Fiat Ignis escrita por SophieRyder


Capítulo 11
Capítulo 10 ou "Lepidus spectaculum"


Notas iniciais do capítulo

Nota: nesse capítulo, há uma frase em que Charles cita duas passagens em latim. A tradução se encontra nas notas finais.



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Abigail caminhava bufando. Quando ela finalmente chegou no arco que dava acesso ao jardim, o Pidgey sentado em seu ombro alçou voo e desapareceu do outro lado do muro. Ela escutou uma voz vindo daquela direção.

— Você os achou, Tufão?

— Você chamou esse pombo gordo de Tufão?

A cara suja e agressiva de Leon apareceu no portão.

— Não poderia pensar em um nome mais patético para combinar com ele?

— Não enche, um dia ele vai ser um Pidgeot incrível. E eu não vim aqui ver você.

— Claro que não, veio me irritar.

Ignorando-a, Leon passou pelo portão a bolsa de couro que ele havia pegado emprestado no dia anterior.

— Cadê o outro garoto?

— Chris está na cama, com febre, e você não vai vê-lo.

Leon congelou por um instante, olhando-a incrédulo.

— Febre?

— Você por acaso não sabe francês? Talvez sua língua nativa seja idiotês.

O plebeu segurou as grades do portão, em um gesto claro de raiva, enquanto Abigail se aproximava para conversar com ele cara a cara.

— É por isso que eu odeio nobres.

Abby franziu ainda mais suas sobrancelhas, e cruzou os braços, parando diante dele.

— Sinto muito decepcioná-lo, mas eu não sou um nobre. Minha família é de camponeses. Chris é o único de sangue azul por aqui.

— E o que você está fazendo dentro do castelo então? – Falou Leon agressivamente, parecendo ainda mais irritado.

— Meu pai é um professor de Paris e veio fazer uma pesquisa.

Leon fez cara de que não entendeu. Ou de que não se importava. Ou os dois. Balançou a cabeça de um lado para o outro, e decidiu mudar de assunto.

— Ele está mesmo com febre? – Leon não parecia convencido.

— Sim, e não pode sair do quarto por alguns dias. Suponho que você tenha seu mérito por ter resgatado ele, mas eu não posso simplesmente te ajudar a entrar no castelo de novo, eu já tive minha cota de problemas por hoje. E afinal, o que você veio fazer aqui?

— Eu... Vim agradecer por ontem... – Por um instante, ele pareceu constrangido. – ...pela comida. Ele vai ficar bem?

Abby deixou escapar um suspiro.

— Eu não sei. Acho que sim. Um médico está cuidando dele. – Ela parou para observar o garoto do outro lado do portão, que aparentava estar verdadeiramente preocupado. Com todas as suas emoções intensas transbordando, Leon era como um livro aberto com letras capitais. Se bem que Abby considerava muito deselegante compará-lo com um livro. – De qualquer jeito, você não pode entrar. Eu não vou te deixar entrar. Nem pense em continuar insistindo.

Leon se moveu de forma agressiva, o rosto tomado novamente de raiva, e por um instante Abigail achou que ele iria gritar a plenos pulmões para ela abrir o maldito portão naquele exato momento. Mas, após alguns segundos, para a surpresa da menina, sua expressão se abrandou.

— ...Ok. Eu volto amanhã.

Abigail deixou escapar um resmungo irritado enquanto via o menino se afastando do portão, junto de seu Pidgey e seu Rockruff. Ela virou-se, e sem olhar para trás, adentrou novamente no castelo. Charles seguiu-a com sua habitual expressão indecifrável.

Não sabia que você era tão insensível.”, disse o Meowstic.

Do que você está falando?

Não finja que você não viu as marcas. Elas não estavam lá ontem.

Charles se referia às marcas roxas nos braços e no rosto de Leon, que Abigail certamente havia percebido, mas preferira ignorar.

“Suspeito que tenha sido por causa de vocês, que o prenderam aqui o dia todo.

Não tenho nada a ver com isso.

Muito fria. Quanta crueldade.

Charles, quieto.

Criança apática, desalmada.

Charles!

— Abigail. 

