As Joias do Carrasco escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 11
Corações de Pedra


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Calisto tinha sido derrubada tantas vezes que começava a se perguntar se devia continuar se levantando. Killian parou na sua frente, encarando-a com preocupação. Ela não conseguia acertá-lo de forma alguma, e, para piorar, ele sempre usava suas tentativas de atacá-lo para lhe derrubar.

— Você se machucou? Precisa de uma pausa?

Calisto respondeu com um resmungo aborrecido enquanto voltava ao treino. Apenas era frustrante não conseguir se defender sem apelar para a Joia do Espírito.

— Eu preciso! — Vermont o respondeu, do outro lado da sala, a respiração ofegante enquanto recuava dos ataques de Astra. Só estavam treinando há uma hora e ele já parecia cansado.

— É para você me bloquear, não para desviar! — Astra reclamou, quando ele novamente recuou de um soco.

— O resultado é o mesmo!

— Não é! Nem sempre você vai poder só andar para trás!

Alessa interrompeu o treino com Tony para intervir:

— Vermont, se você der mais um passo para trás eu troco de lugar com a Astra e juro que faço você se arrepender.

Os treinos tinham sido ideia dela. Há duas semanas o grupo descobrira que uma ameaça maior do que animais mitológicos espreitava do Desconhecido, um inimigo que eles ainda ignorado. Podia parecer um trabalho inútil para pessoas que possuíam magia nas mãos, mas Alessa insistiu que todos precisavam ao menos estar em boa forma, além de que, quem sabe o futuro? Talvez não pudessem contar com as joias para sempre. Astra e Tiberius ela já conhecia e não se preocupava com eles. Astra havia treinado bastante na época em que pensava em entrar para o exército e não havia perdido suas habilidades. Tiberius era de uma das grandes famílias, assim como Alessa, e naturalmente sua educação era completa, incluindo o necessário para se defender. Ele até mesmo dominava espadas. Alessa não sabia muito sobre Tony, mas pelo que viu durante as semanas, ele conseguia se defender bem.

A preocupação de Alessa era com Catarina, Calisto e Vermont. Catarina não era nobre de nascimento como o mariao, sendo filha de uns funcionários dos Magni que haviam sido executados junto aos pais de Tiberius. Nunca ensinaram a ela como lutar, nem mesmo após receber a Joia do Ar. Calisto era resistente e tinha fôlego, aguentava horas de treinos e exercícios, provavelmente pela vida nada sedentária que os andarilhos levavam, mas não fazia ideia de como se defender. Ela lutava com puro instinto de sobrevivência, sendo facilmente dominada quando enfrentava alguém que possuía técnica, como Killian. E Vermont era seu oposto: até sabia um movimento ou outro, mas tinha péssima resistência e cansava fácil. Afinal, até dois meses antes ele tinha para explorar apenas o espaço de uma cela de prisão. Era o que estava em pior forma física. No começo, ele parecia realmente indisposto para os treinos. Chegou a perguntar se o Pretor não se incomodaria de saber que o estavam treinando e ensinando a manejar armas.

"Não é meu pai que está lá fora, sou eu" respondeu Alessa. "E eu digo que vocês vão treinar comigo sim. Afinal, quanto mais vocês forem capazes de se defender, melhor será para mim e os outros." Como eram um número ímpar, e também porque queria ocupar Killian para impedi-lo de pensar sobre Faraday, Alessa o trouxe para os treinos. Assim, Alessa, Killian, Astra e Tiberius se encarregavam de instruir os demais, Calisto, Vermont, Tony e Catarina.

— Ok, vamos fazer uma pausa! — Alessa falou, para o alívio de Vermont, que durou pouco. A pausa de Alessa mal chegou a 5 minutos, apenas o tempo de matar a sede e respirar um pouco antes de voltarem ao treino. Olhando para os Magni, que tinham ficado juntos o tempo inteiro, ela zombou: — Ah, por favor, o casalzinho não consegue ficar separado por alguns minutos? Astra, vai com a Catarina. Tiberius, fique no meu lugar com o Tony. Killian, com o Vermont. Pode socar a cara dele se ele continuar recuando da prática.

— Você é uma pessoa ruim, general... — Vermont comentou com um sorriso nervoso, enquanto Alessa ia até Calisto.

Após repetir os movimentos básicos que Killian demonstrara para a nômade e garantir que ela entendeu, as duas recomeçaram a prática. Calisto não tinha a menor paciência para aquilo. Ela repetia os movimentos, sem conseguir acertar sua adversária, e conforme a frustração a tornava impulsiva, seus ataques voltavam a ser instintivos. Alessa recuou, permitindo que Calisto ganhasse espaço enquanto avançava, apenas para aproveitar de uma abertura em seu ataque e usar de uma chave de braço para imobilizá-la, forçando-a a se ajoelhar. Alessa manteve Calisto nessa posição por alguns segundos, percebendo que os outros estavam ocupados demais para prestarem atenção nelas, então abaixou o rosto ao nível de Calisto.

— Posso fazer uma pergunta?

— Pode me soltar antes? — resmungou, irritada com o próprio desempenho. — Porque assim parece um interrogatório...

— Desculpe.

