As Joias do Carrasco escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 10
O Interesse de Alguém.


Notas iniciais do capítulo

Olá de novo e boa leitura!
Aviso rápido: Vejo bastante as pessoas colocarem falas de personagens surdos entre aspas, mas eu optei por deixar em travessão mesmo as falas da Driya, achei mais agradável para a leitura e também porque não deixa de ser uma fala, né.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/760254/chapter/10

Alessa permanecia na ala médica, assim como metade dos soldados do grupo especial. Há quatro horas que a Dra. Walker e Dr. Montgomery estavam na sala de cirurgia, junto a alguns enfermeiros e seus três estudantes. Walker tinha parado sua pesquisa imediatamente, deixando os laboratórios de química como estavam, para dirigir aquela cirurgia. Antes de entrar na sala, ela tinha informado que poderia demorar, mas Alessa e os outros não conseguiram ir embora. Estavam todos chocados e aterrorizados, tão dispersos nos próprios receios que nem reconheciam a presença uns dos outros. Killian estava sentado no chão, apoiando as costas na parede. Seu olhar parecia perdido, ele nem reagia quando alguém cruzava o corredor à sua frente. Alessa se preocupava com ele. Tinha sido o primeiro a encontrar Faraday, sozinho, então ela podia imaginar o pânico de não saber o que fazer. Mesmo ela tinha hesitado ao ver a cena mais horrenda que já presenciara, e, se tinham agido rápido o suficiente, era graças ao sangue frio que Alessa não imaginava que tinha e que a permitiu pensar rapidamente no que fazer.

— Você não está se culpando, está?

Killian olhou em sua direção, mas seus olhos pareciam vazios. Alessa sentou-se ao seu lado no chão.

— Eu subi na frente, Alessa... — murmurou, sua voz denunciava uma falta de energia sobrenatural. Ele estava esgotado, física e mentalmente. — Não sei o que estava pensando. A prioridade era Sybeal, eu devia ter entendido quando ouvi os tiros, deveríamos ter saído do prédio, não ido em direção a... aquilo. O que eu esperava...?

— Pare com isso, Killian! Não foi culpa sua de maneira alguma, você tomou a decisão que parecia certo no momento.

— O Sr. Magni disse que ela era perigosa... Eu subi com apenas um soldado e uma civil. Não tente me poupar, Alessa, eu não pensei direito e Mitchell pode morrer por isso. Não quero ser poupado da responsabilidade. Eu ainda tentei impedi-lo de atirar... porque aquilo parecia só uma pessoa.

— Eu não estou poupando você. Qualquer coisa capaz de fazer isso com alguém só pode ser um monstro. Nós podemos tomar as melhores decisões, mas, no final, não podemos controlar o que monstros fazem. Não ouse se culpar. Aquela criatura fez isso com Mitchell, não você.

— Eu jamais imaginaria... — Seu tom aéreo retornou para combinar com o olhar perdido.

Jamais pensaria que aquela mulher fosse uma ameaça tão grande. Apesar da aparência que claramente denunciava o lugar de onde vinha, os cabelos verdes e as roupas incomuns, Killian julgara que fosse inofensiva, ou ao menos uma oponente razoável, mesmo quando testemunhou a estranha magia parar as balas no ar. Então ele encontrou Mitchell desacordado, os braços pendendo ao lado do corpo parcialmente suspenso por uma árvore, cujo tronco de 6 cm de diâmetro perfurava seu estômago e saía pelas costas, sangue escorrendo pela casca. Um galho retorcido havia crescido a ponto de atravessar o osso zigomático e invadir a órbita do olho direito. A imagem não saía de sua mente, como também não sairia o desespero de, após constatar que ele estava vivo e Sybeal correr em busca da general, tentar segurar seu peso enquanto o tronco da árvore era cerrado em cima e em baixo para que pudessem movê-lo de volta para a cidade. Alessa não permitiu que retirassem o tronco de dentro dele, o que provavelmente impedira sua morte por tempo suficiente para que chegassem a Aurora. Agora era com os médicos.

Enquanto pensava em algo que pudesse afastar Killian de seu torpor, Alessa viu Veracruz entrar na ala com um semblante preocupado, e apenas pela chegada dela soube que os Portadores tinham retornado.

