Um minuto para o fim do mundo escrita por Mary


Capítulo 3
3 - 04 de Junho de 2010


Notas iniciais do capítulo

Antes de ler o capítulo, seria melhor ler a carta... você se importaria em abrir uma aba no seu navegador para ler essa postagem no meu blog?

https://ataquesartisticosdamary.blogspot.com/2018/07/de-lola-para-paty.html



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A caixa postal estava lotada de correspondências, muitas delas de moradores que nem residiam mais naquele apartamento. Folheei uma a uma até o coração disparar ao reconhecer aquela letra. Guardei a carta dentro da bolsa, nutrindo a sensação de que aquela viagem de elevador era longa demais e a paciência, breve como um pavio aceso.

Deixei as correspondências endereçadas aos meus pais em cima do aparador de jacarandá e cumprimentei mamãe que estava atarefada na cozinha, respondendo com um aceno de cabeça.

Mamãe de vez em quando cismava em comentar a respeito do Iago, filho da melhor amiga dela, disponível no mercado e que, segundo ela, "combinaria perfeitamente" comigo. Eu não dizia nem que sim nem que não porque da última vez que tentei expor o meu ponto de vista acerca daquela situação vexatória, compreendi que ainda não havia a menor chance de haver um diálogo saudável com alguém que apenas gritava, de modo que minha voz se abafava até sumir.

Iago poderia ser um cara legal, mas para outra garota que estivesse à procura do que ele estaria disposto a oferecer, porém essa pessoa não era eu e jamais seria.

Por melhores que fossem as intenções daqueles que me rodeavam, eu não estava nem um tiquinho a fim de conhecer nenhum rapaz naquele instante porque embora não fosse dotada de certezas e corresse o risco de perder minha melhor amiga não só para o mundo, como para outro rapaz ou mesmo se o ímpeto de confessar todos os meus tormentos interiores se materializasse e fosse repelido, eu amava Patrícia com todas as minhas forças.

Eu amava Patrícia como jamais amei nenhum homem.

Havia a possibilidade de eu transferir para Paty todas as projeções morais e peculiaridades que desejava numa pessoa?

Tal hipótese eu não descartava, ao passo que é muito comum em grandes paixões platônicas e unilaterais que façamos uma projeção tão bem orquestrada das virtudes que agregamos ao indivíduo que não há como não terminar em decepção porque as idealizações fenecem e não podemos atribuir nenhuma culpa ao outro porque ele não nos devia nada. Somos nós mesmos os culpados.

Dentro da bolsa havia uma carta dela. Sentir-me-ia satisfeita se houvesse um cartão-postal e no verso a caligrafia dela aquecesse meu coração congelado pela saudade, contudo ansiava por ler uma frase que viesse do coração, que fosse tão espontânea quanto seu jeito de ser, quanto a nossa amizade, pois mesmo que a distância estivesse me fazendo sofrer, aquela correspondência aliviava a saudade. Aquilo era tão poético, tão intrigante ao mesmo tempo. Meus dedos tocariam aquele papel que cuidadosamente foi escolhido e designado para mim.

Por maior que fosse a ansiedade em saber o que Patrícia queria me dizer (ou não), eu esperaria o anoitecer para selecionar algumas músicas especiais e aninhar o travesseiro no colo. Aquele momento interligaria dois corações separados por um oceano de distância, pelo fuso horário, pela oposição das estações, não à toa precisaria ser mais do que especial, tinha de ser só meu.

Então a dúvida assombrou o meu pensamento: e se Patrícia tivesse me escrito para contar que se apaixonou por alguém do velho continente e jamais voltaria para casa?

Patrícia havia me prometido algo antes de partir?

Na realidade, não.

Fosse como fosse, eu sanaria a curiosidade assim que cuidadosamente abrisse o envelope retangular. Sentir o cheiro do perfume dela já era motivo para que o coração ficasse apertadinho dentro do peito.

✉✉✉

— Recebi uma carta da Paty hoje — comentei com mamãe que perdoava as grosserias do meu irmão, a falta de cooperação dele, todavia não hesitava em me detonar se acaso eu cometesse um tropeço, por menor que fosse.

— Ah é? — fez mamãe. — E o que ela disse?

— Eu... Eu ainda não abri a carta...

Silêncio.