Calisto se levantou, passando a mão no braço e encarando-a com curiosidade após o pedido de desculpas. Não sabia que a general conhecia essa palavra. Em vez de falar, Alessa ergueu as mãos, voltando à posição inicial, e Calisto a imitou. Pelo visto, nem mesmo aquela conversa era digna de interromper um treino.

— O quanto você é conectada com a Joia do Espírito?

Calisto, que estava para avançar de novo, parou abruptamente, surpresa com a pergunta.

— Como?

— Eu não sou cega, Calisto, você não é como os outros Portadores. Às vezes, você fala como se essa coisa estivesse viva e mostra que sabe coisas que não teria como uma andarilha saber. Alguém lhe ensinou a ler? — Alessa perguntou, recuando de um novo ataque. Se Calisto soubesse ler, poderia explicar alguns de seus conhecimentos, poderia ter aprendido em um livro ou algo assim, mesmo que Alessa não imaginasse onde os andarilhos conseguiriam livros. Mas Calisto negou com a cabeça, descartando essa opção. A única vez que tinha segurado um livro fora quando ela e o irmão não conseguiram voltar da Velha Cidade antes do anoitecer e, usando os livros encontrados em uma vitrine abandonada, fizeram uma fogueira para a noite. — Eu não sei se é por ser o maior pedaço do coração do Carrasco ou simplesmente por ser a "Joia do Espírito", mas você parece ter alguma ligação com isso.

— Primeiro: não é isso, sou eu. E todas as Joias são vivas, como é que vocês não percebem isso? Os Portadores são escolhidos exatamente por afinidade com a alma das joias... — Calisto finalmente conseguiu bloquear uma investida de Alessa e interrompeu a própria explicação com um sorriso incrédulo, mas não conseguiu se manter assim por muito tempo, sendo forçada a recuar para não acabar no chão novamente. — Então os outros também são todos meio ligados às joias. Eu acho até que a Joia do Fogo é a que mais gosta da sua Portadora.

É claro. Astra traduzia tudo que o Fogo significava. Alessa reconhecia isso, e era algo que realmente apreciava na companhia dela. Infelizmente, ela havia abandonado o plano de se alistar, e a diferença de rotina tinha dificultado um pouco que continuassem a se ver.

Sem perceber, Alessa desviou o olhar para Astra, que não estava tendo mais sucesso em instruir Catarina do que tinha com Vermont. Quando descobriu sobre a mulher do Desconhecido, foi o fato de Astra ter escondido algo assim dela que mais a magoou, mais do que a raiva bastante justificada contra os Magni-reis-do-mundo. Não esperava isso dela. Esperava ainda menos que, no dia seguinte, ela estivesse em sua porta para lhe pedir desculpas pela omissão. Tanto quanto Killian, se não mais, Astra sentia culpa pelas consequências da última missão. No momento, toda a raiva se dissipou e Alessa sentiu um aperto no peito ao vê-la daquela forma. Culpa era um veneno dos mais terríveis, e tudo que Alessa conseguiu fazer foi pedir a Astra que entrasse, para que pudessem conversar direito, sem raiva ou acusações. Desde então, estavam voltando a ser o que eram antes, e Alessa não poderia descrever o alívio que sentia com isso.

A general se defendeu com facilidade de outra investida de Calisto, voltando a atenção para o assunto.

— Mas apesar disso, é diferente com você, não é?

— Imagino que sim... Divididas, cada joia se tornou uma "alma", por isso os Portadores são tão diferentes e um não consegue usar a joia de outro. Mas a minha... — Calisto abaixou os punhos, parando com o treino. A conversa estava lhe distraindo e torcia para que Alessa não insistisse mais naquela prática. Calisto era sempre bem disposta, mas após duas semanas apanhando quase sem desenvolvimento algum, começava a se cansar. Os outros ainda estavam ocupados, então continuou, sentindo uma confiança estranha emanar da general. Jamais teria revelado tanto de si para ela no começo, mas agora não sentia nenhum traço de desonestidade nela. — Eu não estava apenas implicando quando corrigi que "isso" sou eu. É verdade, entende?

Contrariando todas as possibilidades, Alessa entendia. Tinha suas desconfianças desde quando Calisto mencionou que a tribo dos Filhos da Floresta a chamavam de Dragão. Seja por ser o maior fragmento do coração ou por ser a Joia do Espírito, ainda era a alma do dragão que a joia abrigava. Alessa não conseguia disfarçar a curiosidade, seus olhos descendo para a elevação sob a camisa de Calisto, indicando o local onde a pedra mágica havia se unido ao corpo da nômade. Pela primeira vez Alessa notou que nunca tinha visto a joia. Calisto sempre a escondia sob as roupas que escolhia para usar, sem decote algum ou colocando casacos por cima.

Ele fala com você?

— Não com palavras, é mais como ideias ou conceitos antigos que sempre estiveram na minha cabeça, sabe? Ninguém nunca me disse que eu podia fechar os portais ou que meus poderes dependem da presença dos outros Portadores, eram coisas que eu já sabia de alguma forma, entende? Eu não saberia dizer quando um pensamento é dele ou meu. Na verdade, eu não vejo um "ele"... Não é como se existisse uma barreira dizendo: "desse lado está o Carrasco, daquele está Calisto". É tudo a mesma coisa.

— Sinceramente, isso me preocupa um pouco...