— Eu vim assim que pude — informou, entregando um copo de café para Alessa e Killian, que agradeceu em voz baixa, mas o deixou no chão ao seu lado sem nem tocar na bebida. Alessa se levantou, pegando o café.

— Por favor, Stella, diga que tudo deu certo na volta.

— Sim, sim, tudo correu bem, a nômade fechou o portal. Como ele está?

— Vivo, ainda... — suspirou, bebendo um gole revigorante. Não tinha percebido o quanto precisava disso. O olhar apreensivo de Stella, no entanto, logo a fez se retratar. — Desculpe, isso foi insensível. Só não quero presumir o pior...

— Não é isso. Eu só... — Alessa a encarou, instigando-a a falar o que quer que estivesse hesitando dizer. Stella abaixou o tom para não ser ouvida pelos outros. — Desculpe, general, mas eu não entendo porque não nos avisou.

— Sobre o quê?

— Sobre ela! A mulher do Desconhecido, por que não nos avisou?

— Mas do que você está falando? Como eu poderia...

— Eu ouvi os Portadores conversando, já encontraram ela antes, então vocês sabiam disso e nos deixaram ir lá para fora sem saber quais eram os riscos reais. Por quê, general? Poderíamos estar preparados se soubéssemos dela.

Alessa a encarava boquiaberta, a confusão inicial finalmente começando a fazer sentido. Não era possível, devia estar cansada demais para entender direito.

— Repita isso. Repita o que você falou.

— Então você não sabia?

Ela parecia aliviada de saber que pelo menos a general não tinha colocado eles em uma situação de risco propositalmente. Mas Alessa não permitiu que a conversa continuasse, apenas virou as costas e saiu andando firme em direção a ala dos Magni.

 

 

— Magni! Abram a porta!

Alessa praticamente esmurrava a porta metálica chamando pelo casal. Sabia que eles não tinham empregados, então podia gritar diretamente por eles. Precisou bater apenas um pouco para que Catarina abrisse a porta, estranhando aquela confusão.

— Qual é o problema... — Alessa não esperou ela terminar de falar, atravessou a entrada para o hall, enquanto Tiberius também se aproximava.

— General Rower, o que faz aqui?

— Por favor, me diga que eu entendi errado e que você não escondeu deliberadamente uma informação importante como a existência de uma mulher do Desconhecido rondando a Cidade Aurora!

A ligeira reação no rosto de Tiberius mostrou que ele entendia o que havia acontecido, que o seu segredo não era mais um segredo. No entanto, ele logo assumiu novamente a máscara.

— Você entendeu errado.

— Como você ousa! Qual o seu problema, Magni, como pôde esconder isso de mim?

— Alessa, por favor, mantenha a calma. Você está na minha casa. — Catarina pediu.

— Manter a calma? — Alessa riu com incredulidade, olhando para o pingente branco da Joia do Ar no pescoço de Catarina. — Isso foi extremamente irresponsável da parte de vocês... Não são só vocês nessas missões! Sequer perceberam isso? Eu escolto civis lá fora, Magni, e também estamos lá para ajudar vocês se necessário. Como podem ter tão pouco respeito pela vida dos meus soldados e pela minha a ponto de esconder uma ameaça dessas? — O casal permanecia calmo, no máximo Catarina parecia apreensiva com sua raiva, enquanto Alessa, agitada como estava, andava de um lado para o outro na frente deles, gesticulado energicamente a cada frase, e lhe incomodava ainda mais ver que era a única afetada daquela forma. Alessa suspirou, tentando se conter. — Vocês podiam ao menos ter a decência de demonstrar culpa...

— Entendo sua indignação, mas esconder isso parecia a melhor escolha...

— Você é um maldito robô, Magni! Não ouse tentar me convencer de que seus motivos eram bons! — Ela o interrompeu. — A melhor escolha... Bom, meus parabéns, escolhas têm consequências, e não é você quem está passando por elas! Mitchell está para morrer. Ele com certeza perdeu um olho e não sabemos se ainda conseguirá andar. Meu melhor amigo acha que liderou ele para isso. E talvez nada disso supere o problema da radiação a que ele ficou exposto todo o tempo até ser resgatado, porque nós não temos as porcarias dessas pedras mágicas nos protegendo quando vamos lá fora com vocês! — Alessa agarrou o pingente de Catarina para arrancá-lo, porém mal havia encostado nele e Tiberius segurou seu braço com firmeza. Alessa suspirou um riso irritado, alternando o olhar de Tiberius para Catarina. — Finalmente alguma reação...

