Um minuto para o fim do mundo escrita por Mary


Capítulo 9
9 - 17 de Novembro de 2010


Notas iniciais do capítulo

Pode colocar Forever do Kiss para tocar.



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Amílcar e Sueli acabaram por se acostumar com a ideia de que eu não gostava de rapazes e os parentes que se danassem porque depois que eu saí do armário, muita gente aderiu à tendência, choque total para os moralistas que descobriram que as NAMORADAS dos filhos eram na realidade NAMORADOS. Dizer que tudo transcorreu sem dores é uma inverdade. Mamãe passou algum tempo sem saber como se dirigir a mim, mas me comoveu muito saber que ela estava procurando fóruns de ajuda na internet e não para uma cura gay.

Ela queria me entender porque mesmo quando gritava comigo e demonstrava certo desgosto, me amava, me amava demais para desistir de mim. No principal fórum que frequentava, contou o papai (porque Sueli era orgulhosa demais para tanto) que a experiência foi tão positiva que minha progenitora tinha feito novas amizades e começava a se sentir incomodada com qualquer atitude homofóbica, revirando os olhos quando ouvia alguma piada maldosa por parte de amigos, conhecidos, parentes e até mesmo pela televisão.

Amílcar Freitas não exagerava ao alegar que eu herdei a teimosia de mamãe, todavia bem ele sabia que Sueli tinha seu próprio tempo para digerir as coisas e que não deixaria de me amar só porque eu era lésbica, apenas precisava ser respeitada ao se recolher. Quando meu irmão Júnior anunciou que trancou a matrícula no curso de Direito no quarto ano, a pobre coitada quase morreu de tristeza, chegando a não falar com ele por vários dias, algo que afetava a família inteira. Depois de ver o primogênito muito mais à vontade na Ciência da Computação, nunca mais mencionou o assunto.

Fosse Patrícia a pessoa com quem eu passaria o resto da vida ou ao menos um tempo considerável ou não, era certo que um grande e significativo passo havia sido dado em direção à saída do casulo.

E não havia meio de recuar.

Eu era a ovelha colorida da família, iniciei o curso de Administração e desisti antes das primeiras provas porque não suportei a ideia de passar mais quatro anos estudando disciplinas de uma área com a qual não me identificava.

Comecei a faculdade de Direito e não suportei um mês de aulas, doei todas as fotocópias que tirei dos livros exigidos para certas disciplinas às colegas com quem andava, embora também me sentisse avulsa e não me identificasse com o mercado de atuação de um recém-formado nem com os papos delas.

Eu tinha vinte anos e as garotas com dezenove me tratavam como se eu fosse indigna de respirar, reparavam nas roupas das pessoas, caçoando de quem aparecia em classe com o mesmo casaco por dois dias seguidos e idolatravam as meninas abastadas que desfilavam pelos corredores com bolsas avaliadas em dez mil reais. Reprovei no vestibular para Psicologia e mesmo sendo um curso interessante, ainda assim o escolhi de última hora.

Algo que despertava meu interesse era estudar inglês, todavia as mensalidades dos cursos tradicionais de idiomas estavam fora de alcance e meus progenitores pensavam que era "fogo de palha", ainda sonhavam que eu reconsiderasse meu parecer sobre o curso de Direito porque no futuro, mesmo que não tivesse um escritório próprio para atuar, poderia passar a vida inteira tentando concurso público. Quando você sonha com isso, todo o sacrifício para alcançar é válido e inspirador, entretanto não somos todos robôs programados para viver um ideal preestabelecido, cada um compreende o seu de acordo com o que é.

No meu primeiro vestibular cheguei a me inscrever para Artes Cênicas na antiga Escola Técnica da Federal, todavia meus pais se recusaram a pagar a inscrição:

— Artes cênicas? — debochou mamãe.

— Eu quero ser atriz. Qual é o problema?

— Atriz, Lorena? Atriz?

— Qual é o problema em ser atriz? — retruquei meus pais, sentados no sofá da sala, com aqueles olhares acusatórios, revoltados com minha "imaturidade". — É uma profissão digna como qualquer outra.

— Atriz é que nem modelo. É uma ou outra que consegue se projetar e ficar rica, a maioria morre de fome.

— O mundo não gira só em torno do dinheiro. Ser feliz também importa muito.

— Pois é, Lorena, mas como você pensa que vai se sustentar depois que seu pai e eu morrermos? O que você vai fazer com um diploma de artes cênicas? — bradou Sueli.

