Um minuto para o fim do mundo escrita por Mary


Capítulo 1
1 - 01 de maio de 2010


Notas iniciais do capítulo

No meu blog esses posts têm o emoji de coração partido, mas como isso é proibido aqui, uso a nomenclatura da data apenas.
Esse capítulo pode ser lido ao som de Maybe - Ingrid Michaelsen.



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Olhar para a janela do ônibus e respirar fundo, de modo que as lágrimas não molhassem a blusa, tampouco pesassem na alma. Não estabelecer nenhum contato visual com ela nem para guardar o retrato mental da pessoa com quem eu mais gostava de estar. Não contar nem sob decreto baixado que passei a última noite em claro, me preparando emocionalmente para o inevitável.

O percurso até o aeroporto era longo o bastante para que Patrícia e eu ainda pudéssemos emendar alguma piada interna a fim de transformar aquela despedida em algo menos doloroso para nós duas porque aquela viagem seria um divisor de águas em nossas vidas e eu precisava ter bem claro em mente que o bem querer não me tornava nem dona do meu próprio sentimento.

Olhar para ela, sim. De relance. Para ilustrar todas as expressões faciais daquele rosto que mesmo tão conhecido ainda assim me era enigmático. Quebrar aquele silêncio que nos transformava em duas meras usuárias daquele meio de transporte cujo único vínculo era se sentar na mesma fileira. Para duas moças que eram melhores amigas havia cinco anos e estabeleciam uma ótima comunicação com base no contato visual, aquele silêncio era tão profundo que se ela quisesse poderia ouvir as batidas do meu coração, o ronco das motocicletas ou mesmo os meus pensamentos, embora também estivesse ensimesmada.

Patrícia não gostava de se sentar no assento que dava para o corredor, mas concordou que daquela vez eu encostasse a cabeça na janela e embora nossos silêncios fossem respeitados, aquele a atordoava sobremaneira. Mesmo nos dias mais cinzentos que juntas passamos, uma das partes iniciava a conversa. E quase sempre era ela.

— Não gosto quando você fica quieta demais, Lola — confessou-me Patrícia, olhando para as unhas pintadas de azul metálico. E ela não gostava mesmo porque toda vez que eu me fechava não era um bom sinal.

— Você também está quieta desde que nos encontramos... — redargui, pois fiz um rabo-de-cavalo simples, calcei meu velho allstar preto que mamãe queria a todo custo jogar no lixo, vesti meu jeans de sempre, um blusão preto de moletom e saí de mochila, algo que acontecia quando eu ia dormir na casa de Patrícia, entretanto eu não gostava muito de pensar nessa parte.

Patrícia ponderou meu comentário e após alguns segundos de hesitação, desabafou:

— Tá, eu estou um pouco nervosa com o voo... — respondeu ela, olhando fixamente para o painel do ônibus.

— Relaxa, Paty! Vai dar tudo certo! — dei umas palmadinhas solidárias nas mãos geladas dela a fim de confortá-la. — Aqueles acidentes que aconteceram foram pura fatalidade. Você mesma passou todos esses anos me dizendo que era muito mais seguro viajar de avião do que de carro.

Ela aquiesceu porque não mudou de opinião.

— Eu estou preocupada é com você, Lola.

— E comigo por quê?

— Porque agora é diferente.

— Diferente? Diferente no quê?

— Das outras vezes que você precisou de mim, mesmo que eu estivesse ocupada, eu estava por aqui para te ajudar, mas e agora que estarei longe? Será que você vai ficar bem?

Fiz que sim com a cabeça, entretanto ela não se convenceu.

— Lola querida, acredite que também não será fácil para mim, mas para realizar um sonho também é preciso fazer algum sacrifício. Eu estarei embarcando para longe atrás dos meus sonhos e porque eu quero me encontrar, quero de verdade saber por qual razão estou aqui no mundo além desse sonho porque quando ele se realizar, o que irá sobrar de mim? Eu preciso me permitir saber! Como você também deveria se permitir saber...

— Logo eu?

— Logo você que vive olhando para os cantos e pensando que todas as pessoas do mundo estão te julgando...

— A gente pode mudar de assunto? — propus porque odiava quando ela expunha tão naturalmente todas as minhas inseguranças e a sensação que eu nutria, de que qualquer pessoa se me observasse nem que fosse de relance faria uma conclusão terrível a meu respeito. Porque na maioria das vezes eu me sentia tão menor que os outros (tudo bem que eu sou baixinha) que olhar nos olhos era uma atitude bastante desafiadora.

Mas havia um par de olhos para os quais eu nunca desviava e naquele momento em que estávamos conversando pela última vez, tive certeza de que mesmo que eu tentasse buscar aquele brilho em outros lugares nunca o encontraria porque parte dele eu atribuí com o passar do tempo e o restante sempre estaria ali, como às estrelas no céu, distantes e inalcançáveis.

— Só se você prometer que muda essa cara.

— Engraçadinha — murmurei. — Essa cara é a única que eu tenho!

— Lola Freitas, quando você dá para ser teimosa, não tem quem tem te aguente...

— Pelo menos não me chamou de Lorena — retesei os ombros e o fato de tê-la feito rir foi de grande valia naquele instante em que o ônibus se aproximava do aeroporto e com ele também a certeza da despedida.

— Não faltou muito — gracejou ela.

Nenhuma de nós jamais havia pisado naquele aeroporto antes. Estávamos um pouco perdidas, contudo presenciávamos cenas memoráveis de crianças que corriam para os braços dos pais e se aninhavam ali matando aquela saudade gostosa de alguém que se ama e voltou para casa, de uma família que recebia a avó e a cobria de beijos, contamos nos dois dedos das mãos a quantidade de casais apaixonados que protagonizaram beijos longos e apaixonados, no entanto haveria alguém encarando a mesma situação que eu naquele instante?

