupado.

— Idiota. – Disse ela, dando um tapa na mão do garoto.

— Você sabe que essa estratégia nunca mais vai funcionar aqui, não é?

Mas Charlotte não conseguiu respondê-lo, porque os homens, aos berros, levantaram-na sobre suas cabeças em meio a comemorações, e começaram a levá-la para dentro do bar. Ao ser carregada, a garota deixou escapar um pequeno grito de surpresa, que logo foi substituído por riso. Enquanto ela era sacudida para cima e para baixo, seu elmo, um pouco grande para sua cabeça, balançava de um lado ao outro, e Charlotte tentava de modo desajeitado mantê-lo no lugar.

Vincent a seguiu para dentro do bar, que agora estava ainda mais barulhento. Os homens haviam colocado Charlotte sobre uma mesa e gritavam comemorando a derrota de Marcel. Vincent concluiu que ele não deveria ser um homem muito popular por lá. Satisfeito com o resultado de sua aposta, ele sentou-se no balcão e chamou o taverneiro.

— Vim buscar minha cerveja. – Disse o garoto, afastando o cabelo de sua testa, de onde escorria uma gota de suor pelo ambiente abafado.

— Promessa é dívida. – Respondeu o taverneiro. – Quatro moedas de ouro? Você não tem juízo, rapaz.

O menino riu.

— Eles sempre a tratam desse jeito? – Vincent perguntou, bebericando sua caneca de cerveja e apontando para Charlotte, que ainda estava rodeada de homens animados.

— Bem, não no começo... Mas agora ela tem vários fãs. E ninguém gosta do imbecil do Marcel. Ele vive por aí falando que aquela coelha gorda achou uma pedra preciosa cavando no jardim dele, mas ninguém nunca viu nem a cor do negócio.

— Um belo falastrão. – Ele apoiou o rosto em uma das mãos. - Qual foi o problema no começo?

O taverneiro avaliou Vincent novamente, com bastante atenção. Depois, conferiu brevemente se seu Herdier continuava dormindo embaixo do balcão. O movimento não passou despercebido pelo menino.

— Eles não gostaram de uma nobrezinha metendo o nariz no clube de lutas clandestino deles. Consideraram ela uma ameaça.

— Ah, claro. – Vincent respondeu, fingindo não se importar com o tom acusador do homem.

— No começo ninguém queria lutar com ela, nem a expulsar, e muito menos derrotá-la. Ela poderia ficar aborrecida e nos entregar. Deixaram ela vencer algumas vezes para ver se perdia o interesse e parava de vir, mas quando ela percebeu que estavam pegando leve, ficou furiosa. Com o tempo alguns deles começaram a gostar da garota.

— Ela costuma causar esse efeito. – Ele continuava aparentando estar levemente desinteressado na conversa.

— Bem, sim. Mas você não pode culpá-los por ter medo da filha do marquês.

A expressão de desinteresse de Vincent desapareceu, e ele encarou o taverneiro levantando uma sobrancelha.

— Vocês sabem?

— Claro que sim. Uma garota bem vestida de vermelho, com um elmo na cabeça e uma Nidorina perfeitamente treinada? Nós somos pobres, não somos burros.

— ...Ah.

— Além disso, um dia ela tropeçou em um bêbado e deixou o elmo cair.

Vince se engasgou com sua bebida, e quando finalmente recuperou o fôlego não conseguiu segurar uma gargalhada.

— Há quanto tempo?

— Bastante. Na terceira vez que ela veio aqui.

O garoto continuou a rir por um longo tempo, pensando na estupidez de sua amiga. Sua sorte, certamente, era ter o carisma para conseguir cativar o coração até dos homens mais brutos.

Quando ele se recompôs, percebeu que o taverneiro ainda mandava, de tempos em tempos, olhares desconfiados para ele.

