O Conto da Piedade escrita por Glasya


Capítulo 14
Capítulo XIII — Fora das Ruínas




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Toriel correu para a porta das Ruínas, contemplando a única barreira que a separava do mundo externo. Por anos, aquela porta delimitou o único espaço no qual se sentia confortável, a protegendo e ocultando dos olhares curiosos e comentários maldosos do resto do subsolo.

Pânico. Era o que estava sentindo em seu coração mediante à necessidade de abrir aquela porta. Nem se lembrava quanto tempo fazia desde que se isolara, e se perguntava se havia sido tempo o suficiente para que todos tenham esquecido de seu nome e rosto. Tocou a porta, fazendo menção de abrí-la, mas se interrompeu; não conseguia. Suas mãos tremiam, seu peito doía e sua garganta se fechava só de pensar em pôr os pés para fora dali. Se afastou da porta. Sentindo-se derrotada, sentou-se nos últimos degraus da escada e começou a chorar.

Por que…? Por que…?” — Toriel se culpava por não conseguir atravessar aquela porta. Não sabia quando havia adquirido esse medo do mundo externo, mas agora ele era forte demais para ser ignorado. — “Eu preciso… Chara depende de mim…”

Toriel se levantou. Trêmula, abriu a porta. Ela não sabia exatamente para onde Undyne havia levado sua neta, mas sabia que a amazona costumava viver nos arredores da Cachoeira, então procuraria lá primeiro.

O frio súbito fez seu corpo estremecer; fechou os olhos e forçou-se a dar um passo para fora, mesmo isso lhe provocando uma intensa dor no peito e falta de ar. Conforme andava de olhos fechados na neve, o frio congelava suas roupas e pelos molhados. Não aguentando mais aquela situação, Toriel resolveu voltar.

Abriu os olhos, mas a visibilidade estava extremamente baixa; sequer podia ver a porta das ruínas, ou as luzes do que seria Nevada. Tentou fazer fogo, mas nada além de poucas fagulhas saíram de suas mãos. Havia dado o azar de sair durante uma tempestade de neve, e apesar de fogo ser normalmente predominante sobre gelo, este estava em muito maior quantidade do que as chamas mágicas de Toriel poderiam suportar.

Não é possível que eu tenha me afastado tanto assim das ruínas… eu tenho que voltar… Eu preciso…

Desorientada, seguiu caminho pela beira da estrada se apoiando nas árvores para evitar cair na neve, que agora já chegava ao seu joelho. O vento uivava em seus ouvidos, trazendo consigo o frio que penetrava suas vestes e seus pelos, fazendo seus ossos doerem e dentes baterem. Por um breve momento, achou ter visto as luzes convidativas da cidade, mas o gelo se espalhava com o vento, obstruindo totalmente sua visão.

Continuou andando contra a força do vento e da neve, cobrindo o rosto com um dos braços, mas a nevasca parecia piorar cada vez mais. Cãibras se espalhavam pelo seu corpo devido ao frio, e mal conseguia respirar. Caiu na neve, derrotada pelo frio e desesperança; fechou os olhos, pensando que jamais veria sua neta de novo.

 

***

 

Toriel acordou confortavelmente aquecida em um sofá de veludo verde, enrolada em vários cobertores macios. Ao seu lado uma TV exibia sem som um programa sobre as pernas de um robô cor-de-rosa.

Sentou-se, tentando identificar onde estava, mas a bem da verdade não fazia ideia, não era a casa de ninguém que conhecesse. Sua cabeça girava e seu corpo ainda estava um pouco dormente, mas tentou ficar de pé mesmo assim.

— VOSSA MAJESTADE!¹ — Uma voz alta a sobressaltou. — SOU EU! O GRANDE PAPYRUS! A SENHORA LEMBRA DE MIM? É A SENHORA MESMO, NÃO É? WOWIE! ESSE É O MELHOR DIA DA MINHA VIDA!

— Papyrus…? — Ela se lembrava vagamente de um pequeno esqueleto que costumava implorar para entrar pra Guarda Real, mas não tinha certeza.

Como tudo relacionado àquela época, essas lembranças lhe pareciam distantes e nebulosas. O esqueleto diante dela se vestia com trajes no mínimo irrisórios; uma camisa com bolas de basquete estampadas nas mangas, com os dizeres “cara legal” escritos em péssima caligrafia, combinada com um boné que igualmente se assemelhava à uma bola de basquete.

