Livros e Cigarros escrita por Martíou Literário


Capítulo 13
Capítulo 12 - Papéis e fumaça




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Jânio percebeu que o manto era de penas, tão finas e soltas como dentes de leão, por isso a forma tão exótica. Era incrível, não parecia ser costurada, como se tivessem tirado da pele, caso existisse, de um animal celestial.

Quando Jânio ergueu os olhos de volta a Adalberto, encontrou com os azuis deste. Orbes que reluziam uma mistura de zelo e intriga. Ítalo alternava, com desconfiança, o olhar entre Jânio e seu avô. Descruzava os braços lentamente à medida que o volver de seus olhos agitava naquela oscilação e começava a concluir algo.

— Quer ouvir uma história, Jânio?

— Vovô, não.

— Antes de tudo, vocês tem conhecimento da grande queima de livros na década de 30? – perguntou Adalberto, cortando o neto.

Jânio assoprou no ar a fumaça bem vista pelos olhos de Adalberto, e negou com a cabeça.

Depois de admirar a visão da fluidez da fumaça de seu colega de quarto, Ítalo voltou sua atenção para o avô. Suspirou, como se estivesse cansado e cruzou os braços. Usava uma camisa sem mangas, o fazendo parecer mais forte. Não passou despercebido pelo avô que ele tomava corpo, mais adulto.

— Na boa, vô, só sei porque sou seu neto.

— Mas eu tô doido pra saber. – acrescentou Jânio.

Adalberto retribuiu com um sorriso acalorado e começou.

— É um ritual, comum ser feito em lugar publico onde queimam obras consideradas inoportunas à ideologia social – Ítalo fez uma careta pra isso, e balançou a cabeça como se achasse as pessoas do passado, bem sem noção. – Houve em muitos países, inclusive no Brasil, E ai é que tá, o desprezo pelo conteúdo.

— ok, o quê isso tem a ver com o senhor? Nem existia em 33, deve ter nascido décadas depois disso. – Disse Jânio.

Adalberto sorriu no automático e riu em seguida, acompanhado por Jânio e jogou mais uma vez aquele olhar para Ítalo de “gostei dele” que fez o neto desviar os olhos quase como se ridicularizasse e ele prosseguiu.

— O que tem a ver, é que foi mais ou menos isso que alguém na minha época tentou imitar. Alguém por desprezo ao conteúdo, esse desprezo resultou no que aconteceu comigo. Pode ter sido em 33, mas não se esquecem da ditadura, das formas de censura, e em um dia, houve algo parecido com a queima de livros.

Ítalo e Jânio se entreolharam, confusos com aquilo e voltaram a atenção para Adalberto. Parecia ser uma história onde um autor tentasse fazer sentido em um romance sobre alguém do século vinte e um com dezenove e um historiador prestando atenção, incrédulo.

— Era no ano de 1970. – começou, parando para dar sorrir para Jânio. – E olha que eu já tinha 25 anos. – Jânio riu e ele continuou, nostálgico. - Ah, meu ano. Mesmo em meio a todo aquele conflito, nunca vai deixar de ser minha época, meus colegas, amigos, professores. Pelo menos nem todos os professores, havia um que era a exceção.

Ele parou um instante, passando os olhos pelo gramado.

— Eu tinha um amigo naquele tempo. Éramos grandes aliados, fazíamos tudo juntos. Tínhamos o sonho de mudar algo, iluminar as pessoas. Um dia conversávamos sobre isso, de fundar projetos, organizar manifestações. A professora nos interrompeu encerrando a aula e dizendo para darmos apoio a alguma manifestação que ocorreria no dia seguinte.

Na minha universidade, tinha esses professores bastante ativos na questão de ditadura, mas havia um em especial, mais quieto, mas nunca passava despercebido o ódio nos olhos cinzas dele.

Enquanto os alunos lutavam contra o fim da ditadura, o professor era contra. Além disso, tinha nojo daqueles grupinhos e daquela professora. Não gostava de nada decidido pelo povo, pois os achavam burros e hipócritas, mas não significava que acreditaria muito nesse regime.

