O Conto da Piedade escrita por Glasya


Capítulo 9
Capítulo VIII — Calmaria




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Conforme os dias passavam, Chara ficava ainda mais triste pelo seu colar perdido, e mais se convencia de que jamais iria reavê-lo. Toriel fazia de tudo para alegrá-la e se redimir pela atitude de outrora, e por mais que às vezes Chara pensasse em gritar desaforos e magoá-la com palavras, logo deixava a ideia de lado. Toriel era tudo o que tinha agora. Sua família, sua amiga, seu lar. A recebera tão bem em sua casa e cuidara de seus ferimentos mesmo estando ela própria também ferida. Era simplesmente injusto ignorar tudo isso por conta de uma pequena desavença.

Quando não estavam ocupadas procurando pelo colar, as duas passavam o tempo lendo ou ensinando algo uma à outra; Chara ensinava Toriel a dançar, e por sua Toriel ensinava Chara a tricotar. Chara falava sobre o mundo o humano, e Toriel sobre os 72 usos diferentes para caracóis e lesmas. Chara aprendeu que torta de lesma não era tão ruim afinal, e Toriel aprendeu que os humanos acreditavam que a posição das estrelas no momento de seu nascimento influenciava em sua personalidade, e adorou descobrir que, pela sua data de aniversário, teria nascido sob o signo de Peixes. Chara, por sua vez, era de Áries. Não demorou até Toriel se pegar assimilando os monstros cujas data de nascimento ela conhecia aos signos do zodíaco humano; Asgore, por ser seu irmão gêmeo, também seria de Peixes. Seu filho, Câncer. O falecido Dr Gaster, Gêmeos. A pequena Muffet, Virgem. Undyne, Áries. Alphys, Libra. Seu velho amigo Gerson, de Capricórnio. E assim continuou até que quase todos os monstros que conhecia estivessem encaixados em seus respectivos signos.

E assim viviam dias relativamente leves e calmos. No entanto, conforme não tinham sucesso em sua empreitada para encontrar o colar, o desânimo e a desesperança começava a tomar conta do coração de Chara. Estava cada vez mais convencida de que Flowey realmente havia pego seu colar, e não tinha intenção de devolvê-lo. “Aquela erva daninha me paga…” — Pensou, furiosa, e desferiu um soco contra o próprio travesseiro. Vendo como aquilo a ajudou a descontar um pouco da raiva que sentia, repetiu o ato inúmeras vezes, nunca sentindo que o travesseiro devesse talvez apanhar menos.

— Chara? — Toriel dava suaves batidas em sua porta, a fim de verificar se ainda estava acordada.

— Pode entrar! — Chara interrompeu o espancamento do travesseiro e deitou sobre ele.

Toriel abriu a porta lentamente e entrou no quarto com uma pilha de roupas recém-lavadas. A maior parte era composta de roupas velhas que a cabra havia adaptado às medidas de Chara, e se sentia bem orgulhosa dos resultados; mesmo sem ter medido a criança, havia acertado quase todos os ajustes, à exceção de uma ou duas peças que ficara de ajustar em outro momento. Chara negou, alegando que preferia roupas mais largas, que lhe disfarçassem a magreza, e apesar de achar que não fazia tanta diferença assim, Toriel decidiu não mexer mais nas nelas.

Depositou a pilha de roupas dentro de uma gaveta da cômoda e sentou-se ao lado de sua neta.

— Eu preparei o jantar.

— Obrigada, mas não estou com fome…

O olhar cauteloso de Toriel perscruta o rosto da garota, notando os claros sinais de choro. Ergueu sua mão e tocou com os nós dos dedos as bochechas ainda úmidas de Chara.

— Quer conversar?

A menina soltou um longo suspiro e se inclinou para o lado, apoiando a cabeça no colo macio de Toriel para receber o toque reconfortante das patas do monstro em seu cabelo.

— É inútil, vó… Eu nunca mais vou ter meu colar de volta…

— Ah, Chara… Sobre isso… — A voz de Toriel ganha um tom sério e apreensivo, fazendo a menina levantar os olhos à ela.