— Por favor não se preocupe. – Disse Vince. – Eu realmente não estou aqui para entregar vocês. Na verdade, eu vim para vigiá-la. Ou melhor... Para garantir que ela estava frequentando um lugar seguro. Mas parece estar tudo bem aqui, não é? E eu gosto de cerveja boa e de ganhar apostas, isso já é motivo suficiente para não dedurar vocês. Se bem que vocês devem continuar desconfiando, não importa o que eu diga.

Hector o encarou, avaliando a mensagem implícita do garoto, que parecia conter uma ameaça.

— ...Faz parte dos negócios. – Finalmente ele respondeu, lentamente, estreitando os olhos.

Um homem extremamente bêbado se aproximou e pediu um pedaço de pão e mel. Quando o taverneiro colocou um pão preto, que ainda estava quente, sobre o balcão, o homem não teve tempo de pegá-lo. Uma língua comprida e cor de rosa surgiu das costas de Vincent e agarrou o pão, fazendo-o desaparecer rapidamente da vista de todos. O bêbado piscou duas vezes, confuso, sua mão parada no ar no meio do gesto de buscar o alimento, enquanto o taverneiro soltava uma interjeição de choque.

— Que merda é essa?

— Desculpe. – Disse Vincent. - Ele as vezes é mal educado. Zig-zag, o que foi que eu disse sobre roubar comida?

O Kekleon, que até então estava invisível nas costas de seu treinador, parou de usar sua camuflagem e apareceu diante de todos com a boca cheia de comida, mastigando alegremente. O taverneiro xingou baixo e se afastou irritado.

— Eu vou pagar pelo pão! – Disse Vincent em voz alta, abrindo seu sorriso torto.

— Maldito nobre traiçoeiro. – Resmungava o taverneiro enquanto se afastava.

 

—---

Leon saiu da taverna no meio da madrugada, e respirou lentamente o ar fresco do lado de fora. Ele havia procurado o clube clandestino para se distrair de sua frustração, mas mesmo depois de assistir as lutas por um bom tempo, ainda se sentia miserável. Normalmente o lugar o deixava entusiasmado, mas naquela noite ele apenas observou dos fundos e não teve vontade de batalhar. A sensação de derrota e fraqueza apenas havia se intensificado.

Ainda levaria algumas horas para o sol nascer, mas Leon não sentia vontade de voltar para casa. Ele sentia um gosto amargo na boca, e seu estômago doía de fome. Sem pensar muito, começou a caminhar desatento com seu trajeto.

Após andar por algum tempo, Leon percebeu que seus pés instintivamente o haviam levado para o portão do jardim do castelo, local onde ele costumava se encontrar Christophe e Abigail. Ele olhou para dentro do jardim oculto pelas sombras noturnas, suspirou cansado e sentou-se com as costas apoiadas no muro, abraçando os joelhos, como fazia ao esperar pelas duas outras crianças.

Spike se deitou ao seu lado, a cabeça enfiada no meio das patas dianteiras, e rapidamente começou a roncar alto. Tufão saiu voando e desapareceu no breu da noite.

 

 

—---

Christophe estava deitado de bruços em sua cama, coberto até os ombros, com o rosto apoiado em uma das mãos e um livro aberto na sua frente, iluminado por uma vela. O quarto estava silencioso, mas era possível ouvir a respiração de Arken dormindo ao pé da cama de seu dono. Melissa e Emilie estavam deitadas juntas perto do travesseiro do menino, também adormecidas.

Chris bocejou e virou uma página. Não era a primeira vez que ele passava a noite em claro lendo alguma coisa. Sempre que encontrava um livro particularmente interessante, a cena se repetia.

Um barulho vindo da janela distraiu a atenção do menino. Arken despertou imediatamente e procurou a origem do som, alerta. Chris não conseguia enxergar direito o lado de fora, mas algo estava batendo em sua janela de forma repetitiva. Ele levantou-se lentamente, acompanhado de um rosnado baixo de Arken, e caminhou até a janela com uma vela em mãos.