Abby congelou. A voz de seu pai chamando-a pelas costas por seu nome verdadeiro interrompeu seu diálogo mental com Charles. Raras eram as ocasiões em que ele fazia uso desse tratamento. 

Ah, droga.”, pensou a menina. 

— Abigail. – Seu pai chamou-a novamente. 

Ela virou-se constrangida, olhando ansiosa para o outro lado do corredor para checar se não havia ninguém além deles ali. 

— Nós estamos sozinhos, não se preocupe. – Ela assentiu, amuada. – Eu acabei de encontrar uma criada, e ela me disse que você causou problemas para o jovem Christophe. 

A voz de Charles ecoou nos pensamentos de Abby: “Nunca subestime a capacidade dos criados de espalhar boatos.” 

— Abby, eu tenho certeza que você jamais provocaria um Growlithe a ponto dele te atacar. O que foi que realmente aconteceu? 

— Foi exatamente isso. Eu não preciso acrescentar nada. – Disse ela, fechando o rosto e cruzando os braços em um claro gesto defensivo. 

— Eu sei que isso é uma mentira. 

— Não, não é. Você sabe que eu não levo jeito com eles. Olhe o Archimedes, ainda não consegui ensinar nada a ele. 

Norbert balançou a cabeça e passou uma de suas mãos em seu cabelo, tentando pensar em como lidar com a teimosia da filha. 

— São coisas diferentes. 

— Não.

— Abby...

— Se você não for me passar um sermão, eu vou para o quarto ler.

Norbert suspirou, sentindo-se derrotado, e gesticulou para a menina ir. Ele não estava habituado a repreender sua filha, principalmente porque ela não costumava causar problemas. Charles, ao invés de segui-la, permaneceu ao lado de seu mestre.

— Eu nunca a vi mentindo. – Disse Norbert para seu velho companheiro.

Bem, até agora ela nunca teve motivos lógicos para fazer isso, nem nenhum ganho pessoal.

— O que você quer dizer com isso?

Sua filha é uma criatura da escuridão, como eu. Ela não toma atitudes desnecessárias ou ilógicas, e não se aproxima de ninguém

— Quando você fala desse jeito, eu fico preocupado.

Mas ela encontrou seu nêmesis. Um verdadeiro raio de sol que, infelizmente, possui todas as características que ela valoriza. Inteligência, criatividade, capacidade de observação. E para o azar dela, carisma. Rapidamente ela foi ofuscada.”

— Por que você diz tudo isso como se fossem coisas horríveis?

Porque são. Pelo menos para ela. Essa é a primeira vez que ela se sente atraída por algum humano fora de sua família, mas quanto mais ela se aproxima do sol, mais irá se queimar.

— Charles, você faz tudo parecer uma tragédia grega. Presumo ser minha culpa. Aquela viagem que fizemos junto de uma companhia de teatro deve ter te influenciado quando você ainda era um Espurr.

Ó spectaculum miserum atque acerbum!”, ironizou Charles. “Ou deveria dizer ‘lepidus spectaculum’? Depende do ponto de vista.”

— Muito engraçado.

“É sua culpa, mas por criar uma criança no meio daqueles acadêmicos socialmente inaptos. Ela não faz a menor ideia de como fazer amigos.

— E você também não faz a menor questão de ajudar.

Bem, eu sou só um gato.

Norbert suspira.

 – Eu fico cada vez mais preocupado. Ela não ri, não chora, não reage a quase nada, e só demonstra interesse por livros novos. Abby tem talento, Charles, mais do que eu. Ela pode ser uma grande pesquisadora, mas eu preferiria, antes, que ela conseguisse ser uma pessoa feliz.

Você valoriza demais a felicidade. Se perguntar para ela, aposto que ela prefere ser uma professora famosa.”

— Aí que está o problema.

Talvez, mas como eu disse, a culpa é sua. Mas não se preocupe, meu nobre mestre, eu serei um formidável guardião e irei guiá-la durante esse processo de descoberta de interesse por outro bípede racional da espécie humana.”

— Você acabou de me deixar ainda mais nervoso.

Veja eu me importar.

— Já que você está aqui e de ótimo humor, por que não me ajuda a preparar minha viagem? – Norbert começou a caminhar em direção a seu quarto. Charles não se deu ao trabalho de assentir, mas seguiu-o. - Preciso de sugestões.