Embora o "coração" tão largamente utilizado para designar nossos sentimentos passionais fosse apenas um órgão que refletia emoções enquanto a mente atribuía a ele uma conotação sentimentalista, eu me atreveria a dizer que as batidas do meu queriam dizer algo que eu mesma fingia não ouvir ou tentava tampar os ouvidos para não deixar escapar um único sopro.

O voo de Patrícia estava marcado para sair na parte da noite, todavia ela foi advertida de que para evitar quaisquer transtornos era recomendável que chegasse ao aeroporto o quanto antes.

— Não precisa agir como se eu fosse morrer ou coisa do tipo — admoestou ela, com os olhos rasos, enxugando uma tímida lágrima com as pontas dos dedos, mas conhecendo como nunca aqueles olhos castanho-claros eu sabia que eles estavam tão rasos quanto os meus e ávidos por desaguarem nos respectivos ombros. — Eu vou te escrever!

— Promessa?

— Não posso te prometer que vou te escrever todo dia porque você já deve imaginar que esse curso tem tanto peso quanto uma faculdade integral e que talvez eu fique sem tempo para quase nada, mas vou tentar dar um jeitinho de te escrever sempre que puder...

— Só não vale mandar um cartão-postal sem nada escrito...

— Sugestão anotada! — assentiu ela, escondendo outra lágrima.

Quatro da tarde. Em ponto. Os dedos dela se desgrudavam do meu rosto, tão lentamente que a maciez do toque entoou mais dor à despedida. Ela olhou dentro dos meus olhos mais uma vez e me pediu para ficar bem, com aquela austeridade no olhar que denotava o quão honesto era aquele clamor feito enquanto tomava minhas mãos por entre as dela e as pontas do polegar acarinhavam as falanges geladas de uma alma em completo torpor. Não disse nem tchau nem adeus, apenas "até mais" e acenou sorridente, seguindo o seu caminho enquanto eu dava meia volta para seguir o meu.

Olhar para trás tornaria não aquela situação mais difícil do que já era sem o acréscimo de que quem os narra é de natureza dramática. Não olhar nem uma única vez para vê-la perdida naquele mar de gente. Para não doer ainda mais o fato de que a distância era impactante de qualquer forma. Para não ceder ao impulso de gritar a plenos pulmões tudo àquilo que proferido foi no silêncio de um olhar.

A visão estava turva porque aquelas lágrimas que acudi para demonstrar que ficaria bem decidiram me trair. Inspirei fundo, depois expirei para libertar de vez aquele desespero de uma criança assustada no primeiro dia de aula. Chorei tanto que dei graças pela chuva que caiu no meio da tarde e me encharcou durante o trajeto de volta. A parte mais triste, não minto, foi apagar o aroma agradável dela do meu corpo enquanto o chuveiro também chovia comigo, sem o menor pudor.

Sentada na cama com as pernas cruzadas, trouxe o travesseiro para o meu colo e o abracei, encostando a cabeça ali, fechando os olhos para fazer de conta que naquele instante meu mundo cabia num par de braços e eu me encaixava tão bem no ombro dela, no entanto o travesseiro não tem o cheiro do xampu nem o calor de um coração apaixonado pela vida, era tão somente um artifício para aliviar aquele aperto no peito que guardo a sete chaves e meia, como que me equilibrando no parapeito de um prédio em ruínas.

Olhar para trás, não para aquela imagem que me motivou a escrever, de uma área de embarque apinhada de pessoas indo e vindo. Olhar com o coração, com a certeza de que esse tempo em que estaríamos separadas uma da outra nos transformaria e eu não sabia dizer até a que ponto isso se tratava de uma premissa positiva ou não, porque somente quando olhei para trás tive certeza de que nem a maior das distâncias seria capaz de apagar o sentimento predominante nessa amizade: o amor.

E, não, eu não poderia deixar passar, deixar para trás, ser indiferente. Patrícia me pediu para viver intensamente e não me importar com o que as pessoas dissessem a meu respeito, para que eu cuidasse mais de mim e não desperdiçasse meus dias tentando impressionar a quem eu nunca seria boa o bastante. Na teoria era maravilhoso me imaginar ligando o foda-se para geral. Na realidade, eu me acuava.

Eu me descobri verdadeiramente eu a partir do momento em que aceitei — não sem antes me torturar por isso — que sempre caminharia em círculos enquanto não olhasse para dentro de mim e beijasse todas as feridas que acumulei ao longo de tantos anos vivendo sonhos que não eram meus de verdade porque feito isso, era hora de descobrir quais eram minhas aspirações, meus desejos mais profundos, razões pelas quais a desconstrução deixa tudo ao redor bagunçado e muitos passam a vida sem fazê-lo.

Esse mergulho requer destemor e entrega, capacidade de se analisar, se perdoar, se permitir vivenciar as emoções sem refreá-las. Até os retrocessos impulsionam o progresso, tudo é questão de interpretação. Sou grata às minhas desilusões porque se o acaso que juntou nossos destinos se ergueu sustentado em materiais resistentes, mesmo que de maneira subjetiva e questionável, interpretar as linhas tortas seria, portanto uma tarefa laboriosa e pouco prazerosa, e não é porque faz parte dessa nova jornada.

A direção era, foi e sempre será uma só. Aprender a amar. E não se aprende a amar de outra forma que não seja amando.

Que eu sempre amei minha melhor amiga não era nenhuma novidade espantosa, todavia a intensidade desse amor, sim, me tirava de órbita.


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Notas finais do capítulo

Tomara que vocês gostem da fic. ^^



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