Ouvindo a resposta de Calisto, Alessa podia apenas imaginar o pior. Eles tinham um inimigo incógnito que buscava conseguir algo de Calisto, cuja alma era compartilhada com a criatura mais poderosa que a humanidade já testemunhara. Que destino o futuro reservava para todos?

Mas Calisto não parecia nada preocupada. Se a pedra mágica em seu peito lhe fazia sentir algo, era apenas a segurança de que não estava sozinha, por pior que fosse a situação. De que outra forma ela teria ido até a cidade, com a seriedade e confiança de encarar aqueles que odiavam seu povo e pedir-lhes ajuda? Era por causa daquela consciência oculta que Calisto raramente se desesperava, a força que ligava a Joia do Espírito àquele coração humano.

Essa mesma força à impulsionava agora, com uma energia estranha e eufórica. Calisto sentia que algo grande estava para acontecer, e nem de longe os Portadores estavam preparados para isso.

— Os outros sabem?

— Eles ainda não me perguntaram, mas não é um segredo — deu de ombros. O silêncio se estendeu por curtos minutos, enquanto ela parecia estar em um dilema interno, então finalmente resolveu continuar: — Agora eu posso lhe perguntar algo?

— É claro.

— O que é um baile?

— Eu não pensei que o assunto mudaria dessa forma — riu, surpresa.

— Recebi um papel no meu quarto e Catarina disse que era um convite para isso. Não dei atenção, mas de repente está todo mundo falando sobre isso e eu não entendo nada. Vai acontecer algo aqui?

— Sim, é uma festa elegante que acontece todo ano como início da corrida eleitoral. Tradicionalmente, os Pretores em atividade davam essas festas para garantir que estavam em boas relações com os eleitores, mas depois se tornou um evento oficial e esperado. Meu pai era o único concorrendo nos últimos anos e, mesmo assim, o baile acontecia, porque não tinha mais esse significado político. Você vai?

— Eu preciso? Aliás, por que me chamaram pra isso?

— Todos os Portadores são convidados, e você é uma, não?

— Quer dizer que não é uma festa aberta?

— Claro que não. É só para a Cidadela, mas Tony e Astra podem vir porque são Portadores. — Calisto fez uma expressão estranha de quem não entendia o que estava ouvindo. Na floresta, qualquer comemoração era para toda a tribo, e ela não conseguia pensar em algo que explicasse porque só algumas pessoas podiam comparecer àquela festa se eram todos da mesma cidade, o mesmo povo. — Ah, menos o Vermont, é claro. Por causa dos...

— Lafayette?

Alessa ergueu a sobrancelha com curiosidade.

— Você está bem informada, não?

A conversa com a general estava surpreendentemente agradável, mas foi interrompida por um baque surdo, seguido por um xingamento. Vermont estava com a mão no rosto encarando Killian com um olhar atônito.

— Não precisava ter levado a general tão a sério! — reclamou.

— Como assim? Eu não estava brincando, Vermont. Mas já acabamos por hoje, podem ir. É melhor arranjar gelo... — Alessa se afastou de Calisto, enquanto Killian o ajudava a se levantar, segurando um sorriso nervoso. Depois que ele se afastou, Alessa se virou para o colega. — Mas o que foi isso?! Eu estava brincando, não precisava ter batido nele!

— Eu sei, foi sem querer! Eu errei! — respondeu Killian, sem conseguir conter o riso.

— Errou? — Alessa se apoiou em seu ombro, rindo também com incredulidade. — Bom, não conte para ele! Vamos ver se ele fica mais atento na próxima vez.

— Você vai ficar mais um tempo?

— Ah, não posso, vou ver o Mitchell. Ele acordou há algumas horas e a Dra. Walker vai falar com ele. Ele pode estar desorientado com tudo o que aconteceu, não quero que escute tudo sozinho.

Ele assentiu, compreendendo. Killian também gostaria de estar lá, mas a dra. Walker tinha sido bem clara, só uma pessoa por vez. Alessa notou que ele não se torturava tanto por culpa agora, com a distância de alguns dias do incidente. Killian sabia que podia ter feito as coisas diferentes, mas não se via mais como o causador do estado de Mitchell, e isso deixava Alessa aliviada. A culpa pode ser perigosa.

— Tudo bem. A academia está reservada para uma divisão daqui a pouco, acho que vou me juntar a eles.

— Eu posso ficar também? — Astra era a última dos Portadores na academia, todos os outros estavam aliviados por terem sido dispensados, e logo desapareceram do lugar, como se temessem que a general mudasse de ideia. Killian consentiu, já que, de qualquer forma, Astra tinha o direito de estar ali em qualquer horário. Ela se voltou para a general com uma desconfiança divertida no olhar. — Você e Calisto conversavam sobre o baile?

Alessa deu de ombros, só então se perguntando por que Calisto tinha tirado suas dúvidas justo com ela. Havia tantas pessoas mais "próximas" a quem ela poderia ter perguntado sobre a festa, como Vermont e Astra. Mas agora o motivo era indiferente para Alessa, que, diante de Astra, perguntava-lhe uma questão muito mais importante:

— Você vai ao baile?

Astra estreitou os olhos, como se pudesse ler as intenções por trás da pergunta de Alessa.

— Sim. Mas ainda não tenho acompanhante... — Um ligeiro sorriso ameaçou surgir, e Astra logo o disfarçou, desviando o olhar de Alessa para Killian. — Redfield! Você quer ser meu acompanhante?

