Um minuto para o fim do mundo escrita por Mary


Capítulo 2
2 - 30 de Julho de 2005


Notas iniciais do capítulo

Como tudo começou...



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Sempre fui avulsa quando se tratava de separar a turma por hierarquias. Retraída por natureza, a popularidade foi um sonho distante. Beldade, tampouco. Nunca fui o motivo de um garoto querer acordar, eles sempre me usavam como garota de recados para chegar à outra. A antipatia pelas exatas me impediu de ser a autêntica nerd que conferiria a essa narrativa a tonalidade ideal para me estereotipar, no entanto em semana de provas eu era um mal necessário porque minhas notas estavam nos conformes e me asseguravam estabilidade. Apesar de passar os intervalos junto de outras meninas, todas elas tinham suas melhores amigas e se não um namorado, ao menos um menino de quem falavam quase em tempo integral. Eu vivia calada, as seguia e não opinava.

Havia um pacto muito estranho em nossa classe: ninguém jamais se sentava na fileira do meio, ninguém. No meio do ano as panelinhas já estavam formadas, algumas desfeitas, mas cada um tinha ciência de seu papel social ali.

Eu estudava naquela escola havia três anos e nunca tinha visto aquela menina de rabo de cavalo loiro, calça jeans e blusa azul celeste. Aparentava ter a mesma idade que eu e conferiu um pedaço de papel antes de adentrar a classe e procurar por uma carteira vazia.

Novata, na certa. Ninguém se sentava na fileira do meio. E ela o fez, escolhendo logo a primeira carteira, ajeitou a bolsa carteiro azul cheia de bottons coloridos no encosto da cadeira, abriu o fichário e fez de conta que não se importava com nada nem ninguém ao redor. Cada um lida com o medo como lhe convém. A serenidade pode ser um escudo também.

Na segunda aula, ministrada pela sisuda docente de química orgânica, escutei os comentários das garotas do meu grupo sobre a garota nova:

— Olha o tipo dessa patricinha!

— Olhe lá, fazendo de conta que entende alguma coisa dessa matéria chata, querendo fazer média com a professora copiando a matéria.

— Ridícula!

— Não fui com a cara dela!

— Essas patricinhas me aborrecem!

— Toda patricinha é igual, já notou? Elas acham que são o centro do mundo!

Detalhe: nenhuma dessas garotas se prestou a recepcionar a aluna nova para proferirem definições tão acaloradas. Pior ainda: ninguém nem mesmo se colocou no lugar dela. E não podemos ser hipócritas, todos nós agimos como minhas antigas colegas, muitas vezes formulamos um julgamento à revelia a respeito de coisas e pessoas as quais temos um conhecimento bastante superficial e nosso orgulho nos impede de avançar nesse sentido porque seria o equivalente a baixar a guarda para depois engolir a vergonha.

A novata era apenas a novata. Aquele rótulo por si só já era deveras aflitivo. Olhar para os dois lados da turma e não encontrar nenhum rosto conhecido, ninguém que pudesse confortá-la com um sorriso, por mais falso que fosse.

Trocar de escola no meio do ano a poucos meses da formatura não deveria ser nada fácil porque mesmo também caindo no vício de divagar acerca do passado de alguém a quem desconhecia, porém suponho que como todos nós, ela tinha uma história, alegrias e glórias, tristezas e vitórias, sonhos e escolhas dolorosas, amigos que guardava a sete chaves e meia num recanto especial do coração, a música que a fazia se derreter em prantos por lembrar aquele amor mal resolvido.

Se sair de um colégio onde você estudou havia muito tempo é triste por natureza, imagine mudar de cidade e chegar a uma turma onde todos já têm o seu lugar e você sabe que se escolherem te odiar, resta uma última esperança: ter forças para sobreviver e não revidar aos ataques daqueles que na ausência de bons argumentos e pretextos, partem para a agressão como forma de se manterem no controle ou dentro da zona de conforto onde julgam tudo e todos sem que um dedo indicador provenha da mesma forma.

E enquanto meu grupo de (falsas) amigas soltava o verbo contra a novata sem nem sequer terem qualquer argumento decente para endossar aquela enxurrada de críticas negativas e julgamentos precipitados acerca da aparência da garota, eu não parava de olhar para ela.