Ele começou a parecer mais paranoico. Nem conseguia dar mais aulas. Às vezes dizia que não poderia ir e encontravam ele por lá, meio disfarçado pela faculdade. Outros diziam que ele começava a andar com uma arma. Teve um dia que foram informar a coordenação. Ele sumiu. Nesse dia, eu nem me preocupava mais, havia ignorado, achava que era só mais um doido no mundo. Naquele dia, meu amigo, Miguel, estava sonhador, parecia o começo de algo novo, além de que estávamos começando nova vida vendendo salgados na rua.

Eu fui um instante comprar algo quando ouvi uma explosão, e várias pessoas saindo pelo portão. Eu era o único que ia contra, fazendo esforço danado pra entrar. Já era um caos completo lá dentro, uma fumaça tão forte que pensei que não fosse aguentar no mesmo minuto. Havia muitas pessoas por lá. Eu... Eu estava desesperado. Por que pelo menos sabia onde era o lugar que ele estava, mas muito fumaça vinha contra mim. - Ele fechou os olhos. Parecia muito difícil contar aquilo. Ítalo sempre soube que ele revivia várias vezes aquele dia na cabeça, mas conta-lo era outra história, mais realista, como se tivesse acontecido no dia anterior. – Foi o professor. Eu tinha olhado para o lado e o vi jogando pela janela livros chamuscantes. Ele se cansou com os alunos e incendiou a biblioteca, o teatro, a sala de música. Muitos alunos tentavam correr. E eu corria em direção para salvá-lo, meu melhor amigo, que estudava como de costume no almoço. – Adalberto tomou uma pausa necessária para um profundo suspiro. Jânio e Ítalo trocaram olhares confusos. – Ele recusou meu salvamento.

Ítalo, que estava com os braços cruzados, estes desmancharam-se moles, assim como sua boca. Jânio deixou os lábios partirem sutilmente, os olhos mais ávidos.

Quando cheguei na biblioteca, ele estava deitado perto da porta, achei que já estivesse morto, mas mesmo assim me agachei para ver.

— Vai lá Adalberto, eu não vou sair daqui vivo, eu sei, todo mundo sabe a hora de ir. Ele é assim, - disse, apontando o colar para si. - azul como eu, e você, - apontou para Adalberto. - tem que encaixar sua luz verde e radiante nele. - Adalberto, depois de muito hesitar, despediu-se de seu amigo e foi cumprir seu desejo e o outro ainda entregou sua parte do medalhão.

— Saí de lá com o professor demente nos ombros e o deixei cair no pátio e despenquei de costas no chão. E lá de baixo eu vi... cair livros e fumaças. Foi tudo que eu vi. A partir dali tudo passou a ser vermelho e cinza na minha vida. E não parou por ai. Os alunos estavam certos. Ele carregava uma arma. Talvez ele não tenha tido coragem de descarregar bala em todos e decidiu no incêndio. Mas eu, ali, o intruso, fui o limite dele. E – bateu nas pernas. – deu nisso- Adalberto e ele viram folhas esvoaçando de livros e fumaça acima dele antes de apagar.

Um vento assoprou-lhes as faces, como se risse delas, tão estáticas e impactadas.

Depois de ouvir aquela história, Jânio estava admirado com Adalberto e suas virtudes. O avô de Ítalo, mesmo com passar dos anos, não parecia ter o corpo envergado, nem pela idade, tampouco pelo que lhe acontecera. Ele tinha uma vivacidade, alegria nos olhos tão agradáveis, sem falar das brincadeiras.

Ítalo olhou bem nos dois olhos, assentindo.

Houve um curto, intenso silencio entre os três.

— Então, como andou meu precioso e promissor neto? – então, simples assim, Adalberto trocou de assunto. Era coisa de família. Não tinha jeito.

— Bem, aliás, me mudei com ele.

— Falando nisso, como foi essa briga com seu pai?

Ele suspirou.

— Foi no dia do terremoto. – Então Ítalo detalhou o ocorrido naquele dia, onde tudo começou.

