O Conto da Piedade escrita por Glasya


Capítulo 5
Capítulo IV — Achados e Perdidos




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A jovem abriu os olhos lentamente. A dor havia passado, e um cheiro ótimo de comida sendo feita invadia o quarto, chegando até suas narinas e despertando-lhe a fome que a dor não a deixava sentir antes. Estava confortavelmente vestida em uma camisola lilás, deitada em uma cama gigantesca. Tudo ao seu redor era azul; da roupa de cama às cortinas, e até a mobília de madeira possuía detalhes azuis, como maçanetas e puxadores. Contrastando com os vários tons de azul do quarto havia uma flor amarela sobre a penteadeira. Para seu alívio, era apenas uma flor comum. Nada de rostos ou caretas esquisitas, apenas pétalas e caule imóveis. Suspirou aliviada e pôs-se de pé. Pela visão periférica viu algo se mexer sobre a penteadeira, chamando sua atenção.

— Você de novo? — A humana franziu o cenho. — Mas que diabo é você, algum tipo de fantasma?

— É, tipo isso. — Disse Flowey, após uma breve pausa para pensar.

— Para de me seguir.

— Não ‘tô “te seguindo”. Eu só vim pra devolver essa porcaria pra’quela velha. — A flor abriu a boca em um ângulo quase impossível, e regurgitou um celular.

— ECA!

— Que é? Eu sou uma planta, não tenho braços. Como você acha que eu carrego as coisas?

— Plantas normalmente NÃO carregam coisas. E eu pensei que você fosse um fantasma.

— Foi só uma explicação simplória pra uma mente simplória. Enfim, não importa. Entrega isso pra ela, ok? Consegue fazer isso?

— Esse telefone é meu.

— Tanto faz. Já tá entregue, então.

— Bem, de qualquer forma obrigada. — Retirou um lenço de uma caixinha em cima da penteadeira e com ele pegou o telefone. — É uma das poucas coisas do meu pai que ainda restaram intactas.

Sentou na cama e pôs-se a limpá-lo. Tocou a base do pescoço à procura de seu pingente. Costumava segurá-lo sempre que as vagas memórias de seu pai vinham à tona, e esta era uma forma de mantê-lo perto mesmo que momentaneamente. No entanto, não sentiu seu pingente, muito menos o cordão onde ele deveria estar pendurado.

— Meu… Meu cordão! — Levantou-se em um sobressalto, revirando a roupa de cama na esperança de encontrá-lo, mas ele não estava lá. — EU PERDI O MEU CORDÃO!

— Há! Querida, ‘cê prestou atenção na altura que ‘cê despencou? Tem sorte de não ter perdido a VIDA.

— Eu preciso achar o meu cordão… Por favor, você não o viu?

— Tenho cara de achados e perdidos?

— Obrigada por nada. — A menina bufou e seguiu para a porta.

— Onde você pensa que vai?

— Procurar meu cordão.

— ‘Cê realmente acha uma boa idéia sair por aí, mesmo sem saber pra onde ir?

— Que escolha eu tenho? Eu PRECISO achar o meu cordão.

— Okaaaay… Já deu pra ver que você não é muito esperta. — Flowey suspira, cobrindo o rosto com uma das folhas. — Só para pra pensar um pouquinho, cê tá n’uma casa estranha d’um lugar estranho d’uma pessoa que cê não conhece. Não sabe quanto tempo se passou desde que você desmaiou, nem o caminho que aquela cabra fez até aqui. Além de tudo isso, você ainda tá toda fudida da queda. N’uma situação dessas, você definitivamente NÃO sai vagando por aí procurando a porcaria de um colar!

— Obrigada pela preocupação, mas você não entende! Aquela “porcaria de colar” tem um valor sentimental muito grande pra mim! É tudo o que eu tenho!

— Não tô preocupado, deixa de ser estúpida. Só tô constatando o óbvio, que você parece ter muita dificuldade de assimilar.

— Não me importa, eu TENHO que encontrar o meu cordão! — A garota abre a porta do quarto.

— Ah, mas que merda! Que teimosia! Você NÃO VAI achar aquilo sozinha!

— Vai vir comigo?

— Claro que NÃO. Eu não sou sua babá.

— Então cala a boca e não fica no meu caminho.

— Ótimo! Vai lá, se enfia nas ruínas e acaba morrendo de um jeito estúpido!

Ao sair para o corredor, o cheiro delicioso se torna ainda mais forte, fazendo seu estômago rugir. “Talvez… Eu pudesse comer primeiro…” — Deixou que o cheiro a guiasse pela casa, escorando-se nas paredes e tomando cuidado para não tropeçar ou esbarrar em nada. Passou por uma pitoresca sala de estar, onde a mobília simples era composta apenas de uma mesa de jantar com três cadeiras e uma poltrona próxima à lareira. No canto havia uma grande estante abarrotada de livros, todos organizados em ordem alfabética.

Fazendo o mínimo de ruído o possível, atravessou a sala e espiou o próximo cômodo, de onde vinha o cheiro: a cozinha. Era pequena, mas igualmente limpa e organizada como o restante da casa.

