Fiat Ignis escrita por SophieRyder


Capítulo 13
Capítulo 12 ou "Leon, o estulto"


Notas iniciais do capítulo

Por favor me desculpem por demorar tanto para atualizar... Espero que o capítulo longo de hoje compense um pouco pela demora.

Se encontrarem algum erro de digitação, por favor me avisem ;)



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— Então... Qual o problema com ele?

Chris e Abby estavam no quarto da menina, parados diante do parapeito da janela, observando Archimedes, o Hoothoot. O pássaro, que antes estava dormindo, agora os encarava desconfiado, incomodado com os olhares das crianças. Arken e a nova Chikorita de Chris, batizada de Melissa, se encontravam comportadamente ao lado do garoto. Emilie continuava pendurada em seu ombro, se escondendo atrás de seu cabelo, que naquele dia havia sido trançado e amarrado com uma fita azul turquesa, combinando com as vestes de Chris.

Abby, por outro lado, parecia modesta perto de seu companheiro, com roupas comuns, usando sua camisa verde escura de mangas longas, um culote marrom e botas de cano baixo confortáveis, feitas para exploração. Charles os observava um pouco distante.

— Bem... Papai o comprou já domesticado. Ele veio de uma criação que de pássaros mensageiros.

—Hm-hm.

Chris a ouvia muito concentrado, sem tirar os olhos do Hoothoot.

— Supostamente ele deveria se comportar direito. Ele sabe se comportar. Mas por algum motivo ele não me obecece.

— Em batalhas ou fora delas?

— Ambos. Ele não obedece nem um comando simples. Ao mesmo tempo, ele não foge, e sempre fica por perto.

Chris mudou seu ângulo de visão, e Archimedes soltou um piado irritado.

— Faz sentido ele não fugir. Ele nunca foi selvagem. Os humanos são sua fonte de alimento e segurança.

— É, mas ele demonstra desprezo supremo por essa fonte. – Disse a menina, amarga.

— Hm...

O menino mudou de posição novamente, e o Hoothoot acompanhou-o com o olhar, demonstrando cada vez mais incômodo.

— Ele não parece muito a vontade perto da gente. – Comentou Chris.

— É.

— Por quê?

— Eu não sei, nós só estamos olhando.

Os dois permaneceram em silêncio, até que Abigail soltou um resmungo frustrado.

— Essa coruja está sacaneando a gente. Ele só quer saber de dormir durante o dia e passear durante a noite.

A expressão de Chris se iluminou.

— Talvez seja esse o problema.

— O que?

— Os horários.

Vendo que a garota não entendeu o que ele disse, ele reformulou:

— Hoothoots tem hábitos noturnos, certo?

— Sim.

— Isso significa que durante o dia eles se escondem, certo?

— Sim.

— Mesmo ele sendo domesticado, isso não significa necessariamente que ele vai confiar em você. Então talvez o problema seja que você está tentando treiná-lo num horário que ele se sente vulnerável, e como a personalidade dele já é tímida, ele acaba ainda mais retraído e desconfiado. Nós podemos tentar treiná-lo a noite.

— Eu não sei...

— Não custa tentar.

Abby encolheu os ombros.

— É. Tem razão.

Chris finalmente desviou o olhar de Archimedes e voltou-se para Abby, mas foi interrompido pelo barulho de asas na janela. Um pidgey gordo entrou sem delicadeza nem cerimônia no quarto, trombando com Archimedes, que soltou um pio furioso e voou para o topo de um armário. Abigail também se assustou e, ao recuar, trombou com Chris.

— Ai! Desculpa.

— Você tá bem? – Perguntou o menino.

— Sim...

Os dois olharam para o invasor, que parecia muito satisfeito consigo mesmo, pousado no parapeito da janela.

— É o pidgey do Leon. – Disse Chris.

— Como você sabe?

— Pelas penas da crista dele. Elas são um pouco mais escuras.

— São?

Abby não sabia ver nenhuma diferença entre a cor das penas daquele e de outros pidgeys, mas certamente aquele era o animal gordo de Leon. A garota sabia, porque o plebeu havia visitado o castelo insistentemente nos últimos dias, mandando seu pássaro fazer barulho, e ela fizera o possível para afastá-lo sem que Chris percebesse, enquanto ele ainda estava de cama.

Mas Chris havia voltado a andar dois dias atrás, e agora não havia muito o que esconder. Ali estava o enorme Pidgey, tão escandaloso quanto seu dono.

— Ele deve ter trazido alguma mensagem. – Disse Chris, olhando a perna do pássaro para ver se havia alguma mensagem presa a ele. No entanto, não havia nada.