— Solte, general — pediu Tiberius, mas seu tom era um alerta. Catarina pôs a mão no ombro do marido, lançando para Alessa um olhar significativo.

— Eu acho melhor nenhum de nós se exaltar.

Alessa largou a Joia e puxou o braço para que Tiberius a soltasse. Catarina continuou:

— Nós apenas não avisamos você porque ela, seja lá quem for, nos ajudou na missão anterior e tememos que você seria hostil se soubesse.

— Ah, por Deus, e eu estaria errada?!

— É evidente que cometemos um erro de julgamento — admitiu Tiberius, — e sentimos muito pelo resultado, mas no momento decidimos por isso.

Se ele se recuperar, você irá até a ala médica dizer que apostou a vida dele num palpite? — Alessa questionou, recebendo apenas o silêncio como resposta. Ela começava a sentir a raiva ir embora, mas a revolta ainda estava presente. Ela encarou Tiberius, apontando o dedo quase em seu rosto. — Escute aqui, vocês não têm o direito de esconder nada de mim sobre essas missões. Nada! Se essas missões estão acontecendo é porque eu insisti ao Pretor, porque isso é algo importante. Mas se eu souber que vocês estão se reunindo para discutir pelas minhas costas questões que podem trazer risco aos meus soldados, podem esquecer, eu acabo com tudo!

Tiberius recuou um passo. Em seus modos contidos, era a melhor forma de afastar Alessa sem recomeçar o desentendimento entre eles. Tiberius abriu a porta que separava o hall da sala principal e do resto da habitação dos Magni.

— Já que colocou nesses termos, general, acho melhor você entrar.

Alessa demorou alguns segundos para compreender, então atravessou a porta, encontrando os demais Portadores das Joias na sala dos Magni, encarando-a com expressões envergonhadas ou confusas, o que indicava que tinham ouvido toda a discussão.

"Tem um homem morrendo por causa de um segredo, e aqui estão eles, em outra reunião secreta!" pensou, mas não foi o que disse. Alessa voltou-se para Tiberius, as sobrancelhas franzidas e braços cruzados em indignação.

— Então, quando disse que "decidiram", você quis dizer que seis pessoas concordaram que esconder a existência daquela mulher era uma boa ideia?

— Quatro — corrigiu Astra, hesitante, pois também acreditava que o estado de Faraday era em parte culpa deles. — Calisto e Vermont não estavam presentes.

Vermont, na verdade, nem tinha percebido que era um segredo. Afinal, se fosse um segredo, não deveriam ter conversado sobre isso na frente da soldado que Alessa deixara para trás. Será que só ele tinha percebido Veracruz por perto?

— E você concordou com isso... — Alessa murmurou, decepcionada, fazendo Astra desviar o olhar. A general balançou a cabeça, afastando o assunto. Reclamar não mudaria as coisas para Faraday e eles já tinham entendido as consequências de sua omissão. Se estavam reunidos, então tinham algo para discutir. Ela se sentou no sofá, encarando os demais com expectativa. — E então?

Apesar do clima estranho, Tiberius se sentou ao lado de Catarina, de alguma forma atraindo a atenção e recuperando o controle da reunião.

— Então, Calisto... Nós estávamos esperando que você decidisse contar sozinha, mas eu acho que é hora de você explicar algumas coisas para nós.

— Tudo bem... — Calisto murmurou, estranhando o assunto repentino. Inconscientemente, pôs a mão sobre a Joia do Espírito em seu peito, lançando um olhar inseguro para Alessa, antes de voltar a atenção para Tiberius. — O que quer saber?

—  No dia que você chegou aqui, falou que tinha vindo pedir nossa ajuda porque tinha visto algo. Acho que depois de hoje, é importante saber o que exatamente você viu.

— Com certeza tem algo maior do que animais monstruosos no Desconhecido. — Tony falou. — Existem pessoas, pessoas que sabem sobre nós. Você sabia disso quando veio para cá?