 “O que você quer?

— Se você fosse uma mamãe dragão colérica, furiosa por alguém tentar roubar seus ovos, o que te irritaria mais: chuva ou tempestade de areia?

Você supõe que eu consiga pensar como uma mãe dragão enraivecida?

— Vamos, use sua criatividade, entre no papel!

Duas criadas passaram no corredor murmurando comentários e lançando olhares desconfiados ao homem que aparentava conversar com seu Meowstic como se ele fosse um humano.

Suponho que chuva? Porque isso enfraqueceria os golpes de fogo.

— É verdade, mas como minha principal preocupação não é derrotá-la, e sim irritá-la e distraí-la para eu roubar os ovos, talvez uma tempestade de areia seja mais efetiva, por bloquear parcialmente a visão.

Você realmente acha uma boa ideia irritar um monstro que pode te carbonizar com facilidade?

— Bem, eu creio que você sabe melhor do que ninguém quais são as minhas competências. Espero estar à altura do desafio.

Insano, suicida. Não vá me deixar sozinho com sua filha.

— Haha, bem-humorado como sempre, meu caro Charles. – Os dois adentraram no escritório de Norbert - Agora, vamos aos negócios. Eu tenho três semanas para planejar essa viagem para pilhar ovos.

 

—---

Charlotte bufava aborrecida ao lado de Elise. Finalmente havia terminado de acobertar o acidente de Christophe, o que lhe havia custado, além de seu tempo e criatividade para inventar uma mentira, um suborno ao médico e a duas criadas para manter a extensão dos ferimentos em segredo. Ela contava para amiga, com irritação na voz, o que as duas crianças haviam feito e as consequências disso. As duas estavam sentadas em um banco de pedra em um dos pátios do castelo, lado a lado, e enquanto Charlotte vestia seu habitual culote e roupas masculinas de montaria, Elise trajava um vestido azul claro longo e leve, que caía muito bem com seus olhos verdes e seu cabelo loiro ondulado.

Elise parecia estar se divertindo um pouco com o relato enfurecido de Charlotte.

— Bem, não fique tão brava, o médico disse que ele ficará bem, não é? – Disse Elise, com sua voz melodiosa.

— Sim. Mas ainda não consigo acreditar. – Charlotte gesticulava com exagero enquanto falava – Aquele filho do professor Norbert parecia um garoto quieto, não esperava que ele fosse causar esse tipo de problema.

— Lotte, eles são crianças. – Elise colocou delicadamente uma de suas mãos sobre o ombro de Charlotte. – E eu sei bem que você está orgulha por Chris ter se arriscado para ajudar o garoto.

— Eu... Isso não muda o fato de que eles foram irresponsáveis!

Elise riu.

— Claro, claro.

Do outro lado do pátio, Frederick passou caminhando junto de um garoto alto, de rosto bonito e ombros largos. Sua postura altiva e vestimentas mostravam que ele também pertencia à nobreza. Tratava-se de Vincent, o filho mais velho de Aldric, que acabara de completar seus dezoito anos. Elise e Charlotte acompanharam com os olhos o movimento dos dois garotos, que conversavam concentrados.

— Ele passou dois anos sem pôr os pés no castelo, e agora vem com intervalos cada vez menores. Há algo sendo articulado. – Comentou Elise.

— Eu senti falta do Vince. Mas desde que o irmão mais velho dele morreu e ele se tornou o primeiro herdeiro, Tio Aldric empurrou um Aggron inteiro de responsabilidades para cima dele... Eu gostava muito de quando nós quatro brincávamos enquanto crianças.

— Fale por você, eu era uma pobre cativa que brincava com vocês por medo da minha família virar carvão nas mãos do marquês. – Elise respondeu, cobrindo seu rosto com uma expressão muito séria.

As duas permaneceram por um instante se encarando em silêncio, e depois gargalharam juntas.

— Ai, Lis... Você era uma criança muito fechada. Fico feliz em ver que seu senso de humor progrediu desde aquela época.

— Eram outros tempos. Eu tinha medo até de uma Flabebé. E você ainda não sabia montar nem uma Ponyta.