— O que é que vocês pensam? Que é melhor cursar algo que não tem nada a ver com você só porque dá dinheiro e ser infeliz? Muita gente pode até ter dinheiro, mas será que se perguntar: elas são felizes de verdade?

— Não me diga que você acha que tem chance de trabalhar na televisão? Porque se tiver, esqueça. Televisão é uma máfia fechada, só entra quem tem costa quente.

— Minha filha, você tem que pensar num curso que te dê dinheiro no futuro — aconselhou Amílcar, na defensiva. — Nós não somos eternos.

Certa estava Patrícia que se assumindo indecisa com relação ao vestibular, optou por não efetuar a inscrição, sem um pingo de remorso.

— Tudo bem que o dinheiro é necessário para satisfazer a quase todas as nossas necessidades, mas eu não acho que deva ser ele o principal motivo de escolher o curso A ou o curso B — argumentou Patrícia que depois de sair da escola fez vários cursos livres. Aprendeu o ofício de manicure, cabeleireira, corte e costura, o básico do básico do inglês, até a cozinhar pizzas. Como nós nos divertíamos na cozinha da quitinete em que ela dividia com a mãe. Como eu adorava quando a D. Márcia colocava dois colchões na sala e nos deixava passar a noite na sala comendo porcarias, ouvindo música, vendo televisão e nos divertindo muito no Orkut, conhecendo gente de tudo quanto é canto do país, acompanhando blogs e até brincando naqueles oráculos virtuais.

Naquela época um liceu muito famoso gerido pela prefeitura ofertava cursos profissionalizantes gratuitamente e tendo minha amiga designado o ordenado que ganhava como balconista de uma loja para custear todas as despesas do sonhado intercâmbio, não se importava se fulana aos vinte e um já era fluente em dez idiomas, campeã de xadrez e colecionava troféus em prateleiras empoeiradas, buscava conhecimento de todas as formas, sem refutar as lições ministradas pela escola da vida.

Patrícia estava em busca de si mesma e não vivia em par de competições com ninguém e se orgulharia em saber que sair do armário no meu caso não dizia respeito apenas a assumir minha orientação sexual, como finalmente fazer a inscrição para o curso de Artes Cênicas.

✉✉✉

No ano de 2009, boa parte das pessoas com quem estudei e mantinha um contato regular por causa do Orkut estava namorando sério — tudo bem que muita gente já namorava desde o ensino médio —, alguns já exibiam o álbum com a inscrição FORMATURA e eu era a única nem-nem, aquela que nunca tinha novidades senão esperar as atualizações dos blogs que eu lia, destacando o Pandinha Stardust, um blog muito fofo administrado por um casal de namoradas. Stardust era assumida, Pandinha não. Não para os parentes, pelo menos.

Elas eram adolescentes que viviam uma realidade muito oposta à minha, então eu gostava de acompanhar a vida daquelas garotas e mesmo admirando pacas os altos textos reflexivos sobre atualidades e sentimentos, até então nunca havia me manifestado com um simples comentário que fosse porque às vezes aquela menina que atendia por Pandinha parecia ler a minha alma, me fazia chorar com aquelas palavras que se conectavam tão bem com tudo o que se passava dentro de mim.

Eu me sentia mais à vontade seguindo a vida daquelas pessoas que nem sabiam da minha existência do que acompanhando as novidades do povo com quem estudei. Eu me irritava com aqueles subnicks de MSN ou títulos de álbuns do Orkut do tipo "dia perfeito" porque parecia que TODOS eram muito felizes, estavam realizados profissionalmente, haviam tirado a sorte grande, encontrado o verdadeiro amor e eu continuava estagnada, levando uma rotina sem grandes novidades, plateia no grande palco onde tudo acontecia para quem estava sob os holofotes.

Aquilo era tóxico.

Em 2010 os namoros viraram noivados e algumas das meninas já eram mães. Eu era a nem-nem que me confortava lendo blogs como o da Pandinha, onde gente como eu se sentia bem-vinda porque mesmo ela não sendo assumida e vivendo uma realidade diferente da minha, também não se encaixava a nada e carregava no coração o peso da indecisão, das cobranças que todos insistem em depositar em nossas costas, tampouco a Stardust que sofria na pele o preconceito de ser uma lésbica assumida logo nos tempos de escola, quando as pessoas sentem prazer em serem cruéis.