— Aquele estulto não deve saber escrever. – Disse Abby.

— O que ele quer então?

— Comida, provavelmente.

— Não... Ele deve ter vindo nos chamar. Leon deve estar por perto. Provavelmente no bosque.

Abby suspirou, admitindo a derrota. Não haveria jeito de fazer Chris ignorar o pássaro. Chris abriu um sorriso animado no rosto, e segurou as mãos da menina com empolgação.

— Vamos procurá-lo!

É claro que ele diria isso. Sempre adorável.

Eu só queria ler um livro.”, pensou Abigail enquanto o acompanhava para fora do quarto. “Por que ele sempre me arrasta pelas mãos?

Provavelmente ele gosta de você.

Charles. Ele gosta de tudo que é vivo.

Chris andou com Abigail até seu quarto, seguido por Arken e Melissa, e por um mau humorado Meowstic. Abrindo seu armário, pegou rapidamente uma capa cor de creme, com bordados finos em fios prateados, que havia substituído sua capa cinza destruída no ataque dos Poochyenas.

Ele vestiu-a e saiu novamente do quarto, animado, tentando andar mais rápido do que deveria para alguém que acabara de ferir uma perna. Abby foi obrigada a acompanhar seu ritmo. Quando eles se aproximaram dos arcos do jardim, Chris parou, ofegante. Seu corpo não parecia apto para correr pelos corredores de pedra intermináveis, e ele ainda estava mancando. Abby o observou preocupada, mas assim que a sua respiração voltou a um ritmo aceitável, Chris voltou a andar, sem parecer preocupado.

Ao cruzarem os arcos do jardim, Chris viu imediatamente as costas de Leon apoiadas do outro lado do portão. Ele estava sentado de costas para o jardim, e atirava um pedaço de madeira para seu Rockruff buscar.

— Leon! – Gritou o menino.

O plebeu, que havia acabado de erguer o braço para atirar novamente o galho, assustou-se com o grito e parou no meio do movimento, derrubando-o no chão.

— Shhh – Reclamou Abigail. – Você quer que descubram a gente?

Mas Chris não estava ouvindo, pois já caminhava em direção ao portão. Leon virou-se constrangido para olhar as duas outras crianças. Seu rosto misturava uma série de expressões, desde timidez, preocupação e alívio, e o menino não parecia decidir qual delas era predominante. Quando Chris se aproximou, ele tentou murmurar algumas palavras.

— Você ta melh... Argh.

A frase foi interrompida por seu Rockruff que, irritado por ter sido ignorado no meio da brincadeira, mordeu uma das mãos de Leon.

— Spike... seu... idiota! – Disse ele com raiva, tentando se livrar do cachorro, que agora puxava sua camisa balançando o rabo e desequilibrando seu dono.

Chris riu, Arken soltou um latido e fez com que o Rockruff finalmente soltasse Leon, distraído com a presença do outro cão. Leon parecia ainda mais constrangido do que antes, seu rosto estava vermelho por consequência do esforço de afastar seu companheiro não muito educado.

— Ele é bem animado. – Disse Chris, ainda rindo.

Leon pareceu novamente se tornar consciente da presença do outro menino, e segurou as grades do portão.

— V-você tá bem? – A expressão de preocupação novamente tomou conta de seu rosto - E sua perna?

— Perfeita... Eu gostaria de dizer. Mas ela deve ficar boa.

Chris sorriu, e Leon corou de novo, se afastando da grade.

— Ó-otimo.

— Seu Pidgey foi nos buscar. – Continuou Chris, ignorando as reações.

— Por que você está aqui mesmo? – Completou Abigail, com sua expressão apática corriqueira.

— Você de novo – Resmungou Leon.

— O que? – Retrucou a menina. – Não entendo seu dialeto de Vigoroth.

— Ei, ei. – Percebendo o clima tenso, Chris interrompeu-os. – Qual o problema?

— Nenhum. – Respondeu Abby.

Leon bufou.

Parece que eles não gostam muito um do outro.”, pensou Chris.

Que observação perspicaz.”, ecoou a voz de Charles dentro dos pensamentos do menino.

Chris teve uma ideia.

Ei, Charles.

Agora você conversa comigo por telepatia também? Estou honrado.

Você pode abrir o portão?

É claro que não.

Chris e Charles se encaravam, e Abigail percebeu que um diálogo estava ocorrendo. Leon apenas os observava, confuso com o repentino silêncio.

Eu acho que você deveria.

Por qual motivo, meu caro jovem? Não pense que seu charme de criança terá efeito comigo.

Não, é claro que não. Você é muito inteligente para isso.