— WOWIE! VOSSA MAJESTADE SE LEMBRA DE MIM! — O esqueleto corre em direção à um lance de escadas. — SANS! SAAAAAANS! ACORDE, SEU PREGUIÇOSO! A RAINHA TORIEL ACORDOU!

— Não! Shhhh! Papyrus, fale baixo, por favor! — Toriel pretendia não chamar atenção para si, o que seria impossível com o esqueleto gritando a plenos pulmões que lhe faltavam.

Um outro esqueleto, mais baixo e vestindo uma jaqueta azul e pantufas cor-de-rosa aparece, no alto da escada, bocejando e se espreguiçando.

— e aí, mano… — O outro esqueleto desce as escadas devagar, pondo as mãos nos bolsos da jaqueta.

— Vossa majestade, este é meu irmão, Sans. A senhora se lembra dele? Ele era só um bebê² quando a senhora desapareceu. Ele faz as patrulhas comigo em busca de humanos que porventura tenham caído no subsolo! Eu peço perdão antecipadamente pela preguiça dele, estou tentando fazê-lo melhorar…

— Sim, claro, eu não duvido, meu filho. — Toriel tinha pressa. Não podia perder tempo papeando enquanto Chara corria perigo. — Você disse que patrulha em busca de humanos? Por um acaso viu algum recentemente?

— Na verdade, não. O último humano que vimos foi meu amigo Frisk, mas isso foi há muito tempo atrás. Por que?

— ei… espera, eu conheço essa voz! — O esqueleto baixinho se aproxima com um olhar intrigado em seu rosto. — você é a senhora das ruínas! a que conta piadas ruins através da porta!

Toriel não conseguiu esconder sua surpresa; dentre todas as pessoas, ela nunca pensou que encontraria seu parceiro de piadas em uma situação como aquela. Normalmente, ela o abraçaria e ficaria horas a fio conversando e trocando piadas e trocadilhos, e até mesmo se ofereceria para cozinhar algumas sobremesas, mas a preocupação com Chara fazia seu coração pesar e levava um gosto amargo à sua boca.

— Por favor, Sans. Você tem que me ajudar. — Se aproximou do esqueleto e segurou suas mãos, fazendo o possível para conter o desespero na voz. Não obteve muito sucesso, já que suas mãos trêmulas a denunciavam. — É a minha menina… A humana que eu vinha cuidando, se lembra dela?

— a adolescente raivosa? claro.

— Não a chame assim. Ela foi sequestrada por…

— Oh, droga! Undyne não atende o telefone! — Exclamou Papyrus, aflito. — Preciso dar a ela as boas novas! A rainha voltou!

— NÃO CONTE À ELA SOBRE MIM! — O desespero acabou por fazer Toriel levantar a voz. Se Undyne soubesse de seus movimentos, colocaria toda a Guarda Real em alerta, o que estragaria completamente a única vantagem que tinha: a surpresa.

— Opsie… — Papyrus ergueu as mãos contra o corpo em uma postura defensiva. — Eu peço perdão, vossa majestade, eu não queria irritá-la…

— Não, não… Me perdoe, meu filho. Não queria ter gritado com você.  — A rainha abrandou o tom de voz. Não queria ter sido rude, mas também não podia deixar que Papyrus estragasse tudo, então teria que pensar rápido. — É só que… Bem, a Undyne é uma mulher muito ocupada, ela é capitã da guarda real. Não há motivo para incomodá-la com algo tão pequeno.

— Pequeno? Vossa majestade, com todo o respeito, a senhora não é pequena! Err… Digo, o retorno de uma monarca perdida não é algo pequeno! Isso exige a atenção da Guarda Real!

— Sim, de fato… Acho que tem razão. — Só havia um jeito de silenciar papyrus e evitar uma catástrofe, e Toriel sabia que se arrependeria. — É por isso que tenho um membro da Guarda Real bem aqui na minha frente.

— O que? — Os olhos do esqueleto brilharam, e ele começou a dar pulinhos de excitação. — Há um membro da Guarda Real aqui? Onde? Onde? Quero cumprimentá-lo!

— Hã… Papyrus… — “Não é possível que ele não tenha entendido…” — Estou falando de você. Acabo de te nomear membro da Guarda Real, minha criança.

