Um minuto para o fim do mundo escrita por Mary


Capítulo 10
10 - 29 de maio de 2018


Notas iniciais do capítulo

Um final feliz não mata ninguém, né?



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Guilherme Freitas Medeiros de Lima é o primeiro neto de Amílcar e Sueli. Eles estão mais afobados que eu, a mamãe de primeira viagem, a caminho da maternidade nessa madrugada gelada em Curitiba.

Tudo o que eu precisava dizer para Patrícia sete anos e meio antes sempre coube no silêncio de um olhar. Não à toa quando ela subiu para tomar café comigo, apresentei-a para mamãe como minha namorada.

Sueli apenas nos serviu o café e sabatinou Patrícia a respeito da viagem, ostentando com animação o presente que ganhou da nora. Minha amiga já havia se assumido para D. Márcia e o Sr. Higino ANTES da viagem e temia, entretanto, que EU a rejeitasse. Diz ela que gostou de todas as pessoas com quem se envolveu ao longo da vida e se entregou de corpo e alma em todas as relações, só que a sintonia que tinha comigo era inexplicável.

Três dias antes do meu primeiro beijo com Patrícia, encarei o vestibular para Artes Cênicas e não só fui aprovada como me identifiquei com o curso e me formei muito feliz aos vinte e cinco porque tomei as rédeas da minha vida, fui atrás do meu curso de inglês e se não era possível pagar aquela quantia estratosférica das escolas tradicionais de idiomas, iniciei no liceu ainda nos tempos em que ele ofertava cursos gratuitos e fui me tornando uma autodidata.

Patrícia ingressou na faculdade de Direito no turno da noite numa instituição privada e se formou em 2016 tirando a carteirinha da OAB antes mesmo de se formar enquanto muitas primas minhas que estudaram em colégio com ensino bilíngue até hoje não conseguiram, trabalhando para pagar os estudos e se virando nos trinta para me amar.

Patrícia me pediu em casamento quando eu me formei em Artes Cênicas e nós ficamos noivas, aproveitando para montar o enxoval e decidir como seria nossa cerimônia de casamento. Ao se assumir, ela perdeu alguns amigos, mas assim que eu perdi a timidez e passei a comentar ativamente no blog da Pandinha Estelar, ganhando amigas muito especiais, tanto as comentaristas que interagiam e compartilhavam suas experiências pessoais, como as próprias autoras daquela página da internet onde prevalecia o amor e o respeito.

Em 2013, Pandinha saiu do armário de vez, dentro e fora da internet, ingressou no sonhado curso de Letras na UFPR, enfrentou a autoritária mãe, mexeu no cabelo, assumiu a verdadeira sexualidade para todos e realizou o sonho de publicar seu primeiro livro na Bienal do Livro do ano passado, embora já fosse escritora desde o momento em que permitiu que a inspiração a guiasse pelas mãos. Os números nunca fizeram a menor diferença. Stardust decidiu encarar a transição FTM (female to male) e hoje se chama Bruno, formou-se em Ciências Sociais e começou o mestrado. Helena, a nova amada da Pandinha, foi a fotógrafa do nosso casamento, marcado para ocorrer logo após a formatura da Paty.

Desde os tempos de escola, quando eu nem sequer sonhava que Patrícia seria minha companheira em todos os momentos, se não fosse me casar, um filho eu queria ter. Biológico, adotado, de consideração, não importava. Minha amada não pensava em engravidar, contudo compreendia que eu sonhava em ser mãe e nunca se opôs a nada.

Um grande amigo que conheci durante a graduação e trouxe para a vida conhecia a minha história e se prontificou de nos ajudar. Arthur Lima e eu fazíamos peças de teatro juntos e sempre que pintava testes para algum anúncio publicitário, ele sempre me avisava. Participei de alguns e até arrecadei um cachê considerável, no entanto era do tablado que eu gostava, daquela emoção genuína que todo o elenco de uma peça sentia pouco antes de as cortinas vermelhas de veludo se abrirem para o primeiro ato.