— Hm? O quê? — Ele perguntou com um olhar confuso, enquanto reorganizava os equipamentos que usaria na prática seguinte. Como não tinha percebido a ardileza no olhar de Astra, estranhou um convite tão gratuito.

— Redfield estará de serviço. — Alessa respondeu.

— Eu não, fui dispensado desse dia. Eu conferi...

— Os horários mudaram — interrompeu. Killian olhou de Alessa para Astra, finalmente entendendo o que estava acontecendo.

— Ah... sim... acho que sim, então...

— Que pena... Então preciso pensar em outra pessoa. — Astra comentou em um tom de falsa decepção, encarando a general com interesse. — Sabe se tem alguém disponível?

Alessa respondeu à provocação com uma expressão pensativa, como se buscasse uma lista imaginária de pretendentes.

— Eu não sei, mas que tal... eu?

Astra sorriu, mas deu de ombros, fingindo indiferença.

— É, acho que você serve.

— Oh, que bom que consigo agradar seus altos padrões, madame.

— Não tire conclusões precipitadas, aposto que você ainda não sabe dançar.

— Nem vem, Astra, nenhuma de nós sabe dançar...

— Por isso somos o par perfeito! — Astra já atravessava a porta e levantou a mão em despedida sem olhar para trás, deixando os dois sozinhos.

— Ela não ia ficar? — Killian perguntou, assustando Alessa, que tinha momentaneamente esquecido a presença do amigo. — Aliás, achei que vocês tinham terminado antes dos exames.

— Nunca estivemos juntas.

— Tá de brincadeira? — Killian questionou. Quando Astra se planejava para a carreira militar, ela e Alessa, que não era general ainda, eram tão próximas que ninguém pensaria outra coisa. Até que Astra recuou dos planos e elas se afastaram bruscamente. — Eu tava tão afim de você na época e não disse nada porque achei que você namorava!

— Não fique chateado, Killian, você sabe que teria sido uma perda de tempo... — Alessa apertou seu ombro, mas o gesto não foi tão consolador quanto ela parecia pensar. Soltando-lhe com um tapinha gentil, Alessa se afastou. — Tenho que ir agora.

— Espere, eu não estou mesmo de serviço no dia do baile, estou? Alessa?! Eu quero ir para a festa! 

A general já desaparecia no corredor, e Killian a seguiu correndo para confirmar a resposta.

 

~*~

 

Alessa achava que a dra. Walker estava estranhamente impessoal naquele dia. Ela entrou na UTI com um cumprimento mecânico, quase sem olhar para eles, indo direto aos equipamentos monitorar a situação do paciente, e estava há dez minutos observando o que quer que fosse, tão concentrada que mal ouvia as perguntas da general. Já Mitchell não dissera uma palavra desde a chegada de Alessa.

Após o coma induzido de quase duas semanas, Mitchell estava horrível. Óbvio. Alessa não conseguia desviar o olhar da figura abatida na cama, observando desde a gaze cobrindo seu olho agora inútil à pele avermelhada em seus braços. Ela não podia ver, mas sabia que a pele estava ainda pior na barriga e nas costas, onde o traje de proteção fora rompido e a radiação provocara queimaduras severas, dificultando ainda mais a cirurgia. Além de conter os danos internos, como fechar um ferimento se a pele em volta dele estava imensamente danificada? A aparência exausta de Mitchell não era, então, surpreendente; a palidez não-natural, a pele fria quando Alessa apertou sua mão, o olhar fundo e a respiração lenta, quase despercebida. Ela não conseguia imaginar o milagre que era ele ainda estar vivo.

Finalmente, dra. Walker terminou suas observações e se aproximou da cama, com um sorriso que tentava ser gentil, mas havia uma energia mal contida por trás dele, como se ela estivesse de frente para o enigma mais interessante do mundo. Alessa sempre respeitara a doutora, a quem achava muito profissional, mas aquilo a irritou um pouco.

— Boa tarde, Mitchell, general Rower — cumprimentou uma segunda vez, confirmando que não estava atenta a eles antes, enquanto observava os papéis em uma prancheta.

Mitchell continuou em silêncio, mas se esforçou para voltar o olhar para a  médica, como se esse movimento mínimo fosse capaz de consumir o resto de suas forças. Mesmo as perguntas da médica sobre como ele se sentia foram ignoradas. Como era a primeira vez que Erin falava com seu paciente, ela fez um resumo dos danos que tinha sofrido, antes de falar dos tratamentos e consequências. Como presumido, ele estava cego do olho direito. Mitchell estava recebendo transfusões de sangue em uma frequência assustadora após a cirurgia, pois além de todo o sangue perdido no ataque, a radiação destruíra suas células sanguíneas algumas horas após a exposição, ou seja, mesmo antes da cirurgia chegar ao fim, Mitchell estava anêmico e com baixa imunidade, o que resultou em uma gama de antibióticos ministrados por Erin para garantir que, depois de passar por tudo aquilo, ele não morresse por qualquer doença menor contraída no ambiente hospitalar. Conforme eles conseguiam controlar os efeitos da radiação absorvida, a necessidade das transfusões de sangue diminuiu.