— O QUEEEE? — Papyrus permaneceu imóvel, de mandíbula aberta, por quase um minuto. Toriel e Sans trocaram olhares preocupados, mas antes que pudessem tomar alguma atitude, o esqueleto piscou e ergueu seu irmão no ar, girando com ele pela sala. — VOCÊ OUVIU ISSO, SANS? AGORA SOU UM MEMBRO DA GUARDA REAL! WOWIIIIEEEEE!!!

— hehehe… é, eu ouvi, mano! parabéns!

— FINALMENTE! DEPOIS DE TODOS ESSES ANOS DE TREINAMENTO, SURGEM OS RESULTADOS! FINALMENTE ALGUÉM VIU O TALENTO INDISCUTÍVEL DO GRANDE PAPYRUS! NYEH HEH HEH HEH HEH!! — Papyrus pôs seu irmão no chão e pegou de volta o celular. — UNDYNE VAI ADORAR SABER DISSO!

— NÃO!!! — Se antecipando, Toriel toma o celular das mãos do esqueleto, só então percebendo que havia sido rude novamente. — Hã… Eu quero dizer… Que… Bem… Você está em serviço, em uma operação super secreta! O que significa que não pode usar o celular, em hipótese alguma, nem falar com ninguém sobre mim. Entendeu?

— SIM, SENHORA! — Papyrus bate uma alegre continência. — E o que eu tenho que fazer? E quando a missão acaba?

— Você só tem que guardar segredo sobre mim... E acaba quando eu disser que acabou.

— ENTENDIDO!

— ei, irmão… por que não faz pra gente um bocado daquele teu espaguete? a rainha deve tá com fome, daqui a pouco vai ficar só pele e osso.

— ARRRGH! NEM COMECE, SANS! Não se preocupe, majestade! Apesar do senso de humor esdrúxulo do meu irmão, eu, o grande Papyrus, membro OFICIAL da Guarda Real, jamais permitirei que passe fome! — Dito isto, o esqueleto marchou para a cozinha, cantarolando animadamente enquanto separava ingredientes para o preparo do jantar.

— Obrigada, Sans. — Suspirou Toriel, aliviada.

— de nada. tem alguém mais legal que o meu irmão? — Disse Sans, com um sorriso. — ele salvou a rainha de uma nevasca, e foi nomeado oficial da guarda no mesmo dia!

— Eu não duvido que ele tenha um bom coração… Mas é que… No momento, eu preciso de discrição, entende?

— tá tranquilo, o paps é plenamente confiável. mas então, cê tava dizendo que sua guria foi sequestrada?

— Sim. Por Undyne.

— undyne anda sequestrando pessoas? nossa, eu sabia que esse namoro não ia dar em coisa boa… mas por que elas fizeram isso? será que elas pretendem usar a alma da humana pra alguma coisa?

— Eu sinceramente não gosto nem de pensar nisso… Mas é provável que sim. Elas estavam planejando um golpe de estado contra Asgore, talvez precisem do poder da alma para sobrepujá-lo.

— não acho que undyne precise disso pra derrubar o rei. ela também não aceitaria “trapacear” desse jeito. talvez elas queiram garantir que a barreira seja quebrada depois que derrotarem asgore… só falta uma alma, afinal de contas, e como frisk sumiu…

— Não importa o motivo, eu preciso salvar Chara daquelas maníacas!

Fazer conjecturas sobre o destino de sua neta só servia para deixar Toriel ainda mais nervosa. Estava correndo contra o tempo, e Sans era a única pessoa em quem podia confiar; esperava, em nome dos anos de amizade através dos portões das ruínas, que ele a ajudasse.

— “chara”, é?

Soube, pela expressão dele, o que estava pensando. “Está projetando sua filha morta em crianças aleatórias de novo.” — Ele certamente diria, se fosse menos educado. Mas não era este o caso dessa vez.

— É. É o nome dela. Ela é filha de Frisk, e foi ELE quem deu esse nome à menina, então não é o que está pensando. E esse não é o ponto aqui. Eu tenho que salvá-la, mas sei que sozinha não vou conseguir… Então por favor, Sans… Me ajude.

— eu não tava pensando nada. e claro que vou te ajudar, mas primeiro precisamos de um plano de ação. o lugar mais óbvio pra começar a procurar a menina é no laboratório real em terraquente. também tem a possibilidade de ela estar sendo mantida em cativeiro na casa de undyne, na cachoeira³… — O esqueleto se interrompeu de repente e apontou para a TV. — pelo visto a gente nem vai precisar procurar.