Naquele dia não tive coragem de trocar uma única palavra com ela, todavia antes de me deitar, prometi a mim mesma que não julgaria a garota nova com base no que diziam as outras. Eu própria chegaria às minhas conclusões.

Durante o intervalo, a novata não desceu para a cantina para enfrentar aquela fila quilométrica. Era proibido permanecer dentro da sala de aula, portanto ela estava observando a movimentação do pátio debruçada no parapeito e por mais que eu quisesse me concentrar na última novidade das meninas, a ansiedade tilintava dentro de mim. Eu estava tão cansada de me sentir avulsa, de acompanhar a manada sem ser seguida que reuni toda a minha coragem e retornei ao bloco norte, onde se situavam as turmas dos terceiros anos.

Ainda incerta acerca da recepção, cumprimentei-a.

— Oi... — retribuiu ela, amistosa.

— Eu nunca te vi por aqui antes. Você é nova por aqui?

Ela aquiesceu.

— Eu sou a Lorena, mas todo mundo me chama de Lola. E você?

— Sou Patrícia, mas todo mundo me chama de Paty.

— E aí, o que está achando daqui?

— Não tenho muito que dizer por enquanto, mas o pessoal por aqui parece não ter muito jeito para receber quem chega de fora. Estão me olhando como se eu fosse um alien. Bom, não que eu estivesse esperando que as pessoas fossem estender um tapete vermelho para a minha chegada, nada disso, mas educação nunca é demais.

Dei uma risadinha sem graça.

— Gostei do seu colar! — Ela apontou para um cordão preto com uma guitarra amarela pendurada no meu pescoço. As outras meninas viviam me criticando por usá-lo e queriam a todo custo que eu me desfizesse dele, porém jamais poderia, ele era presente da primeira pessoa a quem amei e tê-lo sempre por perto me fazia lembrar alguém que apesar de não fazer mais parte da minha vida, me ensinou valiosas lições acerca do amor. As dores e as delícias. A sensação de caber direitinho num abraço quentinho e ele ser, além de tudo, o último. Mas isso eu nunca lhes contei, elas jamais compreenderiam e por muito tempo eu também relutei para aceitar meus desejos e sentimentos mais profundos, era sempre cômodo culpar o vazio, sempre ele, aquele buraco escuro dentro do peito que nada no mundo parece preencher, por mais que se tente com empenho.

— Verdade? — inquiri, desconfiada, temerosa de que mais cedo ou mais tarde a novata bonita deixasse de ser vista como uma ameaça e descobrisse que tinha mais afinidades com as demais, me deixando de lado aos poucos como se faz com um ursinho de pelúcia velho e encardido.

— Eu gosto de gente que tem estilo, sabia? — confessou-me Patrícia que estava sendo criticada por usar uma caneta de lã com pompom cor-de-rosa na ponta. — Gente que é de verdade, que não tenta caber em nenhum lugar, que veste o que dá na telha, que não fica tentando ser o que não é. Gente que manda um foda-se pra geral. Acho que a gente vai se entender bem.

— Tomara! — dei de ombros pensando a respeito de mandar "um foda-se para a geral" porque vontade eu tinha de sobra, só me faltava a coragem para tal.

— Por favorzinho, diz que você gosta do Linkin Park, vai! — prosseguiu Patrícia que também ansiava mais do que nunca encontrar outra pessoa que também gostasse da sua banda favorita.

— Eu amo o Linkin Park, mas só tenho algumas músicas gravadas na minha fita...

— Eu tenho dois CDs deles, quer que eu te empreste?

— Sério mesmo?

— Ué...

— Você curte Green Day?

— Lógico.

— CPM 22?

— Acha que eu picharia o solado do meu allstar com um pedacinho da letra de Um minuto para o fim do mundo só para causar?

Eu poderia me atrever (com toda a razão) a dizer que enjoei de tanto ouvir aquela música porque a mesma tocava nas rádios todos os dias, o clipe sempre ficava entre os mais votados quando aquele canal aberto especializado em música honrava o nome e na escola a Rádio Aluno executava a pedido de alguém para o crush. No ano anterior procedeu da mesma forma com Não sei viver sem ter você.