— Náuseas, dores de cabeça, fadiga e febre são sintomas esperados em razão da radiação, mas posso garantir que a situação está sob controle, e o tratamento não deixará sequelas — explicou. Por um instante, Alessa percebeu a médica vacilar, antes de continuar com as informações, tentando assumir uma aparência de bom-humor. — Já a cirurgia... ela foi bastante delicada e a recuperação levará tempo.

— Eu... ainda posso andar? — perguntou, sua voz rouca pelos dias sem uso, cada sílaba soando como um esforço. Erin hesitou apenas por um segundo, mas logo continuou, com o sangue frio dos médicos para dar respostas diretas, mesmo que difíceis.

— Mitchell, você sofreu uma lesão na coluna. Algumas vértebras se deslocaram e estão pressionando os nervos, o que compromete suas capacidades motoras e sensoriais. — O tom da dra. Walker era grave, sabia que ele já devia ter percebido que não conseguia mover as pernas. Escolhendo cuidadosamente as palavras seguintes, ela retomou. — Porém, pelo que pudemos ver, Montgomery e eu estamos convencidos da possibilidade de recuperação dos movimentos com o tratamento adequado. Estamos passando anti-inflamatórios com a esperança de minimizar a compressão na coluna. Por causa da cirurgia, você deve permanecer em repouso por um mês, no mínimo, para que eu possa avaliar então como o seu quadro progride e decidir se você está apto a começar a fisioterapia. — Apesar da notícia razoavelmente positiva, dra. Walker enfatizou mais uma vez que era apenas uma chance. — Veja bem, não há razão ainda para assumir que seu quadro é irrecuperável, mas também não há garantia de que não seja.

Mitchell assentiu vagarosamente, mas decidiu ignorar o alerta. Não era tão animador saber que poderia esperar um mês apenas para ouvir um "não". Tinha que pensar que conseguiria voltar ao que era, ou ao menos, bem perto disso. Percebendo que a médica tinha acabado suas explicações, Mitchell virou o rosto para Alessa, encarando-a com o olho bom e abrindo um sorriso cansado.

— Desculpe, general... acho melhor eu ficar afastado das missões por um tempo...

— Ah, você acha? — respondeu, com um olhar cúmplice, arrancando um meio sorriso do colega.

— Eu quero você em observação por mais uns dias, mas se terminarmos essa primeira semana sem mais complicações, você poderá sair para passar o tempo da recuperação no seu apartamento. General Rower, o horário de visitas...

— Ah, claro. Não se preocupe, eu já estava de saída.

— Na verdade, eu gostaria de falar com você antes que saia.

— Desculpe, Mitch, tenho que ir. — Alessa apertou sua mão em um gesto de afeto, despedindo-se. Ela não poderia vê-lo no dia seguinte, com certeza a Stella ou o Killian iriam visitá-lo, e o limite de pessoas ali era bem rígido. — Que bom que você está vivo.

Alessa seguiu a dra. Walker para fora da ala hospitalar, que estava quase vazia, à exceção de Lucius Montgomery, que dormia debruçado sobre a mesa, encima de alguns blocos de anotações e seus óculos. A cena não era incomum; sendo os dois únicos médicos de Aurora, revezando a supervisão da enfermaria, a rotina de Erin e Lucius era dura. E de alguma forma, Erin ainda buscava se ocupar mais, trabalhando também com suas pesquisas no laboratório de química. Às vezes o cansaço a derrubava, mas em geral ela parecia imparável.

Percebendo a postura quase efusiva da médica, Alessa fez uma careta contrariada.

— Você não está gostando disso... está, doutora?

Erin soltou um suspiro exasperado e surpreso, mostrando o quanto aquela pergunta a ofendia.

— É claro que não! O que você quer dizer?

— Desculpe... — Alessa murmurou, apertando os olhos com uma expressão cansada. Estava pensando em muitas coisas e isso a tornava irritadiça, e a aparente animação da médica diante do estado de Mitchell não ajudou muito seu humor. — Eu ando estressada e hoje você parecia tão... distraída.

— Eu jamais ficaria feliz por alguém estar passando pela situação dele. Mas você tem razão, eu estou distraída, era sobre isso que eu queria falar com você. Eu preciso que me leve até a Velha Cidade. E dessa vez eu vou sem traje de proteção.

Alessa permaneceu imóvel, os braços cruzados na frente do corpo e a testa franzida, certificando-se que tinha escutado bem. Ela encarou Erin em silêncio pelo tempo necessário para decidir que não tinha ouvido errado, quando finalmente soltou um suspiro exasperado.

— É claro que não! Você ficou louca?!

— Ainda não, mas escute...

— Você não vai lá fora sem proteção. Por Deus, o que está pensando? Você não viu o que aconteceu com o Mitchell? E nós voltamos em menos de uma hora!

— General, eu garanto que você não precisa me explicar os efeitos da radiação — interrompeu, com um tom que soou um pouco arrogante para Alessa. — Entendo suas preocupações, mas uma coisa inacreditável está para ser descoberta e eu quero comprová-la. Aquele rapaz está vivo agora e eu garanto que não foi apenas pelos nossos esforços, ele teve...

— Não diga que Mitchell teve sorte!

— Mas teve, Alessa, em cada pequeno detalhe, ele teve sorte. Órgãos vitais não foram comprometidos, aquele... galho, seja lá o que for... não acertou nada, eu juro que ele parecia ter tentado desviar da coluna também. Tudo que ele sofreu poderia ter sido muito pior, e principalmente a exposição a radiação! Eu preciso...