Toriel se virou para a TV e viu que Chara aparecia em um palco juntamente com o robô rosa da programação anterior. No palco, as palavras “Dançar ou Morrer” brilhavam em neón vermelho e rosa, e o robô era cercado por fumaça e luzes piscantes. Com um microfone cravejado de diamantes em mãos, o robô anuncia:

BELEZINHAS E BELEZURAS! HOJE SEU APRESENTADOR METÁLICO MAIS AMADO TRÁS ATÉ VOCÊS ALGO QUASE TÃO INCRÍVEL QUANTO MEU CORPO PERFEITO! UM DESAFIO QUE IRÁ FAZER O QUEIXO CAIR E O BUMBUM REQUEBRAR! UM DESAFIO NÃO APENAS PELO CORPO MAIS PERFEITO, QUE TODOS SABEM QUE É O MEU, MAS TAMBÉM PELOS MELHORES MOVIMENTOS! QUE ADIVINHEM, BONECAS, TAMBÉM SÃO OS MEUS!”

O público estava alucinado; assobiavam e gritavam para o robô, que movia os braços para cima pedindo mais aplausos. Ao dar uma visão panorâmica da plateia, a câmera mostra uma espécie de assento “VIP” onde se senta o próprio Rei Asgore, em suas roupas cotidianas.

— Asgore, seu verme patético! Vai ficar aí parado, sem fazer nada, como sempre?! — Toriel indignava-se com a apatia de seu ex-marido, cerrando os punhos.

A DANÇA, OH, A DANÇA! É A VERDADEIRA LINGUAGEM DA ALMA, BONECAS! SERÁ A HUMANA AMBER CAPAZ DE ACOMPANHAR MEUS REFINADOS MOVIMENTOS? É O QUE VAMOS DESCOBRIR… AGORA!! HUMANA!! É DANÇAR!! OU!! MORREEEEEERRRRRR!!

A música ficou mais alta, juntamente com a gritaria da plateia. Mettaton mostrava seus movimentos mais espalhafatosos ao som da forte batida, numa mistura de poses bizarras e luzes piscantes. Após alguns segundos, o robô apontou para a menina, indicando que agora seria a sua vez.

Chara estava pálida, olhando petrificada para o denso público à sua frente. Timidamente, ela começou a flexionar os joelhos e mover os braços, movendo-se no ritmo da batida. Os movimentos simples que se sucederam provocou uma onda de vaias do público, que agora atirava copos, garrafas plásticas e todo o tipo de lixo ao palco.

SEU TEMPO ACABOU, BONECA! SENTE-SE E ASSISTA À VERDADEIRA PERFEIÇÃO!

Após o anúncio de Mettaton, uma descarga elétrica partiu de seus dedos em direção à menina, derrubando-a no chão.

— Não! Chara! — Toriel levou as mãos ao coração, aflita. — Sans, você sabe onde fica esse palco?

— hum… é, eu sei, mas…

— Me leve até lá!

— ei, calma aí… é que a gente não pode invadir o palco de mettaton assim...

— AGORA. — Toriel segurou o esqueleto pela gola da camisa e apontou para a TV.

— ah… okay… relaxa aí… eu conheço um atalho.

Com uma travessa de espaguete quente em suas mãos enluvadas, Papyrus retornou à sala. Antes mesmo que pudesse anunciar que sua (não tão) deliciosa refeição estava pronta, se deu conta de que a casa estava vazia.


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Notas finais do capítulo

(1) No canon, o diálogo final dá a entender que Papyrus não sabia quem era Toriel até vê-la após a batalha com ômega Flowey na rota True Pacifist, mas aqui eu fiz uma pequena mudança: ele chegou a conhecê-la quando criança, e nunca se esqueceu de seu jeito bondoso e educado.

(2) Há muitas controvérsias a respeito da idade dos irmãos esqueletos; alguns dizem que Sans é o mais velho, outros dizem que é Papyrus. Como no jogo há algumas evidências que comprovam as duas hipóteses, escolhi colocar Papyrus como mais velho.

(3) Undyne não teve sua casa queimada, ou a reconstruiu por não aguentar morar com Papyrus e Sans. Ambas as versões são igualmente válidas.



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