Papai se serviu com um pouco de café e foi assistir ao noticiário na sala. Ele é uma das poucas pessoas que tem um sono de anjo mesmo consumindo cafeína poucas horas antes de dormir. Meu irmão não estava em casa.

— Sabe, o Iago está livre nesse fim de semana... O que você acha de...

— Ah mãe, credo! É essa a impressão que todo mundo tem de mim? A de que estou desesperada para arranjar alguém?

— O Iago é um ótimo rapaz!

— Mas eu não estou a fim de sair com ele!

— Uma chance você tem que dar!

— Eu não sou nenhuma desesperada para arranjar ninguém, só quero viver minha vidinha em paz, sem incomodar ninguém.

— Não me diga que está esperando um príncipe encantado chegar montado num cavalo branco? — irritou-se mamãe enquanto eu a ajudava a guardar toda a louça. — Pois fique sabendo de uma coisa, Lorena, príncipes não existem. Deixe de ser arrogante e não fique escolhendo demais porque quem escolhe demais com o pior fica.

— Arrogante, eu?

— O Iago é um bom rapaz e você se recusa a dar uma chance pra ele. Não seja como eu que tinha vários rapazes legais interessados em mim e fui dar trela para o pior deles. Não se iluda com as aparências porque a fachada de príncipe esconde o sapo.

Mamãe fazia menção ao próprio casamento sucateado com papai. Bodas de prata cujo brinde principal tinha sabor de hipocrisia. Os dois mal se suportavam, mas ao mesmo tempo não tomavam nenhuma decisão concreta. Viviam entre impasses, prezando pelas malditas aparências.

— Eu só quero ficar sozinha. Eu não quero ter ninguém. Eu não me importo em morrer sozinha.

— Ninguém quer morrer sozinho.

— Eu quero!

— Você não vai morrer sozinha porque vai aparecer um rapaz muito legal que vai te mostrar que embora o seu pai seja um estropício, nem todos os homens são iguais, não generalize nunca! E vai que a pessoa certa para você é o Iago? Você nunca vai saber se não tentar!

— Vem cá, mãe, o Iago não tem capacidade de arranjar uma mulher por conta própria?

— O coitadinho não dá sorte com mulher — lamentou mamãe que tinha sempre por hábito ficar ao lado dos homens, nunca das mulheres. — Tem mulher que merece ser maltratada porque quando encontra um homem legal, não sabe dar valor. Essa última namorada dele é uma louca, infeliz, fazer o que fez com ele não se faz com ninguém. Tenho dó desse menino. Não tem sorte com mulher. Você e ele têm tanta coisa em comum que seria bom você chama-lo pra sair no domingo. É claro que ele é quem deve te chamar, mas não custa nada jogar uns verdes...

De maneira alguma eu passaria uma tarde de domingo sentada na praça de alimentação do shopping ouvindo um serzinho misógino falando mal da última namorada, fazendo um retrospecto dos relacionamentos fracassados. Eu, hein?

— Podemos mudar de assunto? — pedi.

— Você é igualzinha ao seu pai, sempre arranja um jeito de mudar de assunto quando o mesmo não te interessa — alfinetou mamãe que às vezes mais parecia uma estranha do que aquela progenitora de ares acolhedores com quem eu poderia abrir o coração sem medir as palavras, privilégio que Patrícia tinha porque entre ela e a mãe dela não havia segredos, ainda que os pais fossem divorciados, a relação entre eles era tão bonita, tão madura, tão repleta de amor que em segredo eu invejava isso, mesmo tendo em mente que o verdadeiro amor não se deixa contaminar por esses sentimentos mesquinhos e infelizmente humanos.

— Alguma merda muito grande esse Iago deve fazer para que nenhuma garota o suporte por muito tempo...

— Você está julgando o pobre coitado sem conhecê-lo!

A inflexão acusativa era o prenúncio de que aquela simples conversa entre mãe e filha terminaria em discussão.

— Por que a culpa de tudo é sempre atribuída à mulher? Quem disse que essa namorada não passou o inferno nas mãos dele?

— Eu conheço o Iago desde que ele era um menininho. Você brincou com ele quando era pequena, apesar de não se lembrar, eu vi esse menino crescer e sei do caráter dele.

— Você sabe a respeito dele o que te permitem saber. Você não namorou com ele para saber se ele é esse santo aí que você está pintando. Pode ser que ele seja um cara legal, mas mesmo que minha opinião não seja levada em consideração, presumo que não seja um bom momento para ele entrar noutro relacionamento se ainda não superou o término. Não tem nada mais covarde do que usar uma pessoa para esquecer outra. Não é assim que se supera um coração partido.