Bajulação também não ajuda.

Chris riu.

— Mas o que diabos... – Resmungou Leon.

Mas veja, eu gostaria de passar o dia com Leon, e quem sabe fazer com que Abbe e ele fiquem amigos. Mas se você não abrir o portão, eu vou ser obrigado a pulá-lo. De novo. E convencer Abbe a pular comigo. Você sabe que eu vou conseguir convencê-lo, né?

“...”

Mas não parece muito mais perigoso fazer isso? Se você pode simplesmente abrir? Porque esse muro é muito alto. E se acontecer algum acidente, nós vamos te dar trabalho.

E se eu me recusar a abrir e não deixar vocês pularem?

Eu acho essa hipótese altamente improvável.”

Por qual motivo, criança prodígio?”, disse o gato com excessivo sarcasmo, perdendo a paciência.

Porque nos impedir de escalar o muro te daria ainda mais trabalho.

...Ótimo.

Com um ‘click’, a fechadura do portão se abriu, e Chris preencheu seu rosto com um largo sorriso.

O que foi que você fez? – Disse Abby, assombrada.

— Obrigado Charles.

Chris abriu o portão, para dar de cara com Leon claramente perturbado.

— Tem fantasmas nesse castelo? – Perguntou ele, confuso. Já era a segunda vez que ele via o cadeado sendo aberto magicamente.

— Tsk. – Abigail fechou o rosto. – Idiota.

— Claro que não, Leon. – Chris respondeu, abrindo passagem para que Arken e Melissa passassem para fora do castelo, e colocando-se entre Leon e Abby para evitar mais conflitos.  – Charles abriu para nós. O gato.

Leon olhou para ele desconfiado.

O ‘gato’. É isso que eu virei. Um reles ‘gato’.”, resmungou Charles ao cruzar o portão junto com Abigail.

— O que nós estamos fazendo exatamente? – A menina não parecia confortável com o desenvolvimento da situação.

— Nós vamos... Para o lago!

E com essa afirmação categórica, Chris segurou a mão dos dois e puxou-os adiante.

Em sua súbita empolgação, Christophe não fechou o cadeado do portão. Enquanto eles se afastavam, um par de olhos azuis muito vívidos os observava, por entre os arcos do jardim.

—---

As três crianças caminhavam pela floresta, com Chris ao centro conduzindo os outros dois, e, de tempos em tempos, Leon fazia uma careta para Abigail, que já estava bastante irritada. Chris percebia a troca de olhares entre os dois, mas fazia o possível para desviar a atenção deles.

— E se você andar até a margem sul do lago, tem um lugar cheio de arbustos de margaridas, e elas atraem vários insetos, incluindo Beautiflys...

Leon não parecia particularmente interessado em arbustos de flores, mas, de tempos em tempos, ele lançava olhares curiosos e constrangidos para Chris, que segurava sua mão. A delicadeza e afabilidade com as quais o menino nobre o tratava continuavam a causar estranhamento, mas de algum modo, Leon se sentia atraído àquilo, como um animal que havia sido maltratado durante a vida, e pela primeira vez via um pouco de gentileza.

Quando eles finalmente chegaram no lago, Chris soltou a mão dos dois, e Abigail rapidamente teve sua atenção entretida por um Deerling que bebia água na margem oposta. Como a primavera já havia começado, a folhagem em suas costas havia adquirido a cor rosa, fato que não passava despercebido à jovem aspirante a pesquisadora.

Chris, por outro lado, parecia ter percebido algo bem mais próximo.

— Leon, por que suas mãos estão queimadas?

Ele olhava para elas com preocupação, vendo várias marcas vermelhas e bolhas espalhadas por diversos pontos.

— Eu sempre queimo no trabalho. – Resmungou o plebeu. – Não é nada demais.

— Que trabalho?

— De ferreiro.

Chris o encarava com curiosidade.

— Você é um ferreiro?

— Aprendiz. – Disse Leon, um pouco constrangido com a sequência de perguntas. – Não que eu goste muito.

Chris parecia bastante interessado.

— Você trabalha com seu pai?

Leon ficou quieto por alguns instantes, antes de responder.

— ...Não. Com um velho ferreiro na vila.

— Ei, Chris. – Abigail interrompeu a conversa. – Os Sawsbucks migram daqui no inverno?

— Sim, eles vão para o sul.

— Isso significa que você não consegue vê-los na forma de inverno por aqui?

— Uma vez eu vi um, mas ele estava ferido e provavelmente ficou para trás do bando.

A menina concordou com a cabeça, e voltou a observar o Deerling.

