Um minuto para o fim do mundo escrita por Mary


Capítulo 7
7 - 01 de Novembro de 2002


Notas iniciais do capítulo

Mais uma cartinha no forninho:

https://ataquesartisticosdamary.blogspot.com/2018/07/de-lola-para-paty_26.html

Prometo que vou arrumar a formatação das cartas no blog, é que como eu tinha postado essa fic no Wattpad (e flopou, como tudo que tentei lá), quando saí, fui dando CTRL+C CTRL+V em tudo e aí a formatação ficou assim, mas saibam que tudo foi escrito com a alma, com muito carinho, com todo amor do mundo... foram desses textos surgiram a inspiração para Primeiros Erros que está disponível para leitura aqui, mas a Lola só entra na história bem depois...



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 O casalzinho jovem da novela das sete era um dos principais assuntos das meninas nas rodas de conversa. Era difícil encontrar uma que não estivesse caindo de amores pelo moleque, escrevendo aqueles rolos quilométricos de "eu te amo" porque era difícil dissociar o ator do personagem. O primeiro beijo do casal foi um selinho muito do mequetrefe, mas causou o maior auê.

Eu queria entender de onde vinha todo aquele frisson, de que forma se dava essa atração, esse desejo incontrolável que deixava as pernas bambas e o coração mais mole do que de costume.

Era um mistério para mim.

O gosto de um beijo. O motivo de ouvir uma música romântica e a letra fazer todo o sentido. Ou mesmo encher a agenda com colagens daquele ator de catorze anos que estava tirando o sono das menininhas, pregar pôsteres pela parede do quarto e fazer da novela um ritual para ter assunto no dia seguinte.

No entanto, o que se deu comigo foi diferente. Naquele ano eu mudei de bairro e, consequentemente, de escola também. Nos 45 do segundo tempo ou em termos pedagógicos, no último semestre do fundamental. Por um lado foi maravilhoso porque me livrei do povo que me aporrinhava desde a primeira série. Por outro, o medo de não ser bem recebida, de cismarem com alguma característica física ou comportamental e continuar lanchando solitária.

Então, sim, eu sabia o que era ser a Paty.

Aquele colégio era um bocado atípico porque apesar de haver uma turma física em que muitos se conheciam de longas datas, não posso deixar de ressaltar também uma peculiaridade: sempre chegavam novos alunos e professores também.

A panelinha de maior relevância era a das valentonas que se não fez restrição à minha presença, também não me incorporou ao grupo. Elas não eram as beldades, mas tinham punhos firmes e uma lista extensa de meninas para infernizar. Eu não integrava o rol das criaturas perseguidas pelo sexteto que impunha respeito na base da violência.

Inicialmente eu andava com três meninas que eram "comuns", gostavam de tudo o que estava na moda, se não namoravam ao menos estavam interessadas em algum menino, assistiam a tal novela e torciam pelo casal jovem. Eu não era maltratada nem rejeitada, entretanto todas ali já se conheciam desde o pré-escolar e eu fazer parte do grupo ou não era indiferente.

A mim não era incômodo passar os intervalos sentada num canto do pátio observando casais namorar às escondidas da inspetora, os meninos jogando bola na cancha e grupos de meninas lanchando juntas, dançando as músicas da moda ou então folheando revistas voltadas ao público teen. Se eu fosse uma exímia desenhista poderia inclusive ter feito diversos retratos do intervalo, mas muito mais de uma pessoa em especial.

Eu nunca gostei de Educação Física, nunca mesmo. Não sabia sacar nem chutar uma bola para dentro do gol, tampouco acertar uma cesta. Não à toa era a última a ser escolhida nos times. A professora Rosângela era linha dura nesse sentido, então eu não gostava muito do quarto tempo nas quintas e sextas-feiras porque tinha um encontro marcado com a quadra de esportes e um dos prazeres das valentonas era arremedar aqueles cuja inabilidade para ser atleta era tão grande que a docente não tinha o pudor de envergonhar essa gente toda, gritava sem dó nem piedade.

Entretanto, numa quinta-feira especial, quem nos convocou para a quadra de esportes foi uma mocinha que não devia ter nem vinte e cinco anos. Pela autoridade com que se impôs diante das valentonas, explicou que seria a substituta da Profª Rosângela e manteria o cronograma imposto pela docente ausente. O nome dela era Lúcia e ela tinha a estatura mediana, vestia uma camiseta branca, uma calça de tactel azul-marinho, nos pés calçava tênis de corrida. O corpo não era de uma musa fitness: coxas um pouco grossas, seios fartos — para a alegria dos moleques —, os cabelos castanho-claros estavam presos num rabo-de-cavalo e o rosto era redondo, com sardas em volta do nariz. Os olhos eram da mesma cor das madeixas. Ela tinha um sorriso muito marcante e não usava nadica de maquiagem.