Chara viu Toriel morder o lábio e estalar nervosamente os dedos das mãos, em silêncio.

— Sim? — Indagou a humana, após a longa e estranha pausa de sua anfitriã.

— Tenho certeza de que vamos encontrá-lo, querida. É só uma questão de tempo. — Apesar de ainda parecer ansiosa, Toriel sorriu gentilmente.

— Obrigada, Tori. — A menina sorriu de volta.

“Tori…” — Ouvir esse apelido provocou uma série de emoções inesperadas na cabra. Uma mistura de sentimentos que ora remetia ao rancor, ora à nostalgia; aquele apelido a lembrava das agradáveis tardes passadas com Asgore no jardim do palácio, tomando chá e conversando sobre tudo. Mas também a lembrava das incontáveis brigas que manchavam seu relacionamento desde que eram pequenos: a natureza mansa de seu irmão a irritava profundamente na época. Para ela, então jovem e impaciente, ambos deveriam ter destronado o pai e acabado com a guerra antes que os humanos os selassem, ou pior, aniquilassem de vez sua espécie. As discussões que tinham eram sempre muito acaloradas, mas acabavam com Asgore consentindo, convencido pelos argumentos extremamente racionais e lógicos de Toriel.

Com o passar dos anos e advento da sabedoria, o coração de Toriel se acalmou, mas em Asgore parece ter crescido secretamente uma fúria forte o bastante para assassinar a sangue frio humanos desarmados e indefesos. Doía-lhe o peito ver seu companheiro mudar tão bruscamente. Doía-lhe saber que ele mimetizava seu comportamento de outrora. Doía-lhe ainda mais saber que fora incapaz de cuidar e proteger duas pequenas crianças. Falhara com seus filhos ao não cuidá-los, falhara com seu marido ao pressioná-lo, e falhara com seu povo ao fugir de suas responsabilidades reais. Mas não falharia outra vez.

— Oi…? Tá tudo bem contigo?

A voz de Chara a tirou bruscamente de seu devaneio. Piscou algumas vezes antes de responder, como que para limpar a mente de toda a bagunça emocional que desenvolvera.

— Sim, sim, estou bem, minha criança. — Toriel deu um beijo na testa da menina, e levantou-se da cama. — Vem, vamos comer.

Chara se levanta e segue Toriel até a mesa de jantar. Mesmo sem fome, acabou comendo um prato de comida apenas para ter algo no estômago. As duas jantaram em absoluto silêncio.

— Foi por causa do apelido? Você não gosta? — Aquele silêncio não era típico. Toriel sempre tinha algum assunto para tagarelar sobre, e por mais indisposta que Chara estivesse, sua preocupação com a avó adotiva era maior que sua necessidade de silêncio.

— O que? Não, claro que não, minha criança… Pode me chamar assim se quiser.

— Então o que houve?

— Ah, só nostalgia de uma cabra velha, não se preocupe com isso. — Toriel sorri, retirando os pratos e levando-os para a cozinha a fim de lavá-los.

— Nostalgia? — Chara a seguiu e se ofereceu para enxugar e guardar os pratos limpos.

— É, nostalgia. Por que não vai se deitar? Concentre-se em ter uma boa noite de sono, amanhã sairemos para procurar seu colar novamente.

— Não estou com sono. Por que não quer me contar sobre isso? Quem te chamava assim? Foi alguém importante? Foi alguém que você perdeu?

— Não tem fome, não tem sono… Trocaram a minha menina por um robô e eu não percebi? — Toriel ri, mas ao olhar para a humana percebeu que não a distrairia tão facilmente. Poderia inventar uma mentira qualquer para não falar sobre isso, mas desta vez preferiu falar a verdade. — Meu ex-marido e um amigo próximo me chamavam assim.

— Ah… Sinto muito…

— Não, eles não morreram. Bem, quanto a esse amigo não tenho certeza, ele era bem mais velho que nós… Mas Asgore, sei que está vivo.

— Como sabe disso se não sai daqui pra nada?