— Queria ver um Sawsbuck na primavera... – Resmungava ela, olhando para a outra margem.

— Leon. – Chamou Chris.

— O que?

— Eu acho que ser um ferreiro é bem legal. É um trabalho importante. Sem eles, os camponeses não conseguiriam trabalhar sem suas enxadas, e os guerreiros não poderiam proteger o reino sem suas espadas. E vocês tem autorização para usar animais do tipo fogo!

— É... O velho tem um Magcargo carrancudo. Mas eu só trabalho lá porque preciso do dinheiro. – Leon espiou, por cima de seu ombro, enquanto Spike fazia investidas brincalhonas provocando Arken para brincar, e recebia de volta rosnados aborrecidos do outro cão, que tinha quase o dobro de seu tamanho. – Ei... Você quer batalhar?

A pergunta se dirigia a Chris, que o olhou com curiosidade.

—  Eu... sei que é proibido. Quer dizer, que nós plebeus somos proibidos. – Ele se referia à proibição feita pelos nobres de batalhas entre os plebeus, para evitar que eles criassem animais perigosos. Por conta disso, suas palavras eram cuidadosas. – Mas... Não tem problema só um pouquinho, não é? Ninguém está vendo.

— Eu não sou muito bom em batalhas... – Disse Chris, um pouco envergonhado.

— Não? Não é isso que vocês fazem?

— Bem, normalmente é, mas no meu caso... – O menino parecia apreensivo para encontrar palavras para responder seu interlocutor.

— O que? Eu achava que os nobres eram nobres porque sabiam lutar...

— Sim, mas ele é um covarde incompetente.

A voz que interrompia a conversa com agressividade vinha dos pinheiros em torno da orla do lago. As três crianças olharam imediatamente, procurando sua fonte, e encontraram ali uma figura de aparência selvagem, olhos azuis ferozes, acompanhada de um Houndour e uma Sneasel.

Abigail deixou escapar um som abafado de temor, e Chris, sentindo um calafrio pelo corpo, instintivamente recuou dois passos. Abby olhava aflita para a Sneasel ao lado do garoto, e percebeu que haviam prendido em uma de suas pernas uma corrente com uma pesada bola de ferro na outra ponta. O Houndour de Morgan a cercava, estalando os dentes e rosnando.

— Quem é você, moleque? – Perguntou Leon com recíproca agressividade.

— Leon... Esse é meu irmão Morgan. – Disse Chris em tom baixo, segurando levemente a ponta da camisa de Leon. – Por favor, não o provoque.

— Por quê? Ele acabou de te chamar de covarde.

— Ele não está totalmente errado, então...

— Ei, Chris.

Morgan interrompia novamente a conversa, olhando intensamente para os dois meninos.

— Então é isso que o Christophe perfeito anda fazendo. – Ele começou a caminhar às crianças. Seu Houndour, chamado Cérberos, rosnou para a Sneasel, que, lançando a ele um olhar enraivecido, começou a seguir Morgan, impelida pelo cão. – Fugindo do castelo para brincar com seu novo amigo mirrado e com um plebeu sujo.

O que você disse?

Leon tentou avançar com raiva, mas foi interrompido por Chris, que agora o segurava pelo braço.

— Por quanto tempo você vai continuar envergonhando nosso pai com sua incompetência?

Enquanto Chris tentava acalmar Leon, que estava furioso, Abigail não conseguia desviar os olhos da Sneasel contida pela bola de ferro. Certamente aquela era uma tática para que ela não conseguisse fugir, estando limitada pelo peso e pelas presas do atento Houndour. Ainda assim, a menina não conseguia deixar de temer as duas enormes garras nas mãos do animal selvagem, sem quase nenhum treinamento.

Se aquela coisa atacar, eu não poderei fazer nada.”, disse Charles, reforçando o receio da menina.

— Eu deveria contar para o nosso pai. – Continuou Morgan. - Charlotte não vai poder te salvar dessa.

Abigail tentava pensar em uma negociação que impedisse Morgan de incitar seu novo animal de estimação assassino para cima deles.

— Você também saiu do castelo – Disse a menina. – Eles também vão ficar furiosos com você.

— É, vão. Mas eu vou ter o prazer de ver ele enrascado. – Morgan agora estava a apenas um metro de distância de Leon, e apontava para Chris. – A não ser, é claro, que você prefira batalhar comigo. Nesse caso, eu fico quieto. Estava mesmo querendo testar o que ela pode fazer.

— Morgan, você sabe que eu não vou lutar. – Respondeu Chris, ainda segurando o braço de Leon. – Vamos voltar para o castelo, eu vou lidar com o castigo.