Um pequeno rádio reproduzia em volume baixo uma música animada. No meio da cozinha, Toriel ensaiava alguns tímidos passos ao som da música, segurando a barra do vestido acima dos joelhos para não lhe atrapalhar os movimentos. Ela se interrompeu no meio de um giro, assim que seus olhos encontraram os da humana.

— Ah, que bom que está acordada, minha criança! — Encabulada, desligou o rádio e riu, se aproximando da jovem. — Está com fome?

Antes que pudesse responder, seu estômago roncou alto o suficiente para ser ouvido por uma terceira pessoa.

— Eu acho que isso responde minha pergunta… — A cabra sorri gentilmente para ela, se virando para tirar de cima do balcão um grande tabuleiro contendo uma belíssima torta de chocolate. — Venha, venha, vamos comer à mesa!

Com uma das mãos, Toriel levava a torta, e com a outra segurava a mão da menina, guiando-a de volta à sala de estar. Depositou a torta no centro da mesa e acomodou a humana em uma cadeira próxima à sua. A jovem salivava observando a cabra repartir e servir-lhe uma fatia de torta. Tentou comer o mais educadamente que pôde, mas acabara com o primeiro pedaço em questão de segundos, e em menos de dez minutos mais da metade da torta já havia sido devorada.

— Hahaha! Você tem um apetite e tanto, criança!

— Ah… Desculpa, eu só… É que… Eu tava com muita, muita fome… E não lembro quando foi a última vez que comi algo tão gostoso…

— Ah, você é um amor! Não se desculpe, eu fiz essa torta especialmente pra você. — Sorriu, genuinamente feliz. — Eu sou Toriel, a guardiã das ruínas. Como se chama, minha criança?

Toriel desejava desesperadamente saber quem era aquela humana, e mais importante, se ela tinha alguma relação com Frisk. Mas não queria parecer rude, então teria que ser sutil e dar um passo de cada vez. A humana certamente não ficaria à vontade com um interrogatório logo ao acordar.

— Chara.

— O quê? — O coração de Toriel se apertou ao ouvir aquele nome. — Onde ouviu esse nome? Que tipo de brincadeira de mal gosto é essa?

Por um momento temeu que seu tom tivesse sido duro demais, mas logo afastou esse pensamento de sua cabeça. Não sabia exatamente o que pensar, só sabia que estava extremamente desconfortável com aquela situação. Só conseguia se perguntar como aquela garota saberia o nome de sua filha.

— Hã? Não é nenhuma brincadeira… — A humana se encolheu na cadeira, adotando uma postura mais defensiva. Correu os olhos rapidamente ao seu redor, e seu cérebro começou a traçar possíveis rotas de fuga; se a cabra tomasse alguma atitude agressiva, poderia passar por baixo da mesa e correr até a porta. — É… É só o meu nome…

Toriel encarou a menina por um tempo, sem reação. “Calma, Tori… É só um nome… Só um nome… Talvez seja um nome comum na superfície…” — Pensou enquanto respirava fundo para tentar acalmar seu coração.

— Você tá bem…? — Indagou a garota, cautelosa.

— Sim, claro, meu bem. Me desculpe. Então, hã… Chara… — Começou Toriel, o mais docemente o possível, tanto para não assustar a menina quanto para disfarçar o desconforto que pronunciar o nome de sua falecida filha causava. — Gostou da torta?

— Sim, eu estava falando sério quando disse que era a coisa mais gostosa que como há meses. E foi a melhor torta de chocolate que já comi na vida! E olhe que já comi muitas, porque eu adoro chocolate, se deixar como o tempo todo, sou quase uma viciada! — Chara era o tipo de pessoa que falava e gesticulava muito quando estava nervosa. Isso dava a sensação de que estava descontraída, quando na verdade estava à beira de um ataque de pânico.

Toriel cobriu a boca com uma das mãos. As semelhanças com a sua filha se faziam presentes até nos gostos, e tentar relacionar a menina à Frisk era inútil nesse caso, afinal Frisk também se parecia com Chara.

— Hã… Tá tudo bem mesmo? Eu disse algo que te ofendeu? Olha, se eu disse, me desculpa… Não foi a intenção…

— Não, não, querida… Está tudo bem, eu estou bem…

— Então por que tá chorando?

Toriel tocou as bochechas com as mãos e sentiu a umidade no rosto. Não havia se dado conta de que as lágrimas haviam escapado, e agora precisaria dar uma desculpa ou desconversar de uma forma que não parecesse rude.

— Ah… Não é nada… Eu só estou preocupada com você, só isso. Sente alguma dor? É alérgica a alguma coisa? Você estava bem mal quando te encontrei… Como está seu braço?

— Não, não tá doendo mais… — A garota voltou os olhos para o seu braço enfaixado. — Muito obrigada.

— Fico feliz em ouvir isso. — Toriel achou que agora seria uma boa hora para perguntar sobre Frisk, mas teria que ser sutil. Já havia causado impressões erradas o suficiente. — Sabe, se você não tivesse me ligado, teria demorado muito mais pra eu te achar. Quase não vou mais naquela parte das ruínas… Me desculpe, eu separei seus pertences mas não consegui achar seu telefone.