— Sabe qual é a conclusão que eu chego com tudo isso, Lorena? A de que você não gosta de homem!

— O quê?

— Você tem vinte e dois anos e nunca namorou...

— E daí? Conheço gente de trinta que nunca namorou...

— Você não gosta de falar de rapazes, fica toda nervosinha quando eu falo de algum bom partido para você e vive pra cima e pra baixo com a Patrícia. É Paty pra lá, Paty pra cá. Eu não vejo você falar de nenhum homem com a mesma animação que você fala dessa moça. É um desgosto tremendo para mim como mãe, pensar que criei filha minha para gostar de mulher!

— Por isso eu prefiro conversar com a Patrícia — estrilei, à beira de uma crise de choro. — A Patrícia pode conversar sobre qualquer assunto com a mãe dela sem haver picuinha, por isso ela é tão livre, tão segura de si, porque sabe que é amada. Com você não dá pra conversar. Eu tento, eu juro que tento, mas você não colabora.

— Eu não criei filha minha pra gostar de mulher! — advertiu mamãe, estreitando os olhos que crispavam de raiva.

— Como posso te considerar minha melhor amiga se você só grita comigo, não se esforça para me ouvir e não se importa com o que eu sinto? Você é minha mãe, mas não é minha melhor amiga, então que liberdade eu tenho para te contar tudo o que poderia se houvesse algum interesse da sua parte?

— Eu sempre desconfiei de que essa Patrícia fosse uma má influência para você!

— Você sempre foi contrária a qualquer coisa que me deixasse feliz, essa é a verdade!

— Eu tenho vergonha de você, Lorena — desabafou mamãe. — Com vinte e dois anos de idade tem prima sua formada na faculdade e começando o mestrado. Você começa as coisas e não termina. Nunca namorou, enquanto tem prima sua que namora o mesmo menino desde os tempos de escola. Mal falo em rapazes e você se esquiva. Eu tenho vergonha de ser sua mãe.

— Eu não tenho culpa de não ter certeza das coisas...

Mamãe franziu o cenho e me lançou um olhar de deboche:

— Com relação ao quê?

— Você pensa que eu gosto de desistir dos cursos que começo? Que eu não me sinto frustrada por ter vinte e dois anos e não estar nem perto de ser tudo o que um dia sonhei pra mim? Que eu não me torturo toda vez que tropeço? Que eu gosto de ser constantemente comparada com outras moças da minha idade que supostamente estão "por cima"? Eu estou tentando me encontrar, mas não está sendo fácil e tudo se torna ainda pior quando comparam meus passos com os das outras moças e tentam me dizer o que devo fazer porque talvez o caminho que pareça certo a você ou para os outros não seja aquele que vai me conduzir para onde quero ir.

Papai apenas olhou de relance o vulto de uma moça aos prantos batendo a porta do quarto e voltou à atenção para a televisão. Era tão comum quanto uma dose de café após cada refeição.

Sueli do Carmo Freitas não aceitava sair derrotada de uma discussão, portanto era de se esperar que arrombasse a porta do meu quarto e me desse um sermão antes de disparar a bala de prata que literalmente me encurralou contra parede:

— Faz alguns dias que estive arrumando aquele ninho de ratos que você chama de quarto e encontrei uma cartinha que você escreveu para a Patrícia. 

Meu coração parou.

— A senhora leu?

— Li, sim. — confirmou Sueli.

Cobri o rosto com as mãos.

— Mãe!

— Por isso estou achando que essa viagem é uma benção pra você se esquecer dessa moça e dar uma chance ao Iago.

— A senhora não tinha o direito de ler, mãe. Não é só porque você é minha mãe que você pode invadir minha privacidade e me humilhar desse jeito.

— Enquanto você viver sob o meu jugo, Lorena, me deve satisfações de tudo o que fizer...

— Não quero ser mal educada nem nada, mas me soa invasivo o fato de você entrar aqui e remexer em arquivos íntimos.

— Ler aquilo me fez dormir a base de calmantes, fiquei pensando onde errei como mãe, onde estive por todos esses anos que não vi nada do que estava acontecendo debaixo do meu nariz.

