O Conto da Piedade escrita por Glasya


Capítulo 17
Capítulo XVI — Bergentrückung


Notas iniciais do capítulo

Abram alas, que o papai bode chegou ♥



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A primeira coisa que Chara viu quando abriu os olhos foi Flowey. Ele estava empoleirado na cabeceira da cama acima de sua cabeça, se inclinando sobre seu rosto.

— Olha só, não é que tá viva mesmo? — A flor abriu um sorriso que parecia ao mesmo tempo debochado e aliviado.

— Foi mal por te desapontar, seu merdinha.

— “De nada” outra vez!

— Que?

— Eu te tirei do quarto da louca dos animes! Salvei sua vida, DE NOVO! Você tem que aprender a ser mais grata!

— GRATA?! VOCÊ ME JOGOU EM UM LABORATÓRIO MEDONHO, E DEPOIS NA SALA DE UM ROBÔ MANÍACO NARCISISTA!

— OI??? EU joguei você? Para de distorcer as coisas, não te “joguei” em lugar nenhum, você foi pra lá por livre e espontânea vontade!

— POR QUE CONFIEI EM VOCÊ?! ARGH, COMO EU SOU IDIOTA!!

— Finalmente disse uma frase certa, você é muito idiota.

— EU ODEIO VOCÊ!!! — Com um tapa, Chara lançou a flor ao chão.

— AI! Não foi minha culpa, tá legal? Como é que eu ia saber que Mettaton tava lá em baixo? Aquela coisa esquisita NUNCA vem pro laboratório!

— Pode bancar o inocente à vontade, eu nunca mais vou confiar em você! — Chara se levanta da cama, e por um momento foi acometida por uma sensação de desmaio que a obrigou a se deitar novamente.

Precisou de alguns minutos até que sua visão voltasse ao normal; por um momento, pensou que estivesse de volta à casa de Toriel, mas logo reparou que, apesar de ser igualmente azul, este quarto era ainda maior que o de sua avó. Ela ainda usava as ridículas roupas de dança com as quais Mettaton a vestira, e suas costas estavam envolvidas em ataduras.

— Ai caramba… Onde é que eu tô agora…?

— Bem vinda ao castelo, querida. Mais precisamente, “Nova Casa”. É um nome estúpido, eu sei. O rei é um completo boçal. E voltando ao nosso assunto de antes… PARA DE ME CULPAR POR TODA A MERDA QUE DÁ NA SUA VIDA!

— Não dá pra parar de te culpas, porque é tudo CULPA SUA! O COLAR, A CIENTISTA, O ROBÔ, TUDO!

— Tudo o que eu fiz foi abrir os seus olhos, e depois salvar sua vida!

— Você só queria me jogar contra Toriel!

— Não preciso fazer isso, ela já faz bastante merda por si só!

— Porco egoísta! Sua vida deve ser tão vazia que se ocupa em arruinar a dos outros só pra compensar a frustração que deve ser viver como um fantasma inútil!

A flor se calou, encarando Chara com um olhar perplexo. A porta do quarto se abriu, e por ela entrou um enorme monstro branco de juba loura a passos lentos e pesados. As roupas de tecido suave e perfeitamente alinhadas deixavam claro que se tratava de alguém com grande prestígio social. Ergueu a cabeça para o rosto da criatura, e o reconheceu imediatamente; aquele era o rei Asgore Dreemurr, o mesmo que assistira ao show de horrores ao qual fora submetida. Ele portava uma pequena bandeja com uma xícara de chá e um pedaço de torta, e de seu ombro esquerdo pendia uma pequena bolsa marrom com uma cruz vermelha bordada em sua superfície. Os gentis olhos heterocromáticos¹ do monstro encontraram os de Chara, e ele a cumprimentou com um sorriso.

— Bom dia, jovenzinha! Fico feliz que já esteja consciente… Como está se sentindo?

— Bem… Eu acho… — Chara se encolheu sob os lençóis. O tamanho do monstro era intimidador, e o mesmo podia ser dito sobre sua voz grave, ainda que em tom amigável.

Ela nunca havia estado na presença de um monarca antes, e simplesmente não sabia o que dizer ao rei dos monstros. Apesar de à primeira vista ele lhe ter parecido amigável, no fundo a menina temia que qualquer palavra errada pudesse lhe custar a cabeça.

“Ou a alma…” — Pensou, engolindo em seco.

— Ainda dói? — Perguntou o monarca, depositando a bandeja ao lado da menina.

— Não muito…

— Que bom, o remédio está fazendo um bom efeito. — O rei se sentou ao lado da humana e abriu a pequena bolsa que trazia consigo, separando um par de bandagens novas e um pequeno pote contendo uma substância pastosa de cor esverdeada. — Venha, deixe-me trocar essas ataduras.