— Meu irmão ainda não se achava um jovem marquês. Ele era mais divertido.

— Mas duas coisas não mudaram: a torta de maçã da Adeline continua deliciosa e as criadas fofocando que você e Vince são um casal.

— Urgh. Eu já me cansei disso quando nós éramos crianças. Tinha esperança que esses rumores não perdurariam até agora, depois dele passar tanto tempo longe do castelo. Para mim é impossível ver nele qualquer outra coisa a não ser um irmão com quem eu cresci junta. Igual a você, minha irmãzinha cativa.

Elise riu novamente, mas uma leve expressão de desconforto passou por seu rosto, pequena demais para Charlotte perceber.

— Mas você não acha que o barão e o marquês podem estar planejando um casamento?

— É claro que não, você sabe que isso vai contra o acordo de meu pai e minha mãe. Como eu já te disse, papai ficou responsável por minha educação, e em troca eu tenho liberdade de escolher quando e com quem eu vou me casar. Ele não ousaria desobedecer ao acordo, mamãe irá garantir isso.

— Nem todas nós temos a liberdade de escolher com quem podemos nos casar. – Elise respondeu, em um tom de quem brinca com questões sérias.

— Você tem sorte de ser noiva de meu irmão. Ele certamente é o melhor homem disponível em todo o reino.

— Eu preferiria me casar com você.

Charlotte riu, abrindo um largo sorriso em seu rosto.

— Mas aí eu teria que ser um homem e nós não seríamos tão amigas!

Elise ficou quieta por um instante, refletindo sobre a resposta da amiga com um sabor levemente amargo na boca. Mas ao perceber que Charlotte olhava para ela com curiosidade, conseguiu retornar com leveza de seus pensamentos e retomar a conversa:

— É verdade. Mas ainda não nasceu um homem neste reino digno de ser seu esposo!

As duas riram mais um pouco, concordando que aquilo era verdadeiro.

Nesse momento, Frederick chamou por Charlotte do outro lado do pátio. A menina levantou-se rapidamente, e correu até o irmão. Ele mostrou a ela o pergaminho que carregava em suas mãos, e comentou algo. Enquanto Charlotte o respondia, Vincent se aproximou de Elise.

— Olá Lis, bela como sempre.

— Olá Vincent, astuto como sempre. Cada dia se parece mais com seu pai.

— Haha, não posso discordar.

Elise suspirou.

— Qual o problema? Você não é dada a suspiros.

A menina lançou um olhar melancólico para Charlotte.

— Ela não entende, não importa quantas insinuações eu faça.

— Eu me compadeço de sua miséria. – Ironizou o garoto.

— Muito engraçado. Você sabe que vão tentar fazer vocês dois se casarem, ne?

— Eu sei, é deprimente. Meu pai está articulando boatos ridículos, como sempre.

— Queria eu poder trocar de lugar com você.

— Mas para isso você precisaria nascer com um pê...

A frase de Vincent foi interrompida por beliscão em sua bochecha.

— Hahaha. Ok, ok. Eu mereci. Não posso dizer que não te entendo. – Respondeu ele rindo e lançando um olhar para Frederick.


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Notas finais do capítulo

Capítulo de hoje foi patrocinado por Tomoyo Daidouji feelings.

Tradução:
(1) Ó spectaculum miserum atque acerbum! (Cícero, in Verrem) - Ó espetáculo miserável e amargo!
(2) Lepidus Spectaculum - Espetáculo agradável

Espero que tenham gostado! A boa notícia é que o próximo capítulo está quase pronto e devo postá-lo ainda essa semana

Como prometido:
Curiosidade 2: os três protagonistas (Chris, Abby e Leon) foram escritos a partir de três características pessoais minhas, que eu isolei e exagerei, levando às últimas consequências. Por conta disso, os três se parecem um pouco comigo, mas ao mesmo tempo não se parecem, já que essas características foram isoladas. É uma atividade interessante construir um personagem a partir de uma única característica central, e aos poucos acrescentando detalhes.
Curiosidade 3: eu estudo latim, e pretendo introduzir outras expressões dessa língua ao longo da fic. Inclusive, o título é uma paródia da passagem bíblica "fiat lux" (faça-se a luz), e eventualmente ele será explicado.



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