Dentro da quadra havia quatro cones dispostos em linha reta e duas bolas. Naquela aula treinaríamos antes de definir os times. Corremos, suamos, fizemos abdominais, flexões, treinamos também cobrança de pênalti. Colocar-me na posição de goleira foi uma péssima ideia porque levei um frango atrás do outro, garantindo pelo menos a nota de participação. Deixei a cancha exausta, envergonhada e magoada.

No dia seguinte, tremi na base só de ver aqueles cones todos e imaginar o que me esperava. Meu corpo sedentário estava tão dolorido que eu não teria condições nem de ser gandula do time formado pelas meninas, então adotei a velha desculpa da cólica para não participar dos treinos e da partida. A professora nem sequer desconfiou de que eu estivesse mentindo, convidou-me a sentar ao lado dela e eu, que sempre adorei conversar, iniciei o diálogo falando algo sobre o tempo e quando dei por mim, o sinal estava soando e nosso papo ainda fluía.

— Que legal! — exclamou Lúcia, animada, confessando que era uma autêntica sagitariana. — Meu pai é de libra. 14 de outubro.

— Meu aniversário é dia 16.

— Quantos anos? 14?

Confirmei que sim com a cabeça.

— E aí? Já sabe o que quer fazer quando for grande?

— Claro! — respondi convicta de que nunca mudaria de ideia. — Quero ser atriz!

— Sabe que eu ia comentar que seria muito bom que você entrasse num curso de teatro para perder um pouco dessa timidez toda... — comentou a professora com quem a partir dali eu passei a compartilhar todos os meus segredos, medos, sonhos e alegrias.

Ao contrário de antes em que só de pensar no quarto tempo de quinta-feira eu sentia desgosto de ir à aula, uma sensação muito diferente me acometia. Eu aguardava pelos últimos dias da semana porque a Profª Lúcia mantinha uma postura amistosa com a turma e dava nota de participação até para mim que nem mesmo fazia um abdominal na aula dela. Passávamos o tempo todo conversando e quando eu estava assim tão pertinho dela me esquecia de todo o resto, aquela voz me acalentava, aquele sorriso fazia todas as ruas escuras da minha alma se iluminarem e às terças-feiras eu não tinha o último horário, antes eu ia embora, porém depois que fiz amizade com a minha professora, a encontrava na cancha e batíamos papo até o último sinal soar. 

O dia mais triste era segunda-feira em que Lúcia não aparecia no colégio.

Pouco a pouco eu fui me apegando, me acostumando com os momentos bons e agradáveis que tínhamos. Ela me contava altas histórias dos tempos de escola, me incentivava muito a seguir a carreira de atriz, preenchia aquele vazio que eu sentia por sempre me sentir avulsa, nunca me encaixar a grupo nenhum.

Não à toa quando ela tirou um pacote de papel pardo do bolso da jaqueta e me entregou, eu me surpreendi.

— Pra mim?

Ela confirmou que sim com a cabeça.

— Estava passando numa feirinha e quando vi, me lembrei de você — disse Lúcia, que se lembrou do meu aniversário sem que eu precisasse lhe dar alguma indireta. O presente era um cordão preto com uma guitarra amarela pendurada na ponta.

— É lindo!

— Pensei que já que você gosta de rock, por que não?

Colei na agenda o saquinho de papel pardo, como pedi a ela para que assinasse a página referente ao aniversário dela a fim de deixar uma lembrança para mim e minha professora me disse que preferia fazê-lo no final do ano, quando pudesse escrever algo mais profundo e verdadeiro.

Lúcia era o primeiro pensamento que eu tinha no dia e o último também, presumo. E quando eu a via, meu coração disparava, as pernas tremiam e se pudesse eu passaria o dia todo olhando para ela, ouvindo aquela voz tão agradável, compartilhando o que escrevia e sentia.

Não me ocorria que a cada dia que passava o sentimento apenas crescia. Não naquela época. Não quando eu ainda me punia por prestar mais atenção nas garotas do que nos garotos. Não quando eu nem sequer sabia o que era amar e que não existia um jeito só, programado de antemão. Eu pensava que paixão era apenas aquilo que o casal da novela vivia. Eles se conhecem, se odeiam, pá pum, de repente se amam e aí entra uma terceira pessoa só para ferrar com tudo até no capítulo final a mocinha ser a escolhida. Então, não, eu não acreditava que estivesse apaixonada por Lúcia.