— Porque eu sinto. Eu e ele somos gêmeos*… Isso para os monstros é uma ligação muito especial. Nós sentimos o que acontece um ao outro.

— Espera, você era casada… Com seu irmão??

A expressão de choque de Chara fez Toriel rir.

— Isso não é muito comum entre os humanos, não é?

— Hã… Desculpa, não tô julgando nem nada… Só…

— Está tudo bem. Muita gente era contra isso, mesmo entre os monstros… Mas algumas famílias da alta nobreza preferiram manter essa prática, principalmente as que se tornavam dinastias, para garantir a “pureza” de sua casa. E, claro, para evitar que eventualmente outra dinastia se sobrepusesse à sua através de casamentos…

— Entendi… Mas…

— Deve estar se perguntando se nossos bebês não tem problemas por isso.

— Hã… Bem…

Toriel não a deixou terminar a frase.

— Humanos e monstros são diferentes em muitos aspectos. Esse é um deles. Devido à nossa natureza mágica, a “consanguinidade” não nos torna fracos ou doentes, ao contrário, quando dois monstros poderosos têm uma cria, a tendência é de que o poder de ambos os pais se combine no pequeno monstro. Acredito que este tenha sido um dos motivos que levaram os humanos à declarar guerra contra os monstros no passado: o medo de que gerações cada vez mais poderosas de Monstros-Chefe* viessem a sobrepujar seu domínio sobre a superfície. Mas isso é só uma hipótese minha… — Fez uma breve pausa quando as memórias daquele tempo ressurgiam aos borbotões em sua mente. Havia acontecido há milênios, no entanto lhe parecia ter sido ontem. Suspirou, e então continuou. — Sabe, por mais que tenhamos um grande poder mágico, nossos corpos não são tão materiais quanto os dos humanos, não aguentam o esforço prolongado de uma guerra… Ainda mais estando em menor número. Após a rendição de nosso pai e selamento do nosso povo no subsolo, Asgore e eu assumimos o trono. Por mais que eu saiba que os humanos não são todos iguais, e que não se pode julgar os filhos pelos erros dos pais… Essa visão não é muito difundida entre os outros monstros. É por isso que jamais deve sair dessas ruínas, Chara. É perigoso demais…

— Eu… Eu acho que entendo. Me desculpe por ficar xeretando a sua casa naquele dia…

— Está tudo bem, meu amor… — Toriel abraçou gentilmente a menina, beijando o alto de sua cabeça. — Já que não está com sono, que tal lermos um pouco para ajudar a dormir?

— Se for aquele livro sobre lesmas e caracóis, vai ser bem eficaz…

— Que maldade! Só porque é uma leitura lenta? — Toriel dera à última palavra uma ênfase risonha.

— Isso… Era pra ter sido uma piada…?

— Eu sei que você achou graça. — Disse Toriel, ainda rindo.

— Errr… Não…

— Você está sendo casca grossa por fora, mas sei que por dentro você é mole... Tehehe…

— Ok, boa noite. — A humana se virou e tomou o caminho para o seu quarto, deixando Toriel rir sozinha de suas próprias piadas ruins.


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Notas finais do capítulo

*Monstros-Chefe: o termo é usado para caracterizar monstros extremamente fortes. Tão fortes que a alma é capaz de persistir ainda por um tempo após seu corpo ser destruído. Essa informação é canon, e pode ser encontrada na Cachoeira (Waterfall) ao interagir com uma Flor Ecoante (Echo Flower).

**Asgore e Toriel irmãos gêmeos??
Pois é, teoria maluca minha... No fim da rota true pacifist, quando os monstros são libertos de Omega Flowey e Papyrus vê Toriel pela primeira vez, ele pergunta se "Asgore havia feito a barba", e as semelhanças entre os dois causam espanto geral.

Além disso, os Dreemurrs são os únicos monstros que possuem essa aparência caprina no jogo. A partir daí eu pensei nessa teoria de que talvez o incesto não fosse tabu/prejudicial aos monstros, sendo Toriel e Asgore vindos da mesma linhagem.

Me desculpem pela loucura, garanto que NÃO há outros incestos na história.



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