— Eu desconfiava... Vocês sabem que lá fora nós somos várias famílias, que vocês chamam de tribos, e não um povo único. Mesmo assim, geralmente não somos agressivos uns com os outros a menos que seja para nossa defesa. Mas existe essa família... nós não nos aproximamos deles, não apenas a minha família, ninguém. Eles se chamam de Filhos da Floresta. Nós os chamamos de Monstros. — Calisto tamborilava os dedos na própria perna, sem encarar a ninguém. Os outros entenderam, com surpresa, que Calisto estava mais do que apreensiva. Ela tinha medo. Após alguns segundos de hesitação, ela puxou a gola da camisa que usava, deixando à mostra a longa e irregular cicatriz de faca que começava na base do pescoço e seguia até o fim do ombro direito. — Eu encontrei com eles uma vez, quando tinha dez anos.

Astra reprimiu um suspiro perturbado, observando a cicatriz. Vermont também parecia chocado. Ele já sabia das marcas de Calisto, mas não conhecia as histórias por trás delas, e pensar que alguém faria aquilo com uma criança era absurdo. Os outros também se compadeciam, mas havia mais frieza em suas reações, a fim de não atrapalharem a explanação da nômade.

— Não foi nada legal, como podem imaginar. Na época eu ainda não entendia completamente a minha "situação", mas sabia que o ataque não tinha sido gratuito. Eles ficavam me chamando de "Dragão", então sabiam sobre mim até mais do que minha família.

— E você acha que alguém contou para eles sobre você? Alguém do Desconhecido?

— Eu não sei, Tony, acho que sim.

— Esses Filhos da Floresta são humanos?

— Eles já foram humanos. Eles não são como nós, que apenas nos protegemos das mudanças provocadas pela chegada do Carrasco. Eles abraçaram as mudanças, aceitaram a interferência do Desconhecido.

— Como isso é possível...? — Catarina deixou a pergunta no ar, ao que Calisto respondeu com um ligeiro dar de ombros, sem explicação. Outra pergunta surgia para Catarina, que não conseguia parar de imaginar sobre suas origens desde que soube das ameaças de Rower contra Calisto. Será que era deles que ela vinha? A ideia fez um arrepio subir por sua coluna. Ainda assim, se forçou a perguntar: — Onde eles vivem?

— Eles viviam na Nascente quando me pegaram, mas algo aconteceu alguns dias depois que fugi, parece que teve um desmoronamento na montanha e eles saíram. Não sei onde vivem agora.

Tiberius ouvia atentamente, mostrando um interesse incomum à sua personalidade para quem não o conhecia bem. Catarina, a única pessoa que realmente o conhecia, sabia o quanto o imprevisível era aterrorizante para os dois, e seu marido evitava o máximo possível dar chance ao imprevisível. Ouvindo as respostas de Calisto como quem analisa um testemunho, quase conseguia observar seu cérebro trabalhar. Por fim, Tiberius se inclinou na cadeira com as mãos entrelaçadas, encarando Calisto.

— Eu preciso que você seja sincera, Calisto. Você já falou com alguém do Desconhecido antes?

Ela franziu as sobrancelhas, estranhando a pergunta.

— Não... Por quê?

— Eu consigo enxergar quatro eventos relacionados — disse Tiberius, contando nos dedos enquanto listava os tais eventos. — Uma andarilha invade a Cidadela e rouba a Joia do Espírito para salvar você, um bebê doente; um grupo de pessoas claramente em contato com o Desconhecido tenta matar você quando reconhecem que você carrega o coração do Carrasco; logo após isso, um desmoronamento força esse grupo a se afastar de você. General Rower, quão frequente são os desmoronamentos na montanha?

— Nada frequentes — respondeu Alessa. — Na verdade, eu só me lembro do de 15 anos atrás... Esse que ela falou.

— Por fim, em uma luta com uma criatura poderosa, a mulher do Desconhecido, ela usa seus poderes para isolar você e afastá-la da batalha. Se ela queria o portal aberto, poderia ter lhe matado de uma vez, mas não fez isso. Ela protegeu você enquanto nos atacava.

— Aonde quer chegar? — Calisto perguntou, curiosa. Nunca tinha pensado sobre aqueles acontecimentos dessa forma. Quando Tiberius falava, parecia óbvio que havia algo por trás.

— É só um palpite, mas me parece que alguém no Desconhecido tem interesse em você.

Por alguns momentos, ninguém soube o que dizer. Parecia uma conspiração absurda, mas, ao mesmo tempo, fazia algum sentido.