Eu só me dei conta do quanto ela era importante para mim naquela melancólica sexta-feira, primeiro de novembro, quando nós duas nos sentamos no nosso lugarzinho de sempre e enquanto eu contava acerca do temido provão que foi aplicado um dia antes, apenas a minha voz ecoava.

— Lola, minha querida, a gente pode ter uma conversa? — sugeriu Lúcia e eu estremeci porque quando os adultos se apropriavam daquela entonação, era sinal de que a coisa não estava boa para o meu lado.

— Sim, claro!

Um dos meus maiores temores era que Lúcia não quisesse mais ser minha amiga.

— Eu preciso te contar uma coisa, mas você tem que me prometer que não vai chorar... — começou ela, cuja inflexão de voz externava a dificuldade em ter aquela conversa comigo. A princípio julguei que alguém estivesse incomodado com nossa amizade e quisesse nos separar ou a própria tivesse tomado àquela difícil decisão.

— Como assim?

— Você me promete que não vai chorar?

Dei de ombros.

— Essa é a nossa última aula — anunciou Lúcia. — Na semana que vem a professora Rosângela estará de volta.

Traduzindo para um português mais claro: eu estava prestes a amargar um coração partido. Pela primeira vez na vida.

— A professora Rosângela teve um pequeno problema de saúde que a afastou da escola, mas já se recuperou e voltará na semana que vem...

Lúcia me olhou de esguelha.

— Você promete pra mim que não vai chorar?

Permaneci calada porque a resposta que eu tinha para dar cabia dentro de uma lágrima.

— Vou sentir muito a sua falta, Lola. Você é uma menina muito querida, doce, amável. Não é fácil ter que te dar essa notícia, mas sendo sua amiga não posso faltar com a verdade.

A Profª Lúcia me tinha como uma criança especial, uma amiguinha fofa que admirava o trabalho dela, então nunca lhe ocorreu que em minha vida tivesse a importância que teve. Ela me contou sobre um namorado que teve e que lições extraiu daquele relacionamento, do término e sobre a importância de uma mulher se valorizar para não aceitar ser tapa-buraco na vida de ninguém.

— Lola, você está bem?

Fiz que sim com a cabeça.

— Me empresta sua agenda, por gentileza?

A agenda.

Eu estava abraçada com a mochila, abri-a e entreguei a agenda à Lúcia que pediu meu estojo emprestado. Naquele colégio vigorava o esquema de sala-ambiente e pelo fato de haver muitos furtos de material escolar, dinheiro e outros itens, eu vivia grudada com os meus pertences porque no dia em que levei minha caneta preferida que tinha cheiro de morango e a mesma foi roubada, chorei muito e não quis contar aos meus pais o que tinha acontecido porque temia que eles me bronqueassem, me acusassem de ser estabanada, todavia eu desconfiava muito daquelas valentonas em conluio, muitas delas já tinham idade para estarem na faculdade e pelo modo como levavam os estudos, não sairiam dali tão cedo.

— Não é pra olhar antes de voltar pra casa, tá? — advertiu a professora.

— Tá bom...

E enquanto ela me escrevia, comentou que amava gatos e só não tinha nenhum em casa porque a mãe era alérgica, porém quando tivesse seu cantinho adotaria pelo menos uns três.

— Você tem uma folha de caderno sobrando?

Apanhei meu fichário e vasculhei em busca de uma folha em branco, embora todas elas tivessem as bordas coloridas, o que não importava para Lúcia que insistentemente repetia:

— Não é pra senhorita ver...

Retesei os ombros observando as meninas dançarem Ragatanga do RougeNamorar pelado do MC PeléCachorrinho da Kelly Key e minha professora se concentrou nas tarefas que designou a fazer naquele último dia que passamos juntas. Ao concluir, entregou-me a agenda fechada e ordenou:

— É para olhar somente quando estiver em casa.

— Tá bom...

— Você está muito quietinha hoje, Lola. Tem certeza de que está tudo bem?

O sinal soou.

Lúcia olhou as horas no relógio de pulso e depois para mim que respirei fundo e ouvi todas as considerações dela antes de receber aquele abraço que deu como certo a confirmação de um "nunca mais", de que uma importante época da minha vida se acabava ali e que consigo, junto àquela bolsa de academia levava uma porção de mim.

— Até mais, Lola. Até mais! — acenou ela enquanto eu me encaminhava para fora do portão da escola, ainda em torpor.

Lúcia não disse um simples tchau ou um dramático adeus, nem me iludiu com um "até logo", emendou o afamado e enigmático "até mais".


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