Em julho de 2010, Pandinha e Stardust viajaram rumo a Bariloche. Depois do evento, nenhuma postagem. O blog não era atualizado e eu relia os posts antigos para matar a saudade. Enfim, assumida, eu me via um pouco na pele da Stardust, só que com uma diferença: eu não era uma alma masculina num corpo feminino, sempre aceitei plenamente meu sexo biológico e as designações de gênero, todavia me atraía física, emocional e romanticamente por indivíduos do sexo feminino.

Como toda boa lésbica iniciante que se preze, tive diversos amores platônicos inatingíveis, como professoras (não pela beleza exterior, mas pelo "algo mais" que nunca soube explicar), apresentadoras de televisão, atrizes, cantoras e até mesmo os famosos crushes de um percurso de ônibus. Aquela menina bonita sentada ao meu lado ou segurando nos tubos, olhando ora para a janela e ora para mim. Para fechar este parágrafo o suprassumo do clichê: sentir que o afeto pela minha melhor amiga era forte demais e fugia de qualquer explicação. A fim de evitar quaisquer desavenças e afastar minha amada para sempre, engolia meu bem querer e o maior dos segredos que escondia dela.

O de que a amava mais do que qualquer homem jamais a amaria.

— Puxa vida! Balançar assim não tem a menor graça! — Aquela voz que me despertou do transe era tão conhecida que meu coração disparou de súbito, porém na última carta que Patrícia trocou comigo não me disse quando (e se) voltaria, se despediu com aquele bendito "até mais".

No balanço ao lado estava Patrícia, esperando que eu a notasse.

— Pa... Paty?

— Oi, Lola! — acenou ela, sorridente.

— Você voltou! — exclamei, rindo e ao mesmo tempo com vontade de chorar, de alegria também. O contentamento, no entanto, dava àquelas lágrimas uma conotação muito especial, tanto quanto nossa amizade, quanto àquela surpresa maravilhosa que transformou um dia comum de primavera naqueles em que vinte anos depois eu me lembraria de tudo com a mesma nitidez que me impulsionou a escrever a nossa história.

— Sua mãe me disse que você estaria aqui!

— Por que não me disse que voltaria hoje? Eu iria te buscar no aeroporto!

— Eu voltei anteontem, Lola, mas estava tão cansada que só queria saber da minha linda caminha, afinal, de ferro é que eu não sou, e hoje eu vim matar as saudades da minha baixinha predileta. Ou pensa que foi fácil passar quase seis meses longe daqui? Temos muita conversa pra colocar em dia, mas antes eu quero um abraço seu.

Patrícia abriu os braços para mim e quando eu fui cumprimenta-la com o tradicional beijinho no rosto, ela virou o rosto depressa e nossos lábios se tocaram. Meu corpo todo estremeceu. Nem nos meus sonhos mais loucos eu redesenhava nosso reencontro terminando daquela forma. Eu me imaginava tentando explicar que depois de um tempão escondendo meu verdadeiro eu e ouvir um "eu sempre desconfiei de você" ou algo genérico.

Eu estava super triste por saber que Stardust e Pandinha terminaram o namoro após a viagem para Bariloche. Mesmo sem tê-las visto pessoalmente, elas eram meu OTP, como muitos personagens de livros também eram. Pandinha estava namorando um garoto a quem chamava de Furão — pelo fato de o rapaz ter uma vida social nula, parecida com a minha de certa forma — e por algum motivo que não consigo ilustrar com as palavras mais adequadas ao ensejo, não acreditava que tivesse deixado de amar a Stardust. Torcia por elas em segredo.

Após aquele selinho "acidental" que era também o meu primeiro, Patrícia abaixou a cabeça e deu uma risadinha como se nós duas fôssemos duas garotinhas que trocavam bitoquinhas sem afetação. Meu instinto foi crer que ela pediria desculpas pelo que houve e diria alguma frase homofóbica que ceifaria de vez toda e qualquer esperança que eu nutria, mas no lugar disso a reação foi à oposta.

Ela me deu outro selinho, abaixou a cabeça e riu.

Quando ela voltou os olhos castanho-esverdeados para mim, eu sorri, tocando meus lábios com as pontas dos dedos e mesmo sem ter um espelho a tiracolo, sabia que meus olhos sorriam tanto quanto os dela que acariciou meu rosto da mesma forma que fez quando nos despedimos no aeroporto, seis meses antes, só que daquela vez éramos apenas nós duas sentadas no balanço da área recreativa do prédio onde eu morava com meus pais. Daí a liberdade para que nosso primeiro beijo acontecesse sem grandes cerimônias.