— Sorte seria se não tivéssemos encontrado a criatura do Desconhecido que fez isso a ele! — Alessa interrompeu, exaltando-se  um pouco no tom de voz. Erin olhou para ela com seriedade, como uma professora olharia para um aluno sem solução. Calmamente, a médica retirou do bolso do jaleco alguns objetos brilhantes.

— Também foi sorte que o Desconhecido nos deu isso.

— E o que é isso?

A general não parecia nada impressionada com as pedras que Erin lhe mostrava, uma maior, como uma maçã, de um azul opaco como quartzo, e fragmentos menores lilases parecidos com ametistas.

— O coração do ahuízotl e os estilhaços da pedra na cabeça do golem. — Vendo a interrogação no rosto de Alessa, que nem entendia o porque dela estar com aquelas coisas, Erin continuou: — Nós não conseguíamos estabilizar a situação de Mitchell, nem todas as transfusões e antibióticos estavam dando conta, ele iria morrer. Então eu lembrei o que Calisto disse sobre as joias protegerem os Portadores da radiação. Quando fiz a autópsia do ahuízotl, percebi também que a contaminação era apenas externa, sobre a pele, mas o organismo dele estava completamente limpo de radiação. Então pensei "por que não?" e deixei esses "corações" com Mitchell. Afinal, se o coração do dragão protege os Portadores, talvez o coração de outras criaturas também fizessem isso. E, em dois dias, a situação de Mitchell estava normalizada. Eu só não sei porque as Joias do Carrasco só protegem uma pessoa, enquanto essas daqui protegeram Mitchell apenas pela proximidade.

Alessa olhou com desconfiança para as pedras, lembrando-se da conversa com Calisto. Talvez aquelas pedras não tivessem alma? Assim, qualquer um que o possuísse, teria seu poder.

— E você quer testar sua teoria sendo sua própria cobaia.

— Melhor do que pedir a outra pessoa, não acha? — Erin forçou um sorriso, enquanto Alessa permanecia contrariada. — Só para você saber, estou pedindo a sua ajuda porque você já foi até a Velha Cidade, mas não estou pedindo sua permissão. O Pretor me autorizou a sair.

"É, meu pai tem tomado decisões estranhas ultimamente," pensou, sabendo das ameaças dele contra Calisto. Alessa não estava entendendo mais suas intenções, e ambos sempre foram muito abertos um com o outro. Ela ponderou a questão por alguns segundos, o rosto tenso e aborrecido.

— Já que a questão já foi decidida... eu levo você — concordou, relutante, observando o rosto de Erin se iluminar com a expectativa da experiência, como uma criança que espera receber um presente. — Mas você não vai se arriscar lá fora sem o traje de proteção. Eu vou.

 

~*~

 

O anoitecer nas Terras Obscuras tingia o céu e as águas de um tom escuro de vermelho. Khlyen estava sentado na grama diante do lago perto do castelo, segurando na mão uma fruta também vermelha, parecida com uma romã, que não estava tão interessado em comer, sabendo que não mataria sua fome. Yasune e ele precisavam de mais do que comida, e ambos evitavam ao máximo usar as pessoas com quem conviviam para isso. Ao menos não eram como os vampiros comuns, que precisavam se alimentar quase diariamente. Felizmente, também não era sangue a energia vital que consumiam.

O olhar distante e concentrado era suficiente para que a maioria das pessoas o evitasse, mas, ainda assim, uma sombra ofuscou a pouca luz do dia ao se aproximar. Khlyen não olhou para ele. Sabia que era Vanta'Kyn, o espião da corte. Só ele era silencioso o bastante para se aproximar sem ser percebido.

— O humano capturado está morto.

— Isso é óbvio — falou, mordendo a romã, enquanto tirava do interior do casaco uma faca padrão militar do exército de Aurora, com a customização de uma pedra amarela brilhante presa no cabo. Sem muito interesse, jogou-a para cima e Vanta'Kyn a pegou no ar, analisando o objeto. — Eu não permitiria que ele continuasse com isso. Ele ia morrer, cedo ou tarde.

— Queria saber como eles descobriram sobre os corações em tão pouco tempo... — murmurou. Khlyen deu de ombros, sabendo a resposta: Wynnivher. Os humanos precisavam sobreviver nas Terras Obscuras e ela mostrou o que precisavam fazer. — De qualquer forma, ele não falou onde Liam se esconde.

O olhar de Khlyen endureceu, mas Vanta'Kyn não sentiu seus efeitos, pois o Rei Obscuro ainda não levantara o rosto durante aquela conversa.

— Por que estou ouvindo isso de você e não de Ydder e Opheli?

Vanta'Kyn apontou para a parede de pedras há alguns metros de distância, devolvendo-lhe outra pergunta:

— Por que você está escondido aqui há horas? Driya só faltou mover todos os tijolos do castelo procurando por você. Ela e Yasune estão discutindo os termos do retorno para as Terras do Sol.

— Yasune não deve me querer por perto agora, ou teria mandado um brownie¹ me chamar.