Mas a resposta apaziguadora pareceu ter efeito contrário, deixando Morgan ainda mais enfurecido.

É por isso que você envergonha nossa família – Gritou ele, e avançou em direção a Chris, agarrando-o pelo colarinho.

Morgan levantou seu punho para atingir o irmão, mas Leon, que era maior que os dois, agarrou-o pelo ombro e o atirou no chão. Entretanto, para sua surpresa, no instante que Morgan atingiu a terra, ele levantou-se com a mesma intensidade e avançou para cima de Leon com os punhos cerrados. Leon tentou segurá-lo, mas Morgan ainda assim conseguiu acertar seu queixo de raspão, e os dois caíram no chão.

— Parem com isso!

Chris gritava aflito, mas os dois meninos já estavam rolando no chão, trocando socos e chutes. Apesar de ser menor, Morgan compensava sua desvantagem com uma ferocidade comparável a um animal selvagem. Entretanto, Leon também parecia habituado a confrontos, e não demonstrava ter intenção de recuar.

Charles, faça alguma coisa!”, implorou Abigail.

Leon finalmente conseguiu colocar seu corpo sobre Morgan, prendendo um de seus braços com seu joelho, mas a outra mão do menino mais novo correu até o quadril do plebeu, e agarrou sua faca de caça.

Percebendo um possível desdobramento catastrófico, antes que Morgan conseguisse efetivamente terminar de tirá-la da bainha, Charles arrancou o corpo de Leon de cima dele, e, fazendo as duas crianças flutuarem, atirou-as sem delicadeza em direções opostas.

Morgan, novamente, levantou-se com rapidez, e lançou um olhar perverso em direção de Abigail e Charles - pela segunda vez ele era interrompido pela dupla de forasteiros, e estava furioso.

Leon também se levantou com raiva, e, limpando uma gota de sangue que escorria de seu nariz, gritou para Morgan:

— Se você quer uma luta, eu vou ter o prazer de surrar sua cara cretina!

— Ótimo! – Respondeu Morgan, desviando o olhar de Abby. – Sombra, mostre o que você sabe.

Mas, para a frustração de Morgan e o alívio de Chris e Abby, a Sneasel lançou um olhar de desprezo para seu novo dono, e balançou uma de suas garras com desdém, mostrando não estar interessada naquilo. Irritado, Morgan incitou o Houndour a empurrá-la com mordidas para a luta. Entretanto, Sombra apontou suas duas garras para a garganta do cão e sibilou de modo ameaçador, mostrando que não seria forçada a nada.

Leon riu.

— Como você quer brigar se nem consegue controlar seus bichos? – Disse o plebeu, provocando-o.

— Silêncio. – Resmungou Morgan. – Cérberos, vá.

O Houndour deixou de lado a Sneasel, e avançou para o espaço entre Leon e Morgan. Leon gesticulou, e seu Rockruff se adiantou para enfrentá-lo.

Queime-o.

Ao comando da voz de Morgan, Cérberos abriu suas mandíbulas e deixou escapar labaredas de fogo, disparando em direção ao Rockruff. O parceiro de Leon era pequeno em comparação a seu adversário, mas não perdia em agilidade. Ele esquivou-se da investida de Cérberos, mas de um modo um tanto desleixado, e as chamas o alcançaram, lambendo suas patas traseiras. Aproveitando-se do primeiro ataque, o Houndour avançou novamente, com fogo escapando pela mandíbula, visando a garganta do oponente.

O ataque teve um resultado inesperado: ao morder o Rockruff, o Houndour recuou ganindo, com gotículas de sangue caindo de sua boca. As pedras em torno do parceiro de Leon eram duras e afiadas, e serviam como uma proteção natural.

— Isso deve ter doido... – Sussurrou Abigail.  

Leon riu.

— Por que você acha que ele chama Spike? – Zombou o plebeu.

— Porque seu cérebro não intelige mais do que cinco letras de cada vez – Murmurou Abby para Chris.

— Spike, jogue pedras nele!

Um anel de pedras surgiu em torno do pescoço de Spike, e com um rugido, ele as arremessou no Houndour. O ataque novamente era desleixado e espalhou pedras por todo lado, sem muita precisão; entretanto, foi efetivo, causando grande dano por conta da fraqueza do tipo fogo. Desequilibrado, o Houndour tentou levantar-se após o golpe, mas novamente o Rocktuff investia contra ele, dessa vez com seus dentes pontiagudos.

Os movimentos de Leon são muito descoordenados e confusos”, pensava Abby, “mas de algum modo estão funcionando. Ele está mandando no ritmo da luta.