Patrícia ainda não havia comprado o uniforme, então ao longo daquela semana vinha ao colégio com uma vestimenta diferente. No dia em que conversamos pela primeira vez, ela trajava uma camiseta baby look do Linkin Park e uma calça jeans com correntes nos bolsos, além do allstar azul, surrado, cheio de inscrições no solado. Naquela ocasião as outras meninas comentaram que a patricinha queria pousar de roqueira e se ela aparecia com uma pulseirinha com as cores da bandeira da Jamaica, era uma exibida, se porventura usasse chiquinhas altas com faixa no cabelo, tênis largo com cadarços coloridos pousaria de vileira.

— E eu adorei o seu fichário, mas queria saber onde é que encontro essas canetas fofas que nem você usa...

— Você gostou mesmo daquela caneta? — quis saber Patrícia, animada.

— Gostei, sim.

Depois do intervalo, quando adentramos a sala no maior papo, Patrícia abriu o estojo onde estava o seu invejável conjunto de canetas, vasculhou até achar aquele que seria o primeiro de muitos presentes que minha melhor amiga me daria ao longo dos anos porque a partir daquele quarto horário, língua portuguesa, em que juntamos nossas carteiras velhas e pichadas para realizarmos uma atividade em duplas, tornamo-nos inseparáveis e eu deixei de ser avulsa para ter enfim uma amiga que me aceitava sem impor condições, que não achava minhas conversas desinteressantes e tampouco me interrompia enquanto eu estivesse falando.

O bullying no ensino médio não é mais aquela conduta escrachada dos tempos do fundamental, mas existe e permanece de forma velada, abrindo feridas que doem na mesma proporção de um empurrão ou de ser, por exemplo, eleita a pessoa mais feia da turma, como se ser a mais bonita também valesse alguma coisa no dom da vida quinze anos depois.

Eu era invisível demais para alguém se dedicar a me infernizar — um dos meus feitos naquela época —, no entanto Patrícia tinha algo que suscitava nas outras aquela sensação de incômodo, de ameaça iminente, como se a novata decidisse de repente que ingressou naquele colégio no segundo semestre do terceirão para passar o rodo nos namoradinhos otários delas ou nos pretendentes que estavam muito mais interessados no rebolado das meninas do primeiro ano.

Efetivamente Patrícia e eu tivemos alguns desentendimentos ou períodos em que nos mantivemos distantes uma da outra, todavia não importava o tempo que passássemos sem nos vermos, sempre que nos encontrávamos, a chama da amizade verdadeira se fortalecia porque aos dezessete estávamos lentamente quebrando a casca do ovo que nos separava do mundo.

Essa casquinha é frágil, gosmenta, altamente perigosa, porque não te contam, mas toda metamorfose é permeada de lágrimas. Antes de sair do casulo, toda borboleta sofre, por isso faz tanto a diferença ter ao seu lado alguém que embora também esteja vivenciando dilemas interiores e impenetráveis, te oferece compaixão e segura a sua mão.

Patrícia seria aquela lagarta que mesmo nos momentos mais vacilantes seguraria a minha mão e faria com que aquela letra inscrita no solado do tênis dela fizesse tanto sentido no instante em que nós nos despedimos naquele aeroporto apinhado de pessoas que reclamavam do fim do feriado e ao mesmo tempo também embarcavam ora para curtirem férias em períodos alternativos ou mesmo como Paty, para abrirem suas asas e derrubarem as convenções. Cada qual com seu motivo. Eu com o meu, que é escrever, porque voar no pássaro de metal ainda é um sonho distante.


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Notas finais do capítulo

*** vileira = caso alguém tenha se intrigado com a palavra, é uma designação bem conhecida dos jovens curitibanos que foram adolescentes na década passada. Os tidos como vileiros eram aquela galera de meninos que usava boné de aba virada, tênis grandão com cadarços coloridos, peita por cima da camiseta e curtia Racionais MC'S, além de terem tretas com vileiros de outras regiões e com a polícia. As meninas usavam marias-chiquinhas lá no alto da cabeça com uma faixa no cabelo, tênis e calças largas. Os vileiros e os emos competiram bastante até a chegada dos coloridos, tinha rixa entre eles. Acreditem, as meninas caíam de amores pelos vileiros e muita menina 'patricinha' virava vileira por amor. Quem viveu, sabe. (só a título de curiosidade mesmo!)♥



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