Quando a chama iluminou o vidro, ele pôde ver o Pidgey de Leon sentado no parapeito. Confuso, Chris abriu a janela e o pássaro imediatamente voou para dentro, pousou na cabeceira da cama e começou a coçar embaixo de sua asa com o bico.

Arken bufou.

— O que ele está fazendo aqui, Arken? – Perguntou Chris em voz baixa, confuso. – Será que aconteceu algo com Leon?

Emilie, que finalmente havia acordado com o barulho, soltou faíscas irritadas na direção de Tufão, que piou escandalizado.

— Shhh. – Chris tentava acalmá-los. – Tufão, está tudo bem com Leon?

O pássaro encarou o menino por alguns segundos com uma expressão séria, depois piou uma vez e voltou a se coçar distraído. Não parecia uma resposta muito satisfatória.

É melhor eu conferir.”, pensou ele. Chris vestiu uma capa, pegou uma manta dentro de um baú, e fechou o livro que estava lendo até então.

— Arken, venha comigo.

Os dois deslizaram pelos corredores escuros na ponta dos pés, iluminando seu caminho apenas com a vela nas mãos de Chris. O castelo estava silencioso, e até os passos mais leves do menino pareciam ecoar pelas paredes. Porém, não havia ninguém para ouvir.

Quando Chris chegou nos arcos do jardim, Arken farejou o ar da noite, procurando algo de errado. Ele identificou o cheiro de Leon e Spike, e resmungou para seu treinador. Chris assentiu e caminhou até o portão.

—...Leon? – Disse o menino em voz baixa, no escuro.

O plebeu estremeceu, assustado com a voz repentina. Olhou para os lados em busca de sua fonte, e viu a vela que Chris segurava no escuro.

— O que você está fazendo aqui? – Disse Leon em voz baixa, surpreso.

— Como assim? Eu que pergunto isso. Tufão foi me chamar.

Leon xingou baixo.

— Pássaro estúpido. Eu não mandei ele fazer isso.

— Talvez ele estivesse preocupado? Por que você veio até aqui no meio da noite?

— ...Motivo nenhum. Eu só estava andando.

Chris iluminou o rosto encabulado do amigo, e percebeu a marca vermelha em seu queixo, que não estava lá durante a tarde.

— Alguém te machucou?

Leon balançou a cabeça negativamente.

— Não. Isso não é nada.

Mas Chris conseguiu perceber pela expressão e pela voz do garoto que algo não estava bem.

— ...OK. Eu vou até aí.

— Hã?

 Leon observou atônito enquanto Chris acordava os Aipoms sonolentos e pedia para eles trazerem a corda que ele costumava usar para pular o muro. Os três macacos despertaram esfregando os olhos com as caudas, confusos com o horário anormal que Chris os chamava. Ainda assim, eles buscaram a corda, e enquanto dois deles ajudavam Chris a subir, um terceiro ficou segurando a vela para o menino enxergar o caminho.

Não muito tempo depois, Chris estava escorregando pela corda para o outro lado do muro.

— Você sempre faz isso? – Perguntou Leon, boquiaberto.

— Sim. – Respondia Chris enquanto colocava os pés no chão. Spike se aproximou balançando o rabo e lambeu suas mãos. – Oi Spike. Mas é bem mais fácil com o Charles, né?

Leon assentiu, e ficou quieto. Chris pegou a manta que dois Aipoms haviam carregado corda abaixo até ali, e a jogou por cima da cabeça de Leon. O plebeu olhou para ele confuso, tirando o pano de cima de seu rosto.

— Está fresco, é melhor se cobrir.

Os dois se sentaram com as costas no muro, Leon quieto, e Christophe observando-o.

— Leon, você quer conversar? Por que está andando de madrugada?

Após alguns instantes de silêncio constrangedor, Leon começou a responder.

— Às vezes eu não consigo dormir. Desculpe por te acordar.