Ele tem sorte de ter a vantagem de tipo.”, respondia Charles. “O pivete homicida é muito mais coordenado.

Numa luta com um nobre mais experiente, Spike jamais teria chance, mesmo com a vantagem de tipo.”, ela ponderava, “mas Morgan ainda é muito inexperiente, e parece que um certo plebeu anda treinando às escondidas.”

Apesar dos movimentos desnecessários, Spike continuava a atacar sem qualquer hesitação. Os dois caíram no chão, enquanto Cérberos tentava se livrar da mandíbula de Spike que prendia suas costas. Enfim ele escapou, quando rolou seu corpo por cima do adversário.

— Cérberos, use Flame Charge!

— Spike, Sand Attack!

O corpo do Houndour se cobriu de chamas, mas, no momento que ele começou sua investida, Spike levantou uma nuvem de areia que o fez perder o campo de visão. Confuso, ele hesitou por um instante.

— Rock throw, de novo!

Mais pedras atingiram o Houndour, seguidas por uma cabeçada do Rockruff, que o arremessou para longe. Enquanto a poeira baixava, as crianças puderam ver que o Houndour estava caído no chão, sem sinais de que conseguiria prosseguir com a luta.

— Você é muito barulhento para alguém que nem sabe lutar. – Disse Leon, provocando o adversário derrotado. Morgan cerrou os punhos, furioso. – É assim que os nobres lutam? Que piada.

— Você deveria tomar cuidado com sua língua, plebeu – Morgan o ameaçava. – Ela pode acabar queimada.

 - Como? Seu cachorro está tirando um cochilo. Não quer tentar de novo convencer seu outro bichinho a lutar? Se bem que ela parece bem fraca.

A Sneasel lançou um olhar irritado para Leon.

— Não a provoque, seu imbecil! – Sibilou Abigail, com rispidez.

— Por que não? Aquela coisa magrela não parece boa de briga.

— Você não sabe o que está dizendo. – Respondeu Morgan.

— Leon, pare com isso... – Murmurou Chris.

Mas Leon o ignorou.

— Eu nunca vi um bicho tão magro, parece que faz anos que ela não come.

— Você vai deixar esse plebeu sujo te provocar desse jeito? – Disse Morgan para a Sneasel.

— O plebeu sujo que acabou de surrar sua bunda. – Leon ria. - Então deixe eu te ajudar a motivá-la.

Leon fez um gesto, e Spike atirou pedras na Sneasel, que os observava à distância. Ao ver o ataque ela tentou se esquivar, mas a bola de ferro em sua perna atrasou sua agilidade, fazendo com que algumas das pedras a atingissem. Quando ela se levantou do golpe, sua expressão estava tomada de fúria. Um sorriso malicioso percorreu os lábios de Morgan.

— Spike, use Bite!

Spike avançou, enquanto Sombra o acompanhava com seus olhos inteligentes. Por um instante pareceu que ela não iria desviar, dada a corrente que limitava seus movimentos. Mas, quando Spike chegou perto o suficiente, ela pegou a corrente com suas duas garras e, com um giro de seu corpo, arremessou a bola de ferro no cão, atingindo seu focinho.

Spike recuou, ganindo, enquanto a Sneasel o observava imóvel. Ele voltou-se a ela rosnando, ainda desorientado com o golpe. Sombra levantou uma de suas garras, em um claro gesto de provocação. Leon rangeu os dentes, irritado com a reação.

— Spike, não chegue muito perto dela, use Rock Throw!

Pela segunda vez Spike atirou pedras na Sneasel. Entretanto, ao invés de recuar, suas garras brancas endureceram e mudaram para um tom metálico.

Ela sabe usar Metal Claw.”, observou Chris com um calafrio, e lançou um olhar ansioso para Abby. A menina entendeu.

 – Leon... Spike está em desvanta... – Ela tentou avisar.

Mas Abby não conseguiu terminar a frase. Sombra cortou no ar as pedras que a atacavam, e disparou em direção a Spike. Mesmo com sua velocidade reduzida ela era rápida, e o cão, ainda um pouco desorientado, tentou mordê-la, apenas para ser atingido novamente pela pesada bola de ferro.

Sombra subiu sobre seu corpo e levantou uma de suas garras prateadas.

— Isso, corte-o! – Gritou Morgan.

Mas a Sneasel parou no meio de seu movimento, e olhou com desprezo para seu treinador. Algo em sua expressão dizia com todas as letras: eu não vou fazer o que você quer. Então, ela baixou sua garra, e recuou para longe do Rockruff. Abigail e Christophe deixaram escapar um suspiro de alívio.

