Um minuto para o fim do mundo escrita por Mary


Capítulo 8
8 - 03 de Dezembro de 2002


Notas iniciais do capítulo

Ler ouvindo How you remind me do Nickelback.



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 Nunca houve restrição de faixa etária para me sentar no balanço situado na área recreativa do prédio onde morava com meus pais. Era lá que eu gostava de ficar quando queria respirar ar puro e ao mesmo tempo pensar, quando ansiava por um momento em que pudesse organizar os pensamentos e, acreditem ou não, enquanto meus dedos seguravam aquelas correntes de metal e meu corpo pegava impulso para o frio na barriga acontecer, eu me passava a limpo, razão pela qual muitas vezes eu brigava com a inspiração porque dentro da minha cabeça eu sabia todas as palavras que gostaria de dizer, transcrever para o papel se revelava um problema e tanto.

Eu havia perdido a paciência de acompanhar a novela do momento porque não aguentava mais aquela encheção de linguiça. Os mocinhos adolescentes viviam um romance melado, forçado e a mocinha era tão irritante que eu desejava que uma terceira pessoa entrasse na história e o mocinho repensasse suas escolhas. A menina vivia irritando o namoradinho, sendo grosseira com ele, depois que eles terminavam (ou ELA dava um chilique e mandava o moleque pastar) passava o tempo todo com cara de choro e praticamente o elenco inteiro tinha que encher a bola dela. Sério, mais irritante que isso é abrir livro em que a personagem principal se deprecia o tempo inteiro.

Uma das poucas pessoas que não gostava daquela novela em partes por não ser exatamente o público-alvo era a Profª Lúcia.

E eu escolhi aquele dia para enfim ler o que ela me escreveu antes de partir.

Assim que a novela terminava, o jornal começava. Meus pais não dariam a minha falta tão cedo. Naquela hora era certo que a área de recreação estaria às moscas, todas as meninas paravam tudo o que estavam fazendo só para suspirarem pelo tal ator mirim que hoje em dia já foi preso por bater em mulher e bancar o machão em balada. Sentei-me no balanço com a agenda no colo. As mãos tremiam. Aquela que havia sido minha companheira ao longo de um ano de grandes mudanças de repente estranhava o afastamento, tudo porque desde que a Profª Lúcia partiu, eu nunca mais escrevi nada, apenas me limitava a estudar para as provas e fingir que não tinha um coração quebrado para dar conta. Apalpei a guitarra amarela pendurada no meu pescoço e finalmente encarei duas páginas preenchidas por uma letra firme e ao mesmo tempo suave.

A mais bela e notável lembrança de todo o ensino fundamental estava impressa no desenho de um gato e na carta de uma professora substituta justamente da matéria que eu mais detestava.

Querida Lola,

Que agenda mais linda a sua! Fico muito contente que você ainda cultive o hábito de escrever cartas e fazer da agenda um retrato do seu ano. Um dia, quando você tiver mais ou menos a minha idade, vai olhar para trás e sentir uma pontinha de saudades até do que hoje parece chato (como as minhas aulas, por exemplo). Eu sinto saudades daqueles tempos em que dormia no sofá e acordava na cama, de quando era uma menina como você e não tinha nem metade das preocupações que tenho hoje, porém sei que um dia sentirei falta deste momento e de tudo o que ele representa.

No entanto, quero muito que você deixe de se esconder atrás dessa timidez toda porque não existe nada que você deva esconder. Você é uma menina muito bonita, inteligente, boa de papo, simpática, meiga, carismática e eu espero ver você numa novela ou então em alguma peça de teatro porque confio que você pode realizar seu sonho, só que para que ele se torne realidade você precisa acreditar.

Sorria, Lola! Sorria porque a vida costuma sorrir para quem sorri para ela! Sorrir é tão bom e não custa nada!

Sorria, menina-moça, que você está entrando numa fase única da sua vida e eu espero que você colecione muitas lembranças agradáveis, não olhe para a dor ou viva aprisionada pelo medo de não corresponder às expectativas das pessoas porque sempre que você escolhe agrada-las abre mão de um pedacinho da sua personalidade.

Nunca abra mão de ser Lola por causa de ninguém! Se por um instante alguém fizer com que você não queira ser você mesma, dê meia-volta sem remorso. Lola é o bastante para quem gostar de Lola e quem não gostar não sabe o que está perdendo!

Estou indo embora porque mesmo que fosse hoje ou daqui a um mês, esse dia iria chegar e seria doloroso de qualquer forma, mas é o preço que se paga por viver, por permitir que as pessoas entrem em nossa rotina e passem a fazer parte dela.

Sei que um dia serei esquecida, apenas mais uma professora que passou pela sua vida, mas se algum dia você ler essa página eu quero que saiba que foi um grande privilégio ter te conhecido, passar esses quase dois meses na companhia de uma amiga que reacendeu como nunca a alegria dentro do meu coração e me ajudou de forma que uma simples cartinha de agradecimento nunca seria capaz de externar.

Tenha uma boa vida, pequena Lola. Meus votos são de paz, amor, saúde, felicidade, sucesso e sonhos realizados. Até mais, menina moça. Até mais.

De sua amiga,

Profª Lúcia.

Eram lágrimas doloridas que desciam pelo meu rosto e molhavam as folhas de papel. Perdi a conta de quantas vezes escutei How you remind me do Nickelback rememorando aquele semestre em que aquele coração batia pacato sentiu pela primeira vez o gostinho de disparar, mas não pelo galã da novelinha e sim pela Profª Lúcia.

No ano seguinte ela lecionaria para outra turma e eu seguiria para o Ensino Médio, talvez nos lembrássemos uma da outra acaso alguma coincidência nos viesse à mente, caso contrário o tempo dissolveria as memórias da nossa amizade, palavra por palavra, sorriso por sorriso, tarde por tarde. Dificilmente nós nos reencontraríamos, logo aquele "até mais" tinha a conotação de um "até nunca mais".

Era uma terça-feira fria e nublada, estando eu aprovada por média, não fazia muito sentido ir para a aula, como deixou de fazer desde aquele último abraço porque caminhar pelo pátio era redesenhar todos os detalhes de uma época que tal como começou também acabou. De repente.


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