— Não aconteceu nada, mãe. Nunca aconteceu nada e provavelmente nem irá. A Paty não sabe do meu sentimento. Nós somos apenas amigas. A Paty gosta de rapazes e faz sucesso com eles, mas infelizmente eu não...

Mamãe urrou.

— Como é que você pode dizer que não gosta de homens?

— Porque eu não gosto, ué.

— Você não gosta porque não experimentou.

— E nem pretendo.

— Como assim?

— Eu não tenho o menor interesse em ficar com homens.

— Tudo bem não ficar com homem, Lorena, mas com mulher também não, né? — Mamãe me lançou um olhar persuasivo como se eu fosse uma criancinha de cinco anos que não queria escovar os dentes antes de dormir. — Imagine com que cara eu terei de contar aos parentes que você gosta de mulher?

— Parentes? Que parentes? A senhora se refere aos parentes que encontramos apenas em velórios ou casamentos?

— Todas as suas primas da mesma idade namoram, só você não. Você acha que ninguém desconfia?

— Do quê? — debochei.

— De que você é estranha!

— Sou estranha só porque não namoro — assenti com a cabeça. — Tantos problemas sérios acontecendo no mundo e um bando de moralistas de merda preocupados com o que faço ou deixo de fazer com a minha buceta.

— Olha o palavreado, sua mal educada! — Sueli me repreendeu.

— Mesmo que eu fosse hétero não poderia dormir na casa do meu namorado ou trazê-lo para dormir aqui, não teria muita diferença. Seria a mesma merda. O Júnior pode comer as filhas dos outros numa boa que ninguém dá um pio, o fato de ele estar solteiro agrega valor no peso da conquista, o papai não encrenca se ele sai e não diz a que horas volta. Comigo, não. Eu estou solteira porque sou estranha, incompetente, exigente, uma coitada. Se eu tivesse uma vida sexual ativa, seria chamada de puta. Por não ter, também me debocham. Não importa de que maneira decida levar a vida, eu sempre serei criticada.

— Se você se der ao respeito, não.

— E o que seria "se dar ao respeito"? — peitei Sueli que naquela hora deu para me ignorar, como se nada tivesse ouvido.

Sentei-me na cama, desejando também ter um horizonte, um prazo que tornasse aquele martírio mais palatável. Eu estava tão cansada de me procurar nos lugares errados e sair deles com a alma em frangalhos, de engolir o que deveria dizer, de ser calada quando minha voz finalmente ganhava corpo, de mim mesma.

— E qual é o problema em gostar de outra mulher?

Sueli se calou.

— Eu quero saber qual é o problema, se é que há...

— Você está apaixonada pela Patrícia, não está? Confesse de uma vez por todas! — berrou mamãe que ouviu uma reprimenda de papai que odiava gritarias. — Se você não sabe, estou sendo o pilar moral dessa família porque é muito fácil ficar sentado no sofá vendo televisão enquanto eu faço retaguarda para uma inútil que me vem agora com essa de que gosta de mulher. Era só o que faltava para morrer de desgosto.

— Eu não estou apaixonada pela Patrícia. Eu amo a Patrícia. Eu amo e sempre amei.

— E vai quebrar a cara porque quando ela souber que você é apaixonadinha por ela, vai te deixar sozinha, ficar com nojo de você...

— E quem disse que eu vou contar?

— E aquela carta?

— Aquela maldita carta era só um desabafo, nela eu escrevi tudo o que nunca pretendo dizer a ela e a senhora não tinha o direito de ler...

— Você precisa esquecer essa moça, Lorena. Para o seu bem. — advertiu mamãe e apesar de eu ser conhecida pelo temperamento ponderado que me permitia compreender todos os pontos de vista apresentados, era difícil dizer isso ao bendito coração, afinal de contas, não me apaixonei porque quis, muito menos com o objetivo de padecer eternamente a um coração partido.

— Eu vou esquecer a Patrícia, mas não por esse motivo. Não porque preciso gostar de homens para provar a parentes que nem da minha vida participam que sou uma mulher completa, mas porque eu a amo o bastante para respeitar o fato de ela não ser obrigada a corresponder ao meu afeto.

— Então, você é...?

— A senhora é que está dizendo, então eu devo ser mesmo...

Sueli se retirou do meu quarto.


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Notas finais do capítulo

Essas discussões são tão reais que chegam a doer a alma... qual é o problema de uma mulher amar outra mulher?
Parem com esse preconceito todo!



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