Como Patrícia e eu não dispúnhamos de condições financeiras para arcar com todas as despesas de uma fertilização in vitro, a inseminação decorreu do jeito tradicional. Com consenso e bom senso.

Eu controlava meu ciclo menstrual através de um aplicativo de celular, alguns meses depois da primeira tentativa, lá estava eu me preparando para contar aos meus progenitores que eles seriam avós.

— Se você fosse menino se chamaria Guilherme — contou mamãe.

— E aí, Paty? Quais são suas apostas? — quis saber o meu pai.

— Menina... — confessou Patrícia, esperando que viesse a Fabiana, pois não queríamos colocar os nomes "da moda", tipo Sofia e Alice. Na verdade era para eu me chamar Fabiana, todavia uma amiga da Sueli teve uma filha na mesma época, colocou esse nome e a fim de evitar rixas, papai sugeriu Lorena, mamãe não relutou e hoje sou a famosa Lola Freitas. Tudo bem, famosa é um exagero, entretanto depois deste conto me sinto tão contente por poder dividir com vocês essa história tão inusitada e ao mesmo tempo tão real.

— É sempre bom pensar em nomes de menino e de menina porque você nunca sabe quem estará por vir... — recomendou a D. Márcia. — Se a Patrícia fosse menino se chamaria Fábio.

Patrícia e eu cogitamos tantos nomes até concluirmos que Guilherme era uma boa pedida e destoava do modismo.

Clichê de certa forma. Clichê, sim. O meu clichê às avessas.

Apesar de a greve dos caminhoneiros ter parado o país, tivemos combustível suficiente para cumprir o percurso até a maternidade, onde um novo membro da família está prestes a chegar e um novo ciclo em nossas vidas a se iniciar, dentro de outro ainda maior inserido em outro como aqueles conjuntos matemáticos que fundiam a minha cabeça no primeiro ano do ensino médio. E todos, todos eles são retalhos da colcha colorida que narra a minha história. A nossa história.

Estou a poucos meses de completar trinta primaveras, cortei contato com o pessoal que estudava comigo, virei à página, parei de mendigar a atenção de quem nunca fez questão de mim e que de forma velada me debochavam, que se orgulham de serem homofóbicos e preconceituosos. As beldades já não são mais nem metade do que eram, apesar de abusarem dos procedimentos estéticos. A maioria leva aquela vidinha chata e previsível, compartilha muita merda no facebook e se diz cristã mesmo tendo pensamentos e atitudes que deixariam Jesus Cristo em prantos.

Inferno é a expressão que melhor caracteriza minha vida estudantil. Hoje meus pais e eu somos bons amigos, sair do armário tornou nossa relação mais transparente e eu pude enfim contar a eles TUDO o que passei enquanto o uniforme era obrigatório e as pessoas te rotulavam de modo que a mobilidade social se anulava por decreto. Eles sabem que se tingi o cabelo, usei lentes de contato azuis e cheguei até a passar dias sem me alimentar foi porque ouvia das meninas: "A Lola até que é bonita de rosto, mas seria mais se fechasse a boca", "Fulano até ficaria com a Lola se ela não fosse assim ou assado". As tais beldades andavam comigo como forma de se sentirem mais bonitas, não porque fizessem questão da minha amizade. Antes eu me sentia um verme perto delas, hoje sou muito mais eu. Sou Lola F.C. com direito a beijinho no ombro para o recalque.

A "sem sal" do ensino médio é o raio de sol que aquece muitos corações e quem são os ex-punheteiros na fila do pão? Apenas idiotas orgulhosos de serem misóginos, nada mais. 

Com Patrícia Medeiros eu descobri o que é ter a melhor amiga e o grande amor na mesma pessoa. Ela se assustou quando se deu conta de que, sim, esse alguém pode ser do mesmo sexo que você e está tudo bem porque desde que seja amor, a forma pouco importa e sim o comprometimento. 