— É claro! — Alessa assentiu, impressionada. Parecia até mesmo ter esquecido a raiva de antes. — Como uma andarilha saberia que a Joia do Espírito salvaria sua filha? Como ela teria essa ideia? Alguém falou para ela, alguém de lá, e a ensinou como colocar essa coisa em você. Você pode até nunca ter falado com alguém do Desconhecido, mas com certeza sua mãe falou.

— Vocês não acham mesmo isso, acham?

— Então o quê? — Vermont perguntou, os olhos brilhando com a compreensão que começava a surgir de toda aquela situação confusa. — A mesma pessoa ajudava os Filhos da Floresta, e foi assim que descobriram sobre Calisto?

— Quando os Filhos da Floresta ameaçaram Calisto, essa pessoa os puniu, forçou eles a recuarem — Alessa trabalhou a ideia. — E pelo que Tiberius disse sobre a missão de hoje, a mulher do Desconhecido é essa pessoa ou a conhece. Seja lá por qual motivo, essa pessoa quer você viva.

Calisto abaixou a cabeça, tamborilando os dedos no assento do sofá. Tinha escondido algumas pequenas coisas dos outros Portadores que causaram atritos antes, então como eles reagiriam às grandes coisas que ela escondia? Quando finalmente falou, sua voz era tão baixa que parecia um fio frágil cortando a sala.

— Essa pessoa... seria o Rei Obscuro?

— Quem?!

— Eu não o conheço, mas ouvi esse nome. Logo antes de eu vir para cá. Eu e meu irmão estávamos na floresta e pela primeira vez em anos nós vimos os Monstros novamente, os Filhos da Floresta. Nos escondemos atrás de um barranco e escutamos eles conversarem com alguém que parecia ainda menos humano do que a mulher de cabelos verdes. Parecia um homem alto e magro, a pele era púrpura, e os cabelos, brancos. Ele disse algo como "dissidências não serão toleradas como antes, então sigam exatamente as palavras do Rei Obscuro. Estamos ficando sem tempo." Não lembro direito. Os Monstros falaram o nome dessa pessoa, mas era estranho e eu não compreendi. Foi isso que eu vi e que me fez vir aqui. Eu não tive boas impressões dessa conversa.

Calisto ainda estava cabisbaixa, esperando que os Magni ou Alessa ralhassem sobre como não deveria ter escondido isso deles, porém talvez eles não acreditassem antes de saber sobre a mulher do Desconhecido e saber que há mais do outro lado do que criaturas irracionais.

— Eu temo que isso esteja se tornando algo maior do que o que somos capazes de lidar... — Catarina quebrou o silêncio ao murmurar o que todos pensavam.

 

~*~

 

O sol brilhava solitário sob o céu vermelho claro, um dia agradável demais para ser perdido na cama, mesmo que ombro enfaixado reclamasse a cada movimento. Foi o que Driya disse para a curandeira que se responsabilizara por ela, que não queria deixá-la se levantar. Mas em vez de aproveitar o dia ao ar livre, a hamadríade se dirigiu ao salão, passando no caminho pelo campo de treinamento onde jovens soldados testavam suas habilidades lutando uns contra os outros. Um deles se permitiu distrair pela sua presença, defendendo-se de modo relapso do parceiro de luta. Driya não o conhecia, mas sorriu para ele, que acenou de volta. O parceiro aproveitou a chance e acertou suas pernas, derrubando-o. Eles deviam ser amigos, porque a primeira reação do vencedor foi olhar do colega para Driya e rir, dizendo alguma provocação que também expressou na língua de sinais, para que Driya entendesse mesmo daquela distância.

— Que vergonha, derrubado na frente da princesa!

O perdedor empurrou o colega para que pudesse se levantar, fingindo irritação, mas realmente parecia incomodado quando olhou novamente para Driya, que abriu um sorriso tranquilizador e perguntou ao vencedor, antes de continuar seu caminho: — Acho que foi minha culpa. Que tal dar uma revanche para ele?

— O que ela disse? — O mais novo perguntou, depois que Driya saiu.

— Que você precisa se concentrar na luta, que eu deveria te derrubar de novo e que você não tem chance com ela porque ela me acha mais bonito.

— Não disse nada!

— Quer perguntar pessoalmente? Eu posso ir lá chamá-la...