— Eu chamei! — Emory surgiu do nada ao lado dele, o espectro esbranquiçado jogando uma luz fraca sobre a grama e o lago. Brownies não possuíam um corpo como as outras criaturas, mas eram bem vivos, como demonstrava o coração flutuando no centro da imagem ilusória, uma pequena pedra branca brilhante. As linhas luminosas que definiam seus traços dificultavam interpretar suas expressões, mas ele parecia irritado com a difamação que Khlyen lançava. — Duas vezes, senhor! Esta é a terceira, a senhora Yasune...

— Certo, certo. Diga a ela que estou aqui — respondeu, com um gesto indiferente para que Emory se acalmasse. O espectro se dissolveu com um resmungo nada gentil. — Eu odeio brownies...

— Eles podem lhe ouvir.

— Espero que sim.

Os espíritos domésticos não eram afetados pelas habilidades psíquicas de Khlyen, portanto não o temiam. Costumavam falar exatamente o que pensavam para Khlyen e Yasune. Enquanto adoravam sua irmã gêmea, eles não suportavam Khlyen, e Emory, o chefe, era o menos simpático, isto é, até Yasune aparecer. Então ele se tornava todo formal e educado. Provavelmente porque Yasune, que apreciava todas as coisas em ordem, era quem mais oferecia presentes para eles. Brownies faziam todos os serviços domésticos em troca dos presentes deixados nas bandejas pelo castelo. Talvez não gostassem de Khlyen porque uma vez ele tropeçou em uma das bandejas sem querer.

— Então, o que você queria me dizer? — Khlyen não precisou olhar para o elfo sombrio para perceber sua pergunta não dita. — Você foi atrás de Ydder para saber do humano porque queria começar uma conversa de alguma forma, não é? Pode dizer.

— Os lobos estão inquietos.

— Aregonde está — Khlyen corrigiu. Desconfiava que ela se tornaria um problema.

— Se ela está, eles estão. Aregonde é a peeira² deles. Mas eu não diria que as dúvidas dela são infundadas, estamos arriscando demais dessa vez. Você sabe que apenas adiamos o inevitável.

— Eu aprecio tanto quando as pessoas vem me dizer que eu estou errado sem oferecer um plano melhor — respondeu, terminando a romã e olhando para Vanta'Kyn pela primeira vez, abrindo um sorriso sarcástico.

— É bom ver que seu humor melhorou. Eu prefiro conversar com meu amigo do que com o "Rei Obscuro". — Vanta'Kyn riu, aproveitando para se sentar na grama também, sob o olhar sério de Khlyen. Sério, porém, dessa vez, inofensivo. Khlyen manteve a resposta apenas para si: ele também preferia ser o amigo do que o Rei Obscuro. Era difícil ser as duas coisas. — Aregonde sabe que, assim como os humanos morrem aqui, nossa vida lá não seria longa.

Khlyen abriu os braços assumindo uma postura relaxada.

— Certo. Me dê uma alternativa, só uma, que não acabe adiantando a morte de todos nas Terras Obscuras. Garanto que descartamos o meu plano se você sugerir algo melhor. — Como esperado, ele não recebeu resposta. Vanta'Kyn abaixou o olhar para a grama, pensativo. Estudar mais à fundo a magia para tentar impedir o Colapso parecia uma esperança infantil. Khlyen suspirou, decepcionado. Mesmo sabendo que era impossível, por alguns segundos ele torceu para o elfo viesse com uma resposta milagrosa. — Estamos ficando sem tempo, Vanta'Kyn. "Alguém" disse aos invasores humanos como criar armas com os corações do nosso povo. Driya viu um golem nas Terras do Sol. É lento, sim, mas a força de Wynnivher está voltando.

— Eu já ouvi isso antes. "Nós temos que agir, eu tenho que agir."

— Eu tenho que agir! E eu vou. — Khlyen se defendeu, com um suspiro pesado, apontando para a faca nas mãos de Vanta'Kyn. — Faremos algo tão terrível quanto os humanos fazem.

— Talvez não. Mireswyan saberia explicar melhor do que eu, mas condutores vivos de magia são capazes de aguentar grandes correntes de energia mágica quando cooperam voluntariamente.

Khlyen negou com a cabeça, cético.

— Eu não vou conseguir convencer o Dragão.

— "Você não é muito diplomático mesmo."

— O que disse? — Khlyen questionou, surpreso com a franqueza. Vanta'Kyn apontou para um ponto atrás dele, enquanto se levantava.

— Foi o que sua irmã falou. Se me der licença... — E se retirou, seguindo o mesmo caminho pelo qual as duas se aproximavam.

Khlyen virou o rosto, vendo Yasune e Driya se aproximarem. Yasune havia traduzido o final da conversa para Driya enquanto caminhavam.

— Eu ouvi dizer que vocês estavam brigando.

Driya respondeu com gestos enérgicos que mesmo Khlyen teve dificuldade de entender, indicando a irmã de modo irritado: — Yase está sendo mandona. Ela não quer que eu volte para as Terras do Sol.

— Eu também não quero — confessou Khlyen, — mas é preciso.

Driya encarou Yasune, estendendo a mão para ele em um gesto dramático como quem diz "Viu só? Ele entende!"

— Não sozinha! É tão difícil entender? Eu não quero que você vá sozinha. Leve um grupo, uns dez soldados!

Driya assentiu de modo cínico: — Sim. Isso seria muito sutil.

— Esqueça o sutil, Driya, eles já sabem de você! Você voltou ferida e também feriu um deles. Toda vez que saírem, eles estarão atentos procurando por você!