— Sua inútil, termine o que começou! – Gritou Morgan.

Mas ela não estava mais interessada. Deu as costas para as crianças e sentou-se, entediada. Morgan rangia os dentes, frustrado.

— Parece que ela não te respeita. – Provocou Leon.

— ...Vamos embora.

Morgan ajudou seu Houndour ferido a levantar-se, e encarou as outras crianças com violência. Sua expressão não era de alguém que havia aceitado uma derrota, mas sim arrebatada de ímpeto e cólera. Aquilo era um desafio.

— Ele não vai deixar isso passar... – Murmurou Chris encolhendo os ombros.

Sombra emitiu um som de desdém quando Morgan a chamou, e, levantando-se, sem que ninguém a forçasse, seguiu-o com um sorriso de escárnio no rosto.

Enquanto eles se afastavam, Leon bateu no peito.

— Há. Eu venci.

— É claro que não. – Retrucou Abby. – Você viu como aquela Sneasel se movia? Ela podia ter matado todos nós.

— Não faz diferença se ela desistiu.

— Seu estulto... Imbecil... Energúmeno...

Abby tentava encontrar em seu vocabulário todas as palavras que conhecia para descrever a burrice do garoto diante dela. Mas Leon não a ouvia. Ele agora olhava para Chris, com uma expressão séria.

— O que foi? – Disse Chris com receio.

Leon o encarava com as sobrancelhas franzidas, os olhos cor de âmbar brilhando com algum pensamento insondável.

Seu covarde! – Falou finalmente o plebeu, com raiva.

Chris encolheu os ombros, surpreso com a repentina agressividade.

— Por que você não reagiu? Por que não lutou? Como você deixa os outros te atacarem desse jeito sem fazer nada?

— Eu não gosto de brigas... – Respondeu Chris, baixando o olhar em uma expressão triste. Entretanto, aquilo não aplacou a reação de Leon.

— Você é um nobre, seu trabalho é lutar. E você tem esses animais de elite, e armas caras e treinadores, pra quê? Pra lutar. E ainda assim, você deixa aquele pivete te surrar de graça? Qual o seu problema?

Chris, que até então permanecia com o rosto abaixado, olhando para os próprios pés, levantou os olhos repentinamente, e encarou Leon com intensidade. Seus olhos se encheram de lágrimas, mas ele não desviou o olhar enquanto cerrava os punhos, gesto que deixou Abigail perplexa.

— Eu não posso fazer nada se nasci com esse corpo! – Sua voz soava embargada pelo choro, mas não havia hesitação nela. – Não posso fazer nada se não consigo erguer uma espada! Não importa o que eu faça, eu vou perder. Eu sei que vou perder, não faz sentido tentar.

Leon recuou um passo, diante da repentina ferocidade no olhar de Chris. Abigail também prendeu a respiração. Desde que ela havia chegado no castelo, jamais havia visto tal expressão em Chris. Não se tratava de raiva, mas sim de uma profunda e persistente frustração; era claro, para ela, que aquilo que Chris dizia já havia se repetido muitas vezes em seus pensamentos, acumulando camadas de desapontamento consigo mesmo.

— Eu fui proibido de entrar no campo de treinamento, porque todas as vezes eu desmaiava no sol! – Gotas de lágrimas escorriam por seu rosto e suas mãos tremiam, mas, mesmo assim, seu olhar não abrandou. – Só me deixaram treinar com um arco, e minha mira é horrível, e minhas mãos tremem, e meus ombros queimam de dor. O que você espera que eu faça com esse corpo? Sim, você tem razão, eu sou um covarde, mas mesmo se eu me esforçasse, eu não teria chances de ser outra coisa.

Enquanto olhava para aquela cena, Abigail não pode deixar de perceber, repentinamente, a contradição patente entre as palavras de Chris e o que acontecia diante dela: enquanto o pequeno menino constatava sua fraqueza, ele intimidava Leon com seu olhar firme e intenso; e mesmo afirmando sua covardia, ele confrontava, com suas palavras, alguém maior e mais forte, sem recuar.

Leon olhava para a criança delicada diante de si, que chorava de frustração, e percebeu que, se ele fosse de fato um covarde, não teria se atirado desarmado no meio de um bando de Poochyenas selvagens para salvar um Emolga em perigo. Lentamente, ele se arrependeu, envergonhado, das palavras duras que dissera. Havia algo na expressão frustrada de Chris que o lembrava de si próprio.

— Eu... Desculpa. – Chris ainda o encarava, com o rosto vermelho e lágrimas escorrendo pelas bochechas. – Mas você está errado.