Chara virou suas costas ao bode, que rapidamente removeu seus curativos e se pôs a tratar de seus ferimentos. Olhando por cima de seus ombros, torceu o nariz ao reparar que ele lhe aplicava a solução pastosa do pote, que tinha um cheiro hediondo; parecia uma mistura de mofo com algo que entrou em decomposição há muito tempo.

— Desculpe, eu sei que o cheiro é péssimo, mas essa pomada tem propriedades anestésicas e é um ótimo cicatrizante, e eu não me dou bem com magias de cura… Você acabou tendo algumas queimaduras porque… Bem… Eu fui um idiota e incendiei o palco. Me perdoe… — O monstro abaixou a cabeça, com uma expressão de pesar no rosto. Apesar de estar fazendo o possível para cuidar da menina, Asgore se sentia extremamente culpado. — Sou uma catástrofe em muitas coisas, e não sou particularmente bom em nada. Nem em ajudar as pessoas.

— Ah… Hã… Que isso… O senhor me salvou… Vai saber o que aquele robô maluco ia fazer comigo se não tivesse intervindo? — Chara achava que o rei poderia ter intervido antes que ela tivesse levado tantas pancadas, mas não conseguia ver alguém se torturar daquela forma. — E tá cuidando de mim mesmo sem ter obrigação alguma de fazer isso. Isso é uma prova de caráter e boa índole… Então… Obrigada, vossa majestade…

— Não precisa me chamar assim. — Seus olhos ainda denunciavam sua culpa, mas Chara pôde ver o semblante do rei se suavizar com um leve sorriso, parcialmente oculto pela densa barba loira. — Pode me chamar só de “Asgore”. Está com fome, não é? Trouxe uma torta de Caramelo com Canela…

Um sorriso iluminou o rosto da menina ao ouvir falar da torta. Não só por que estava morrendo de fome, mas também porque a torta de caramelo com canela a fazia ter lembranças maravilhosas de sua família. O sabor dessa, no entanto, não era tão bom quanto se lembrava, e a massa estava um pouco mais grossa e queimada do que deveria, mas ainda assim foi o suficiente para aplacar sua fome.

— Err… Eu não sou muito bom na cozinha, mas… Bem, eu tentei…

— Que isso, tá ótimo! — Achou que uma mentirinha leve não faria mal. Até porque, com a fome que estava, a torta nem parecia tão ruim assim. — E eu também tava morrendo de fome, então… Obrigada…

Um silêncio pairou sobre eles enquanto o rei terminava de trocar os curativos de Chara.

— Então, Amber… Há quanto tempo está no subsolo?

— Uns dois ou três meses.

— Hum. Caiu do monte Ebott, eu presumo?

— Sim…

— E você… Encontrou alguém quando caiu? Com quem você ficou durante esse tempo que esteve aqui?

Chara conseguia sentir a apreensão do rei dos monstros ao fazer essas perguntas. Não sabia se Toriel gostaria que elas as respondesse com a verdade, mas não conseguia pensar em uma boa mentira para pôr no lugar, então resolveu ser sincera. Até porque, por mais que Asgore tenha se mostrado gentil e paciente até agora, não sabia até onde essa gentileza iria se começasse a abusar da hospitalidade do bode. Havia ainda uma outra questão: ele havia salvo sua vida, o que significava que ela estava em débito.

— Eu… Hum… Fiquei na casa de um monstro chamado Toriel. Ela… — Chara olhou para baixo, segurando seu pingente com firmeza, de repente se vendo obrigada a combater as lágrimas de saudade que tentavam escapar de seus olhos. — Ela cuidou de mim.

— E como ela está? — O bode se aproximou, ansioso pela resposta.

— Hã… Bem.

— Bem? Bem como? Feliz? Tem conforto? Precisa de algo?

— Err… — A enxurrada de perguntas a fazia se sentir confusa e desconfortável. — Eu acho que sim… Quer dizer, a casa é confortável, ela é bem humorada, eu não senti falta de nada…

Não tinha como ficar mais estranho. A visível inquietação de Asgore a deixava nervosa, e começava a se arrepender de ter falado pra ele sobre Toriel.

— Desculpe… Isso não é um interrogatório… — Asgore recuou, percebendo a intimidação que exercia sobre a garota mesmo de forma não intencional. De fato, não deveria ser confortável para nenhum humano ser questionado de forma tão incisiva por um monstro de dois metros e meio. — Eu… Só me preocupo com ela… E agora com você, também.