Mamãe hoje em dia bloqueia gente homofóbica no facebook e não tem vergonha alguma de dizer aos outros que sou lésbica, continua participando de fóruns para auxiliarem pais desesperados e preocupados porque ao contrário do que pregam os preconceituosos de plantão, o que destrói uma família é a FALTA DE COMPREENSÃO, é o que separa pessoas que se amam, então toda vez que ela consegue fazer com que uma mãe consiga compreender o filho que se assume e impedir que ele se perca por não ter apoio em casa, é uma vitória muito grande. Não é duas senhoras darem um selinho no último capítulo da novela das nove que vai influenciar sua prole. Se fosse por esse lado, então desde nova eu teria sido altamente incentivada a ser 1000% heterossexual. Beijo hétero não me induziu a sê-lo.

Espero que o pequeno Guilherme se sinta tão feliz por fazer parte da nossa família como nós estamos com a chegada dele. Ele terá duas mães, um pai fora de sério que um dia vai sair do armário (os pais são conservadores pacas e cobram que ele se case, tenha filhos e blá-blá-blá), avós maravilhosos que já o amam desde que ele era do tamanho de uma sementinha de maçã.

As contrações estão cada vez mais regulares e fortes, meu menininho está a caminho. Mês a mês eu aprendi a amar Guilherme sem sequer conhecer seu rostinho, imagina só quando vê-lo. Quero deixar para sentir essa emoção na sala de parto, quando ouvir aquele chorinho pela primeira vez e tirar minhas próprias conclusões ou então chorar com ele. 

O mundo ainda está muito longe de ser bonito e justo, Gui, mas se pudermos espalhar amor em vez de ódio, contribuiremos (e muito) para que muitas pessoas não precisem viver um inferno e crescerem sequeladas por não caberem em determinados estereótipos.

Eu não sei o que é ser mãe na prática, você é quem vai me ensinar tudo, tudinho.

Então, venha!

Eu estou te esperando, não para te ostentar nas redes sociais como se você fosse um item decorativo, nem para alfinetar a quem não deseja procriar, mas porque te amo, meu bem, te amo e você chega para somar alegrias à nossa família.

Patrícia segura minha mão, com uma toalha enxuga o suor da minha testa e me tranquiliza. Quando seus lábios se encontram com os meus, por mais forte que seja a dor, sei que posso encarar mais este desafio. E a amo mais neste instante em que penso nas reticentes palavras que colocarão um fim a essa história. Não o definitivo nem o mais perfeito, mas aquele que honre a vida que compartilhamos e demonstre nossa gratidão ao acaso que nos uniu e fez de duas meninas de estilos tão opostos grandes amigas e dessa amizade, o amor que uma sempre sonhou para a outra.

Despedidas sempre partem meu coração, nunca sei como fazê-las e por mais que está tenha sido uma narrativa simples, intimista, o passatempo de uma gestante, envolvi-me no processo criativo, busquei compartilhar com o mundo um punhado de mim que é feito de amor e esperança, então não chore nem diga adeus, apenas sinta toda a minha positividade. 

Até mais.


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Notas finais do capítulo

Queridos leitores, por mais que eu não os veja e tampouco vocês comentem, sei que vocês existem, razão pela qual escrevo. Pode ser que hoje ou amanhã não apareça ninguém, que demore até alguém descobrir essa fic por acaso e está tudo bem. Sinto gratidão de poder entregar algo pronto, a minha parte está feita, no entanto tenho de dar tempo ao tempo, fiquei inativa no site e nunca vou ficar ameaçando me matar ou excluir fics porque elas não têm comentários, prefiro agradecer aos tais fantasmas por essa leitura carinhosa na maioria das vezes, tanto assim é que muitos deles se sentem encabulados de comentarem algo, pessoas que leem com o coração e me apoiam, sim, pois sinto essa energia positiva que emana de quem menos se espera.
Gosto muito de pensar que um dia vocês lerão esse conto dividido em 10 partes (sem contar as cartas) que escrevi em junho, com muito carinho, tentando não perder o hábito de escrever, me desafiar a pensar em algo que até então eu nunca tinha feito. Sei que minha história não vai mudar o mundo, mas se alguém gostar, já terá valido a pena todo e qualquer esforço.
Obrigada! Não deixem de acompanhar Primeiros Erros, afinal, a Paty é demais, vocês precisam conhecê-la! Beijos e até a próxima fic!



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