— Não tem problema, eu estava lendo.

— Essa hora?

— Sim.

Os dois ficaram em silêncio novamente.

— Eu... Não sei ler. – Disse Leon, depois de um tempo.

— Eu posso te ensinar, se quiser.

— Sério?

— Sim. Você está me ensinando a batalhar.

Leon assentiu e abaixou a cabeça.

— Leon... Não precisa me contar o que aconteceu se não quiser, mas você parece triste.

Nenhuma resposta. Leon nunca fora bom em comunicação, mas naquela noite ele estava ainda mais inerte. Até mesmo sua expressão corporal normalmente exagerada havia aquietado.

Chris percebeu que não conseguiria muitas respostas. Ele respirou fundo, pensando em mudar sua abordagem, e se aproximou de Leon, encostando seu ombro nele. O gesto, como esperado, causou uma reação. Leon estremeceu e o encarou.

— Sabe Leon, você estava enganado sobre uma coisa. Nem todos os nobres se dedicam à guerra.

O plebeu parecia confuso com a súbita mudança de assunto.

— ...Não? – Ele conseguiu responder, lentamente.

— Não. Alguns deles passam a vida cuidando da administração de suas terras. Outros vão para a universidade estudar. Alguns também acabam se dedicando à religião. – Chris se aproximou mais e, cruzando as pernas, encostou o joelho nas pernas de Leon. – Eu nunca fui muito forte, mas sempre gostei de estudar, e por isso desde bem pequeno eu tenho planejado ir para a universidade quando for mais velho.

Leon não sabia o que era uma universidade, o que ficou claro por seu olhar inquisidor, mesmo no escuro. Chris passou então a contar com empolgação a ele o que se fazia em uma universidade. Ele descreveu quais tipos de pesquisa achava interessante, como funcionava a universidade de Paris, como o trabalho dos pesquisadores ajudava a nobreza em muitos aspectos, como os pesquisadores poderiam viajar pelo mundo todo catalogando novos animais e aprendendo coisas novas... Leon aos poucos pareceu distraído de suas próprias preocupações à medida que ouvia o amigo entusiasmado falar sobre aquilo que ele mais gostava, sobre um mundo que ele nem sequer sabia que existia até então.

Chris percebeu, satisfeito, que havia conseguido distrair Leon do que quer que estivesse o preocupando. Os dois continuaram conversando por um longo tempo, Leon inicialmente quieto, mas depois, mais interessado, fazendo perguntas e reagindo com as respostas. Em algum momento os dois começaram a bocejar, conforme a madrugada caminhava para o seu fim, mas, mesmo assim, eles continuaram conversando.

Quando o dia estava prestes a amanhecer, Chris adormeceu encostado em Leon. O plebeu o encarou enquanto a vela que o menino havia trazido apagava após ter consumido todo o pavio. O último tópico da conversa havia sido o trabalho do pai de Abby e a empreitada em busca dos ovos de dragão que começaria  dali dois dias. Leon viu o sol iluminar aos poucos os pinheiros do bosque ao mesmo tempo que uma ideia estranha e ousada se formava em sua cabeça, e ele aos poucos esquecia da frustração da noite anterior, substituindo-a por uma determinação irresponsável e talvez até injustificada.

Se até alguém pequeno como Chris podia se dedicar a algo com tanto fervor, ele não tinha motivos para continuar se arrastando desanimado por tavernas sujas durante a madrugada. Se ele se sentia fraco, precisava ficar mais forte. E de preferência, rápido. Assim que ele se tornasse realmente forte, ninguém além dele mesmo mais poderia controlar sua vida.

Quando Chris acordou na manhã seguinte, Leon não estava mais com ele.


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Notas finais do capítulo

Oi gente, obrigada por lerem até aqui!

Se vocês estão gostando da história, pensem com carinho em deixar um comentário ou até mesmo uma recomendação. S2



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