— Obrigada…

O silêncio constrangedor voltou à tona quando a menina reparou que o monstro encarava seu pingente com um misto de tristeza e culpa.

— Esse colar… Foi ela quem te deu?

— Foi o meu pai.

Silêncio novamente.

— Frisk, não é? — Inferiu o bode, calmamente.

— Como você sabe? — Chara voltou os olhos para o rei, surpresa.

— Bem, em primeiro lugar, você é a cara dele. E depois… Esse colar… — Asgore apontou para o pingente com sua enorme garra. — Era da minha filha. Não sei como Frisk o conseguiu, eu achei que estivesse perdido…

O sangue de Chara gelou. Não sabia o que Asgore estava insinuando com isso. Seria seu pai um ladrão? Teria o rei ressentimentos em relação à ele? Não, não era possível, ele havia acabado de dizer que o colar estava perdido… Talvez seu pai apenas o tenha encontrado, ou recebido de alguém.

Lembrou-se de uma conversa que tivera com Toriel à beira da lareira, que parecia ter ocorrido há muitos anos atrás. “Os monstros julgam os filhos pelos erros dos pais…” — ela havia lhe dito na ocasião, além de ter deixado claro que a maioria dos monstros não nutria muita simpatia por humanos. Esse pensamento a fez engolir em seco. Por mais gentil que Asgore estivesse sendo, eram altas as chances de não estar nem um pouco segura.

— Mas que bom que achou um bom uso para ele. — Continuou o monstro, pesaroso. — Posso?

Ele havia esticado a enorme pata em direção ao pingente. Chara não seria louca de negar-lhe permissão para tocá-lo, e ele o fez com mais delicadeza do que a humana poderia esperar de um monstro daquele tamanho. Com cuidado, Asgore abriu o pingente², revelando em seu interior fotos de duas crianças; de um lado, um pequeno bode branco que segurava um buquê de flores amarelas. Do outro, uma menina humana, usando uma coroa daquelas mesmas flores na cabeça. Envolvendo o pequeno casal, estavam escritas as palavras “melhores amigos para sempre”.

— Que gracinha… — Em todos esses anos, nunca conseguira abrir o pingente³. — São os seus filhos?

— Sim. Chara e Asriel.

Não pôde deixar de notar a assombrosa semelhança física entre a falecida princesa e ela mesma. As duas eram magras, tinham cabelos escuros que desciam lisos até os ombros, o mesmo formato ovalado do rosto e olhos puxados que denunciavam a clara ascendência asiática³. O que as diferenciava eram a cor dos olhos e da pele; enquanto a princesa possuía a pele quase tão clara quanto os pelos de seu irmão adotivo e olhos de um vermelho vívido, Chara possuía a pele morena e olhos castanho-avermelhados.

— São lindos… — Uma onda de tristeza a acometeu enquanto observava aquelas pequenas fotografias. Toriel havia lhe falado sobre sua tragédia familiar, e inevitavelmente Chara agora se pegava imaginando o sofrimento daquelas duas crianças. — Eu sinto muito.

— Dizem que quando alguém que amamos morre, nunca nos deixa de verdade… “Sempre terá uma parte dessa pessoa viva em nossos corações.” Quem inventou essa frase não devia ter filhos… Porque quando se perde um filho, uma parte do seu coração morre com ele. — O rei se levantou da cama e recolheu a bandeja vazia. Sem olhar para a menina, caminhou até a porta, parando apenas para apagar a luz. — Tenho alguns afazeres… Voltarei para alimentá-la mais tarde. Tente descansar, jovenzinha.

O pesar ainda era palpável na voz do rei, e permaneceu no ar pesado como uma neblina, mesmo depois que o rei partiu. Em silêncio, a humana continuou a observar as pequenas fotografias no interior de seu pingente até ser vencida pelo cansaço e pegar no sono.


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Notas finais do capítulo

(1) Sei que a maioria das representações de Asgore tem olhos azuis ou castanhos, mas como o jogo é preto e branco e em seu ataque os olhos dele brilham em cores diferentes (azul e laranja), então optei por deixar Asgore assim: um de seus olhos é castanho, e o outro é azul.

(2) Sei que o pingente original não tem mecanismo para ser aberto (mesmo eu tendo visto algumas fanarts onde o colar tem esse design), então aqui vou considerar que o pingente, por ser um artefato feito por monstros, só poderia ser aberto por um ser mágico.

(3) A etnia de Chara e Frisk nunca foi revelada no jogo, então tomei a liberdade de colocá-los como sendo do leste asiático. Mais precisamente, mongólia e filipinas, respectivamente.

Espero não ter ficado muito estranho >—>



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