Agradeci mentalmente àquela garotinha de doze anos que costumava passar horas treinando beijos no espelho, na metade da laranja e com cubos de gelo, sempre às escondidas, esperando que um dia lábios de verdade tocassem os meus. Patrícia segurava minha nuca e eu abracei a cintura dela. Os lábios encontraram um ritmo maravilhoso e se nossa história de amor fosse o enredo central de uma telenovela, só faltaria nosso tema romântico tocar ao fundo.

Caímos sentadas na areia e caímos na risada, sedentas uma da outra.

— Então, é isso? — eu quis saber, ainda sem acreditar que no mesmo dia em que havia discutido com mamãe por algo tão banal, aquele primeiro beijo sublimaria até o sentimento de chateação que apertava meu peito.

— Lola... — murmurou Patrícia que antecipou minha reação e desatou em lágrimas. Eu a abracei e a trouxe para junto do meu peito. Nossos corações disparavam e inúmeras foram as chances que tivemos para nos beijarmos, oportunidades que deixamos passar por não estarmos prontas ou seguras de que queríamos aquilo. — Você deixaria de ser minha amiga se eu dissesse que tenho um grande segredo para te contar?

— Claro que não!

— Sabe quando você passa a vida a procurar pela pessoa "certa", quebra um monte a cara e descobre que a pessoa que você sempre esperou nunca saiu do seu lado?

Olhei para ela ainda sem entender.

— Eu tive o coração partido muitas vezes, mas nunca deixei de acreditar que o amor valia a pena e por isso nunca desisti de encontrar uma pessoa com quem pudesse dividir tudo, meus dias bons e ruins, minhas vitórias e derrotas, não ter assuntos proibidos. Você é aquela que sempre permitiu que eu fosse eu mesma como jamais fui com qualquer outra pessoa, que antes de julgar a minha aparência ou meu jeito de ser, quis me conhecer, me acolheu, segurou na minha mão, torceu por mim, chorou por mim, porque antes de tudo isso eu nunca desisti de te ver voar, Lola. Eu nunca desisti de fazer você enxergar quão linda é porque se eu pudesse te descrever nesse instante você se surpreenderia com a sua própria beleza. — declarou-se ela.

Obstinada a desafogar o que a sufocava (e nunca me ocorreu), ela abriu o coração sem um pingo de resistência, preferindo um “não” ao tortuoso e corrosivo “e se”.

— Você é a pessoa que eu sempre estive em busca desde que eu entendi que nossa vida vale por esses momentos em que nenhuma palavra precisaria ser dita e todo amor do mundo estaria expresso numa troca de olhares, num beijo, num simples toque de mãos, porque antes de ser esse amor, nossa sintonia nos uniu. Talvez você fizesse o que as outras fizeram, me ignorar, mas por algum motivo você tinha que me cumprimentar e nós tínhamos que passar por aquele semestre terrível juntas, porque enquanto você sonhava em ter uma melhor amiga eu sonhava em um dia me sentir inteira de novo. E eu nunca saberia que a mesma vida que fecha portas também abre grandes janelas para que vejamos o sol brilhar se não fosse por aquela proposta de emprego que a minha mãe recebeu, que me tirou de Abatiá e me fez sonhar grande. Penei até descobrir que não precisaria correr meio mundo para encontrar tudo que eu queria. Sempre esteve bem ao meu lado. E era você. Talvez sempre tenha sido. Sabe, no começo eu senti muito medo de estar confundindo nossa amizade, que fosse cilada da carência, mas conforme fui percebendo que os obstáculos a que me impus eram frutos do medo que eu tinha de te amar.

Passamos tanto tempo encarando as mulheres ao nosso redor como grandes inimigas que quando nos descobrimos amando uma, nos apavoramos.

— Eu pretendia te dizer tudo isso antes da viagem, Lola, mas acabei pensando que não era o melhor momento para colocar tudo em pratos limpos, não queria viajar magoada com você acaso sua reação fosse negativa porque perder sua amizade me deixaria completamente devastada. Viajei, também, para tentar te tirar do meu coração, mas você pensa que consegui?

Ela me deu um beijo nos lábios.

— Você tem algo a me dizer?


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