Adalberto, com todo o calor paternal que tinha, sorriu para Ítalo.

— Vou lhe contar outra história.

— Eu já a ouvi mil vezes. – disse Ítalo, aumentando um tom da voz. Não queria ficar mais uma vez petrificado pelas historias mirabolantes de seu avô.

— Mas quero que Jânio a ouça. – insistiu, com um tom travesso na voz.

— É ítalo, quero ouvi-la. – contribuiu Jânio na brincadeira.

Adalberto contou a história do homem fênix, um homem que tinha que passar por várias coisas a fim de obter a razão. Ítalo perguntou se o avô passou pelos obstáculos. Ele sorriu. Mas algo atrás do manto de luz nos olhos dele pareciam frustradas e tristes. Ítalo franziu as sobrancelhas, era como se o avô respondesse não. Olhou as pernas. Muita coisa talvez ele foi impedido dessa forma. Era uma maldição na verdade, por ser o homem fênix, e que seu filho teria essa maldição. Ele suspirou, triste. E olhou para o neto.

— Aquele dia. – tomou um longo suspiro. – o dia mais esquisito da minha vida. Sabe, vovô, eu sempre me senti conectado de alguma forma com a forma primordial das coisas, e pude jurar, que como eu sentia que se explodisse, Santana inteira explodiria, que foi como se o terremoto tivesse saído de mim, - sorriu em escárnio. - pelos olhos do meu pai, até ele achou, aquele dramático e exagerado. - Ele parou, percebendo ter falado muita coisa.

Adalberto, seus olhos pareciam pedras preciosas e qualquer sentimento que eles produzissem eram fagulhentos, até o momento que posou o contato pela grama, pensativo.

Ítalo curvou-se sutilmente e pousou uma mão nas costas de seu velho.

— Vovô, tudo bem?

Ele inspirou, balançando a cabeça.

— Não. - Começou, sua voz quase arrastada. Ítalo preocupou-se, com os orbes negros percorrendo cada detalhe do rosto dele. - Eu... só fiquei cansado. - e riu, divertido. - Que horror!

Era como se dentro das duas orbitas mais misteriosas que Jânio já havia visto tivessem se multiplicado, entrando em conflito umas com as outras. Que olhar era aquele de Ítalo?

— Mas o senhor nunca se cansa. – disse, baixinho e preocupado.

Ítalo bateu nas costas dele.

— Vamos, vou levar o senhor de...

Adalberto ergueu a mão.

— Não. Deixe-me ficar aqui mais um pouco. Podem ir. Preciso ficar um pouco só.

Em silêncio, ainda encarando seu velho, Ítalo assentiu. Abraçou o avô e virou-se para partir com Jânio.

Mas antes de dar o primeiro passo, Adalberto segurou seu braço. O letrado mesmo encarou Jânio, assentindo para o mesmo esperar lá na frente. Assim, ele foi e o outro foi até seu avô. Adalberto o puxou assim que havia se aproximado o suficiente.

— Nunca cometa meu erro. Salve primeiro quem é importante para você, faça isso, e se der, salve quem não mereça.

— Mas faça isso meu filho, quero que saiba, porque eu posso não estar aqui logo.

Os olhos de Ítalo se fizeram incisivos, mas logo sorriu.

— A família "pereira" sempre viveu muito.

Ele sorriu.

— Eu tenho um salão.

— O quê?

— Um salão, que um dia será seu.

— Do que o senhor está...

— Você saberá.

...

Jânio esperava pacientemente lá fora, com um cigarro aceso dentre os dentes e as mãos nos bolsos. Encostado no muro de frente para o lugar, viu Ítalo saindo e logo dobrando para a rua. O acompanhou.

— Você já morou só antes? Do jeito que me falou de você, pareceu ter sido a primeira vez.

O estômago de Ítalo pareceu revirar um pouco. Efeito do café.

— Porque é. Não morei, mas eu trabalhava na casa de uma família e, às vezes, dormia. Mas não quero falar disso.

Ele, definitivamente, queria esquecer que já viveu aquele momento.


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