—.... Ahn?? – Abby deixou escapar uma exclamação.

Por um breve momento, Abigail pensou que Leon recuaria, mas ele também cerrou os punhos e deu um passo à frente.

— Se seu corpo é fraco, use sua cabeça! Você não é esperto?

Chris também não recuou.

— É claro que sim, mas eu não vou segurar um soco com um livro! – Gritou ele, agora com raiva.

— Então se você é tão fraco e medroso, por que está gritando comigo!?

Ao ouvir isso, a postura de Chris abrandou-se um pouco.

— Você não está com medo agora? – Leon avançou mais um passo. - Eu sou muito maior do que aquele pivete.

— ...Não.

— Por que não?!

— Porque você não vai me bater. – Disse Chris, ainda sem desviar o olhar.

Se aquilo fosse um desafio, pensou Abby, era um desafio muito burro. Ela olhava assustada para a cena, esperando que Leon avançasse nele.

Mas, para sua surpresa, o plebeu cruzou os braços.

— Não vou. Então cale a boca e pare de chorar. – E então, em um gesto um pouco desajeitado, mas afável, colocou uma mão sobre o cabelo do menino. – Eu vou te ensinar a lutar com sua cabeça.

As sobrancelhas de Chris se suavizaram, enquanto sua frustração era subitamente substituída por curiosidade. De algum modo, a tensão da cena havia simplesmente desaparecido com aquela última frase.

— Há! – Abigail deixou escapar uma risada. - Falou o Vigoroth imbecil. Inacreditável.

— Não enche. – Leon fez um gesto obsceno para a menina, tirando sua mão de cima da cabeça de Chris. – Eu não nasci forte. Mas se você não se tornar forte, o mundo vai te espancar, essa é a verdade. Ou você desiste, ou aprende a lutar com o que você tem. – E, voltando-se muito sério para Chris. – Você não está tentando.

Chris franziu a sobrancelha, mas as lágrimas haviam parado de escorrer em seu rosto, e, ao invés de irritado, ele parecia curioso com o que Leon dizia.

— O que você tem em mente?

— É obvio que você vai perder se tentar bater em alguém. Mas você tem eles — Disse Leon, apontando para Arken e Melissa. – Eles não são animais selvagens, são de criações, certo?

— Sim.

— Criações para nobres. Significa que eles são mais fortes que animais normais. Eu vou te ensinar a lutar, e você vai usá-los para que ninguém consiga chegar perto de você.

— ...Eu não quero machucar meus companheiros.

— Idiota. – Disse Leon, dando um peteleco na testa de Chris. O menino levou as duas mãos ao ponto onde Leon havia o acertado.

— Se você sabe lutar, eles não vão se machucar. Quanto melhor você for, mais rápido vai terminar uma batalha, sem ferir seus companheiros. Eu vou te fazer um lutador tão foda que ninguém vai te intimidar de novo.

— E eu posso saber como você vai fazer isso? – Abby não conseguia conter sua irritação. – O que você pode ensinar que os melhores treinadores do reino não conseguiram?

— Eu acredito nele. Eles não.

— Ok, chega. – Disse a menina, virando as costas para ele. – Chris, vamos embora, se não voltarmos logo alguém vai perceber que nós saímos. Não duvido que Morgan nos entregue também.

Mas Chris não se moveu. Uma luz peculiar havia passado pelos olhos azuis do pequeno menino, ao ouvir as últimas palavras de Leon. Ele sentia algo estranho se debatendo dentro de si mesmo.

— Chris! – Insistiu Abby

— E então? – Perguntou Leon, cruzando os braços com um sorriso.

— ...Eu aceito.

 Uma onda de satisfação percorreu o rosto de Leon. Em um gesto de derrota, Abigail deu um leve tapa em sua própria testa.

Por que meninos são tão estúpidos?”, perguntou Abby para Charles.

Você também indaga por que os peixes nadam? Ou por que os pássaros voam? Ou por que o ser é?


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Notas finais do capítulo

Plot twist: Leon vai ensinar Chris a usar Headbutt

Obrigada por me acompanharem até aqui! No próximo capítulo haverá outra batalha. Espero que estejam gostando.

Aqui vai mais uma curiosidade: A história se passa em um cenário que não é baseado nas regiões do jogo, mas sim em um mapa parecido com o da Europa medieval. Por isso, eu me dou certas liberdades criativas para decidir quais Pokemon existem em cada região.

Dex entry do Rockruff: (ultra moon) Quando ele esfrega as pedras de seu pescoço em você, é uma prova de que ele te ama. Entretanto, as pedras são afiadas, então o gesto pode ser bastante doloroso!



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