Os amigos discutiram as provocações mútuas até a mestre de armas gritar para que voltassem ao treino.

O salão não estava vazio quando Driya entrou, esgueirando-se pela entrada lateral. No canto da parede havia uma pequena mesa com várias guloseimas sobre uma bandeja de prata, presentes para os brownies do castelo. Como sempre, Driya pegou um dos doces ao passar, sem nem mesmo ver qual era. Apenas gostava de provocar os brownies, e era por isso que seu quarto sempre amanhecia arrasado pelos espíritos domésticos. Yasune, por outro lado, gostava de tudo em ordem, então deixava presentes para eles sempre que passava por uma dessas mesas (e elas estavam em todas as alas do castelo).

Driya não queria entrar pela porta principal para não interromper a reunião, tampouco queria ficar de fora. A iluminação vinha apenas das velas no lustre sobre a grande mesa onde estavam os maiores nomes do reino, uma mistura sem padrão algum das pessoas que habitavam as Terras Obscuras, mas os extremos do salão eram imersos nas sombras, e Driya se posicionou atrás de uma coluna de pedra polida.

De onde estava, ela só conseguia ver metade dos rostos, mas reconhecia todos no lugar. Onze pessoas, no total. Yasune estava na cabeceira, presidindo a reunião, os assentos à sua direita e esquerda estavam vazios. Depois desses, o Conselho se dividia em cinco membros de cada lado da mesa. A peeira Aregonde e seu marido Ronna, um lobisomem; um elfo chamado Verleigh; Shehnaz, uma sereia metamorfa, as únicas que podem subir à superfície; e um alquimista vampiro, Maenor. De costas para Driya, estavam dois elfos sombrios, Vanta'Kyn e Mireswyan, ao lado de Ellaent, uma fada, Opheli, a segunda vampira, e Ydder, um guerreiro orc.

Khlyen não estava presente, e Driya começava a estranhar. Não o via desde quando alcançara a segurança de seu batalhão ao fugir de Liam, logo antes de sucumbir à exaustão e desmaiar. Quando finalmente acordou, já estava no castelo.

O Conselho estava excepcionalmente silencioso pois era possível sentir a irritação de Yasune enquanto ela falava, e havia o conhecimento geral que seu mau humor, assim como o de Khlyen, era perigoso. Yasune apresentava aos demais um mapa das Terras Obscuras tão extenso quanto a própria mesa, com círculos brancos nas áreas em que os portais pareciam abrir com mais frequência, e vermelhos nas áreas que os invasores humanos mais atormentavam. Há anos combatiam aquele grupo, mas nunca os alcançavam, os humanos desapareciam com facilidade, algo bastante inesperado, já que eram os únicos humanos naquela dimensão. Como se escondiam tão bem? No começo apenas os ignoraram, porque humanos não conseguem sobreviver muito tempo ao atravessarem o portal. O que eles chamam de Desconhecido não é terra para eles, cujos corpos sofrem e definham com o tempo. Foi em uma de suas missões que Maenor e Verleigh descobriram não apenas que os humanos estavam sobrevivendo, mas que canalizavam magia e podiam combater de igual para igual os povos naturais.

Houve um minuto de silêncio quando Yasune finalmente terminou sua exposição, o Conselho trocou olhares, silenciosamente questionando quem quebraria a frágil paz. Aregonde suspirou, assumindo para si a tarefa.

— Entendemos isso, Yasune. Mas segundo Mireswyan, e até Maenor confirmou, não há chance do Colapso acontecer em menos de um ano. Estamos trabalhando dia e noite para...

— Não há alternativa, Aregonde. — Yasune interrompeu, falando pausadamente, tanto em uma tentativa de conter os ânimos quanto de enfatizar uma resposta que já tinha dado, várias vezes.

— Mas você não sabe...

— Talvez seja possível, os magos...

— A princesa já disse que nem toda a magia do mundo pode impedir o Colapso, peeira! — Ydder bateu na mesa, cortando tanto a fala de Aregonde quanto de Miraswyan, o Arquimago. — Levanto um templo para vocês se conseguirem, pois só podem ser deuses.

