O Conto da Piedade escrita por Glasya
— Frisk…? — Disse Toriel, com sua voz doce. — Frisk, é você?
Ao se aproximar, o fio de esperança ao qual se agarra desvanece. Não conseguiu conter o desapontamento ao ver que apesar das semelhanças, o ser humano à sua frente não era Frisk. Mesmo de coração partido, não lhe negaria o cuidado necessário.
— Ah, minha criança… Venha comigo, posso tratar estes ferimentos…
Toriel pegou em seus braços a criança imóvel, como se fosse um recém-nascido. Não sabia se pela dor, ou pelo conforto que o calor de seu corpo proporcionava, mas a criança fechou os olhos e adormeceu em seus braços.
Assistir ao humano adormecer trouxe à tona lembranças de vários outros humanos que ali haviam caído; alguns com histórias trágicas, outros nem tanto, mas todos necessitavam de companhia e cuidados. Aquilo fez com que Toriel sorrisse. A vida nas ruínas era em demasiado solitária, e apesar do destino costumar ser cruel com os humanos que ali caíam, não conseguia deixar de ficar feliz em ter com quem conversar.
Toriel depositou o humano em sua própria cama e preparou um balde de água morna e um pouco de sabão; sentou ao seu lado e o despiu das roupas imundas, revelando um corpo extremamente magro, com um sutiã branco a cobrir os pequenos seios por baixo do suéter gasto.
— Ah… É uma menina! Céus, é tão magrinha! Vou tratar de alimentá-la direito. — Toriel umedeceu uma toalha na água morna e pôs-se a tirar a sujeira do corpo e dos ferimentos da jovem. — Faz tempo que não temos uma menina.
Com talas e bandagens, a cabra enfaixou firmemente o braço quebrado da menina. Tentou usar sua magia de cura, mas sem muito sucesso. A verdade era que ainda iria demorar até seu poder mágico se restaurar, e até lá tudo o que poderia fazer era aliviar suas dores com algumas ervas que conhecia e pequenos feitiços.
Ao terminar, Toriel separou as roupas sujas da humana, e aproveitou para vasculhar os bolsos em busca do celular. Precisava saber se era o mesmo que havia dado à Frisk anos atrás, mas não encontrou nada. Mordeu o lábio, decepcionada por não achar o que queria e ao mesmo tempo envergonhada por vasculhar os bolsos alheios sem permissão. Foi até seu armário e separou algumas roupas velhas que já não lhe cabiam; certamente ficariam grandes na menina, mas nada que uma bainha ou um alguns ajustes não resolvessem.
— Você é tão mais alta que Frisk… — Acariciou a franja da humana, vestindo-a com uma de suas camisolas. — Mas ainda assim, se parece tanto com ele…
Além de ser mais alta, a pele de fato era um pouco mais morena e os cabelos mais escuros que os de Frisk, mas ela possuía traços em comum; os olhos puxados e os lábios finos eram alguns deles.
— Será que são parentes? — Isso explicaria o celular, que apesar de não ter encontrado, tinha certeza de que era o que havia dado à Frisk. — Deve ter caído pelo caminho… Ou será que estou delirando? Uma velha louca, é nisso que me tornei?
Fez o melhor que pôde para conter o choro, saindo do quarto rapidamente antes que as lágrimas caíssem. Recostou-se na porta do quarto ao fechá-la, soltando um pesado suspiro. Se preocuparia com isso depois, por hora se concentraria em cuidar da garota humana.
Respirou fundo e rumou para a cozinha, parando no caminho para depositar em sua poltrona as roupas que teria de ajustar mais tarde. Testou novamente sua magia com a ponta dos dedos. Ainda fraca demais até para cozinhar, teria de usar o fogão. Após certo tempo revirando as gavetas, finalmente achou um isqueiro e pôde acender o forno para deixá-lo aquecer. Pensou em fazer sua característica torta de caramelo com canela, mas temeu que o preparo da receita a trouxesse ainda mais reminiscências dolorosas, então dessa vez decidiu tentar algo diferente. Do fundo do armário retirou um grande livro velho e empoeirado. Na capa lia-se “receitas da superfície”. Desde que seus filhos morreram, Toriel trancou ou jogou fora tudo o que tinha a respeito da superfície; lhe doía demais pensar que perdera tudo por uma causa impossível, e mesmo se conseguissem voltar para a superfície, o que fariam lá? Outra guerra com os humanos? Já não haviam perdido demais?
As memórias dessa época traziam à tona toda aquela dor que ela tanto se esforçara para enterrar, mas já estava decidida a superar este trauma, assim como superou os traumas das guerras que vira. “Mas naquela época eu tinha o Gorey…” — Pensou, mas logo afastou o pensamento de sua cabeça. Há muito Asgore Dreemurr deixara de ser o “Gorey” com quem ela cresceu e se casou. De fato, após a morte dos filhos, este tornara-se um estranho para ela. Quando o deixou, jurou para si mesma que protegeria de sua ira qualquer humano que porventura caísse no subsolo, mas tudo o que conseguiu foi uma sucessão de falhas, uma ainda mais trágica que a outra. A estadia de Frisk nas ruínas foi a mais breve, porém a que mais lhe marcou, não sabia dizer exatamente o por quê. Provavelmente pelas semelhanças que ele tinha com sua filha humana, mas Toriel há muito deixara de pensar sobre isso para evitar mais dor.
Pra falar a verdade, evitar a dor era sua prioridade ultimamente. Quando Frisk a deixou, decidiu que evitaria a dor não se apegando a outro humano novamente. No entanto ali estava ela, cozinhando para uma humana e cuidando de seus ferimentos. “Até que ela decida me deixar, também…” — Toriel chorou silenciosamente na cozinha, enquanto seus dedos automaticamente abriam o livro na página em que repousava seu marcador desde a época em que era mãe: torta de chocolate.
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