— Não tem problema, olhe. Estava debaixo da cama. — Mentiu, colocando o velho telefone sobre a mesa. — Só tá sem bateria, mas acho que não tá quebrado.

Toriel pegou o celular para examiná-lo de perto. Definitivamente, aquele era seu antigo celular, o que dera à Frisk quando o encontrou nas ruínas.

— Esse telefone parece ser bem antigo. Onde o conseguiu, se me permite perguntar? — Toriel sorriu, fingindo despretensão com sua pergunta.

— Meu pai me deu. — A menina deu de ombros.

— Seu… Pai…? — O coração de Toriel deu um pequeno pulo. Se ela deu o celular à Frisk, e essa menina agora dizia que o recebera de seu pai, então… — Frisk é o seu pai?

— Sim, esse é o nome dele! A senhora o conheceu?

Toriel leva as mãos à boca novamente, surpresa. Depois de alguns instantes, abraça a garota abruptamente, a apertando em seus braços com um grande sorriso.

— Sim, sim! Eu o conheci! Eu o encontrei e cuidei dele quando ele caiu aqui! Ele não disse nada sobre mim?

— Bem, hã… Nós não tínhamos muito tempo juntos… Ele trabalhava muito, e depois veio a guerra… Tivemos que nos mudar várias vezes… Então não sobrava muito tempo pra histórias.  

— Guerra? Os humanos estão em guerra? Com quem?

— Eu não sei muito bem… A internet foi cortada na região onde a gente tava então não tô sabendo direito o que rola. Quem tava mais a par das coisas era a minha irmã… Mas eu me perdi dela subindo o monte Ebott… E o meu pai… Ele… Ficou pra trás… Mandou a gente subir, disse que nos encontrava do outro lado da montanha… Mas eu não sei, estava escuro, e tinha tanto barulho… Nós ouvimos tiros…

Chara se interrompeu para engolir em seco, fitando o vazio. Não poderia chorar na frente de uma desconhecida. Ela não sabia ao certo o que havia acontecido com sua família, e todos os dias lutava para afastar da cabeça as imagens da guerra, os gritos dos soldados, e a ideia de que dificilmente sairiam vivos se permanecessem naquela área; ao invés disso, mantinha viva as esperanças de reencontrá-los sãos e salvos e de que tudo poderia voltar a ser como antigamente, antes daquela catástrofe. A vida não era exatamente fácil, seu pai era sempre muito ocupado com o trabalho e sua irmã mais velha por vezes se sobrecarregava com as tarefas domésticas, mas não havia tiros ou bombas. Não precisavam fugir e se esconder diariamente, sem nunca ter a certeza de que acordariam no dia seguinte. Era uma vida simples, comum, às vezes dura, mas havia paz.

— Não precisa se lembrar de coisas dolorosas agora, minha criança… — O coração de Toriel estava apertado de tal maneira que ela pensou que explodiria. Se aproximou e envolveu a menina em seus braços e beijou-a no alto da cabeça, um pouco mais para confortar a si mesma que a esta. — Está tudo bem… Está segura aqui…

“Por quê?” — Pensou a cabra. — “Por que os humanos estão se matando? Por que mataram Frisk…? Isso não faz sentido, não faz sentido… O que há de errado com a superfície?”

Lágrimas rolaram descontroladamente pelas bochechas de Toriel ao pensar que Frisk, sua amada criança, agora era um homem feito e sofrera com os males da guerra. Como mãe, preferiria que lhe arrancassem um membro a ver um filho seu ferido; agora todos os seus filhos estavam mortos, enquanto ela continuava ali, intacta, atemporal.

“Isso é tão injusto… Tão injusto…” — Seus soluços fortes sacudiam todo seu corpo e o da menina. Sentiu os braços de Chara envolverem seu torso, apertando-a gentilmente; o que antes era um abraço de mão única agora se tornara um conforto mútuo.

“Não posso chorar, não posso chorar…” — Repetia Chara em sua mente, como um mantra; isso não impediu que suas lágrimas ensopassem o vestido de Toriel, no entanto.

E ali ficaram, não se sabe por quanto tempo, compartilhando lágrimas e lembranças, buscando conforto nos braços uma da outra. Toriel apresentaria à Chara seu quarto mais tarde, o mesmo que seus filhos ocuparam um dia. O mesmo que Frisk ocupara, e sempre esteve aberto a ele caso o mesmo decidisse voltar.

Já era tarde quando a humana finalmente pegara no sono, e Toriel decidiu que não iria para o seu quarto esta noite. Ao invés disso, ajeitou-se ao lado da menina na cama, aninhando-a em seus braços, acariciando gentilmente seus cabelos escuros.

— Frisk, meu anjo, não se preocupe… Eu vou cuidar da sua menina. — Sussurrou Toriel, pouco antes de pegar no sono.


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Notas finais do capítulo

Demorou mais do que devia pra sair, mas saiu... Próximo capítulo no forno, sendo editado e reescrito, posto assim que a faculdade deixar xD



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