— Eu posso me defender de humanos! E aquilo foi só um arranhão.

— Não são só humanos, Driya... — Khlyen falou, entendendo a preocupação de Yasune. — São cinco usuários de magia. Um grupo inteiro de soldados com armas tão letais quanto as de Liam. Eu mandei você sozinha porque eles não estavam esperando por você, não esperava que vocês se encontrassem. Mas agora, eu não mandaria ninguém sozinho nesses termos. Eu não iria sozinho.

— Obrigada! — Yasune expressou, como se estivesse repetindo aquilo há horas. Como a paciência não era seu forte, podiam estar discutindo apenas há alguns minutos mesmo. — Ah, ele você escuta?

— Ele não é superprotetor.

— Eu não sou também! Dez soldados são uma quantidade razoável...

— Três — corrigiu Khlyen. Yasune o encarou, atônita.

— Três?!

— Não é porque nos descobriram que precisamos fazer uma passeata na frente deles.

— Concordo, mas três?

Driya abriu um sorriso arrogante, apontando para a irmã: — Superprotetora.

Yasune bufou, impaciente.

— Ah, vocês façam o que quiserem!

Driya se sentou ao lado do irmão, tentando continuar a conversa que estava acontecendo antes delas interromperem: — Você falou de convencer alguém? Deixe-me tentar!

— Aí você já está pedindo muito...

— Precisamos falar com eles mais cedo ou mais tarde! Não posso manter os portais abertos por tempo suficiente de outra forma. Eles estão assustados com o que já enfrentaram, vão fechar todos os portais que descobrirem.

— Não! Você não pode ir até eles, não depois de ter ferido um soldado!

Seu tom aumentou, tão inflexível quanto sua decisão. Mas havia algo mais em sua voz e seu olhar, algo que fez Driya estremecer por dentro. Um misto de sentimentos lhe invadiu, sentimentos que ela não tinha um momento atrás. Instintivamente, Driya fechou os olhos, se concentrando da forma que havia aprendido através dos anos, afastando todo o medo que sabia que era falso, então pôde respirar fundo, sentindo o alívio de não se submeter, e abriu os olhos, irritada. Khlyen estava hesitante.

— Desculpe, não foi minha intenção...

Driya interrompeu as desculpas com um soco forte em seu ombro e, com uma seriedade que raramente mostrava, ela apontou o dedo no rosto de Khlyen em um alerta, a raiva fervilhando dentro de si: — Jamais tente isso de novo! Eu sou sua irmã, fiquei fora da minha cabeça.

Driya se afastou, caminhando com passos pesados de volta para o castelo.

— Mas ainda é um "não" para... Ah, esquece. — Khlyen desistiu, lembrando não adiantava gritar para uma pessoa surda. Dar as costas para alguém era o equivalente de Driya a fechar a porta na cara de uma pessoa inconveniente, sua forma de dar um fim a uma conversa.

Khlyen suspirou, culpado. Realmente tinha sido sem querer, mas não significava que tinha sido inútil. Mesmo aqueles poucos segundos lhe garantiram alguma saciedade, e ele já se sentia menos disperso. Passara os últimos dias em alerta com cada pessoa que encontrava, e perdia o controle justo com Driya... Esperava que ela não ficasse magoada por muito tempo, mas sabia que ir atrás pedir desculpas apenas a deixaria mais irritada, então continuou ali, contemplando o lago escuro, agora que a luz do dia tinha acabado. Khlyen ainda não tinha atravessado um portal para as Terras do Sol. Havia muito o que fazer nas Terras Obscuras antes que o dia chegasse. Mas ouvia atentamente todas as pessoas que tinham atravessado por ordem sua: Driya, Vanta'Kyn, Mireswyan... Novamente sozinho, Khlyen se pegou imaginando um mundo onde o céu e o mar não fossem tingidos de sangue.


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Notas finais do capítulo

A título de curiosidade, a parte sobre Mitchell foi inspirada nesses dois links:
O que a radiação nuclear faz com seu corpo: https://gizmodo.uol.com.br/o-que-a-radiacao-nuclear-faz-com-seu-corpo/
O que a exposição à radiação faz com o corpo humano (CUIDADO. Imagem forte): https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2015/07/o-que-exposicao-radiacao-faz-com-o-corpo-humano.html
¹ Brownies: Espírito doméstico do folclore da Inglaterra e Escócia, o brownie habita casas de família, onde executa labores domésticos enquanto seus habitantes dormem. Tais tarefas são feitas em troca de presentes ou comida. Se oferecido pagamento ou roupas, o brownie, ofendido, abandona a casa.
² Peeira: Peeira ou fada dos lobos é o nome que se dá às jovens que se tornam guardadoras ou companheiras de lobos. Elas são a versão humana e feminina do lobisomem e fazem parte das lendas de Portugal, Europa e da Galiza. A peeira tem o dom se comunicar e controlar alcateias de lobos. Uma alcateia que possuir uma peeira é uma alcateia poderosa, pois além do dom de calma ela comunica com os lobos e lobisomens, até mesmo de curá-los. Ela não muda de forma.

Descobri que a página da Wikipédia que me ajudava com as criaturas saiu do ar, agora eu não lembro o nome das criaturas que Khlyen, Yasune e Wynnivher são -.- Então vamos improvisar, né :v