A exaltação começava a dominar o Conselho, um tentando convencer o outro. Nenhuma sugestão conseguia unanimidade. Yasune ignorava o barulho, o olhar fixo sobre o mapa, pensativa, apoiando o corpo no braço da cadeira. Sua postura parecia simultaneamente relaxada e aborrecida. O silêncio perigoso fez os outros perceberem que haviam transformado o Conselho de Guerra no próprio campo de batalha, e, pior, lutando uns contra os outros em vez de unidos. Assim como havia começado, a discussão minorou até voltar à frágil paz, com todos os olhares sobre a líder que temiam ter ofendido de alguma forma.

— Perdão pela absurda falta de comedimento que presenciou, Yasune — disse Verleigh, sempre extremamente polido, esperando que assim ela continuasse os assuntos que tinha para tratar.

Mas apesar da má fama da espécie dos irmãos de Driya, eles não tinham um humor volátil, muito menos sentiam necessidade de se impor pela força. Os receios eram infundados, pois Yasune não estava maquinando algo maligno, apenas acreditava que a questão não seria resolvida em discussão, e, de temperamento pouco falante, ela tendia a se distrair em um estado contemplativo, buscando sozinha as respostas necessárias quando sentia que a reunião era uma perda de tempo. Yasune não percebeu o fim da discussão, tampouco ouviu o pedido de desculpas de Verleigh. Quando levantou os olhos novamente, não foi para nenhuma das pessoas sentadas à mesa, mas para a entrada do salão, onde uma figura silenciosa acabava de aparecer, tão absorto em pensamentos quanto ela.

— Khlyen.

Todos os rostos se voltaram para o recém-chegado com inquietação. Mesmo Driya se afastou um pouco das sombras para observá-lo. O Rei Obscuro. Khlyen vagueou o olhar pela sala, em silêncio, fazendo alguns dos presentes estremecerem no lugar, a apreensão crescente. Apenas Yasune não se afetou. Driya se surpreendeu com o quanto ele parecia cansado, os ombros curvados e tensionados, o rosto cabisbaixo, mas a dureza de seu olhar revelava o quão motivado estava. As roupas simples estavam sujas, a maior parte por terra e poeira, mas em alguns pontos podia claramente ver sangue. Sua presença era tão desconcertante e intensa que os demais não notaram o prisioneiro humano que ele arrastara para o salão até o momento em que o empurrou a sua frente, derrubando-o no chão. Um soldado ferido, acorrentado e tremendo enquanto lutava para controlar a respiração ofegante. Havia uma fratura exposta em sua perna.

— Esse não conseguiu fugir — falou, simplesmente. O salão permaneceu silencioso enquanto Khlyen passava por cima do homem no chão e se debruçava sobre a mesa, encarando Ydder e Opheli com desagrado. — Imagino que sejam capazes de conseguir informações sobre os companheiros dele. Eu preferiria confiar essa tarefa a Yasune, mas acho que ele não sobrevive a mais um minuto com um de nós.

— É claro, Khlyen, cuidaremos disso agora mesmo — respondeu a vampira, achando melhor tomar a frente da conversa, sabendo que Ydder não lidava bem reprimendas.

— É o mínimo que podem fazer — falou, antes que os dois se levantassem.

Khlyen não era um líder intransigente, pelo contrário, era geralmente flexível e tolerante. Só esse fato já superava as expectativas de qualquer um, pois o reino saía de três séculos de dominação implacável para finalmente entrar em uma era de justiça. Embora seu temperamento fosse calmo, sua natureza o tornava uma pessoa difícil quando irritado. E nada nas Terras Obscuras o irritava mais do que a impunidade dos invasores humanos, principalmente quando pensava que Driya escapara por tão pouco das mãos deles.

Pela primeira vez desviando os olhos de Opheli e Ydder, Khlyen notou Yasune sinalizar algo rapidamente, passando despercebido pelos outros: "contenha-se". Ele estava passando dos limites? Às vezes era difícil perceber.

— Eu ao menos espero — continuou, — que estejam permitindo conscientemente a presença da minha outra irmã nesta sala. Seria ainda mais decepcionante que o chefe da minha guarda e a comandante do meu exército, em pleno Conselho de Guerra, não tenham percebido que estão sendo espionados. — E levantando o olhar diretamente para onde a hamadríade pensava estar escondida, com preocupação tomando o lugar da raiva em seu semblante, Khlyen falou: — Mas o que você está fazendo aí, Driya? Deveria estar descansando. Venha, já que está aqui pelo menos se sente!

Todos os olhares seguiram o de Khlyen, tornando Driya o centro das atenções. O sorriso torto de Vanta'Kyn sugeria que ele achava a situação divertida, mesmo que a presença da hamadríade tivesse causado uma reprimenda para Ydder, seu irmão. Driya saiu das sombras, mas não pegou uma cadeira, apenas se apoiou com as costas na coluna de pedra: — Não estou morrendo, Khlyen, posso sair da cama de vez em quando. Entrei escondida porque Yase é tão exagerada quanto você. Ela teria me levado de volta para o quarto.

— Teria mesmo — concordou Yasune, que, assim como os outros, estava alheia a ela.

Khlyen soltou um suspiro cansado. O alívio de ver Driya bem fazia diminuir o ódio contra os invasores humanos, que cultivava há três dias sem pausa, mas, junto com ele, sua energia também o abandonava, e ele finalmente sentia os efeitos de sua caçada impulsiva e obsessiva se apoderando de seu corpo. Três dias atrás de Liam e seu grupo, sozinho. Yasune tinha razão, às vezes ele não pensava direito. Virando-se para o Conselho, ele falou:

— Não tenho disposição para isso agora. Por favor, saiam. Continuamos outra hora.

Com exceção de Opheli e Ydder, que já tinham saído com o humano aprisionado, todos se retiraram imediatamente. Diferentemente do começo da reunião, agora o clima parecia muito mais leve, tal era a influência do humor de Yasune e Khlyen sobre o ambiente, e, sobretudo, a influência de Driya sobre o humor de seus irmãos.

Quando ficaram os três sozinhos, Khlyen repetiu o pedido:

— Venha, sente-se! Como você está?

Driya revirou os olhos, bufando com o exagero do irmão, mas se sentou ao lado da cabeceira da mesa, onde Yasune ainda permanecia, e ele sentou ao seu lado. Como Driya não perdia a chance de ser um pouco dramática, respondeu: — Bem. Atiraram em mim, várias vezes. Eu quase morri, várias vezes. Foi super divertido, babaca.

Com a resposta sarcástica, a preocupação de Khlyen anuviou e ele sorriu, aliviado, passando a mão pelos cabelos verdes da hamadríade, que o afastou com um leve tapa só de provocação.

— Bom, se fosse fácil eu não teria mandado você, não é? — respondeu, fazendo um sorriso convencido surgir em seu rosto. — Mas eu lhe devo desculpas, Driya, eu tentei avisar você, mas... Nós tivemos problemas.

Driya não estava irritada. Era difícil informar mudanças de plano de última hora para alguém que não está na mesma dimensão que você. Mas Khlyen passaria o tempo necessário tentando se explicar, então ela o cortou: — Deixe-me adivinhar. Liam?

Ele não respondeu diretamente. Seu olhar foi para o ombro ferido de Driya antes dele perguntar:

— Isso foi aqui ou foi lá?

— Lá — respondeu, apenas. Se dissesse que Liam chegara a atirar contra ela, Khlyen era capaz de voltar a sua perseguição imediatamente, e ele não parecia estar em sua melhor forma, precisava descansar. Driya apontou para o sangue nas roupas do irmão: — É seu?

— Não, não se preocupe — respondeu, seu olhar cheio de interesse e curiosidade. Afinal, tinha enviado Driya por um motivo. — Agora me fale o que você viu lá.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Pessoal na Cidade Aurora em pânico por causa da "mulher do Desconhecido" e a Driya sendo toda fofinha nas Terras Obscuras :v
Talvez eu precise explicar melhor sobre o povo do Desconhecido (tipo por que tem um orc sentado do lado de uma fada e na frente de um elfo e uma sereia). Não posso dizer muito agora, mas o lance é que um povo não é formado de uma espécie só nas Terras Obscuras porque os seres de lá nascem de uma forma estranha, então é difícil até mesmo que irmãos sejam da mesma espécie. Nesse capítulo, por exemplo, Vanta'Kyn (elfo sombrio) e Ydder (orc) são irmãos, além do exemplo mais óbvio, Driya (hamadríade) e Khlyen e Yasune (um tipo estranho de vampiro, depois explico melhor).
Finalmente conhecemos o Rei Obscuro. Primeiras impressões? Teorias? Quero saber o que vocês estão pensando...