Amem escrita por Liz Setório


Capítulo 30
Vida Nova


Notas iniciais do capítulo

Eis aqui o capítulo que acredito ser o penúltimo. Espero que gostem ♥

Boa leitura!



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Acabei decidindo desviar o assunto. Aquele ainda não era o momento para falar com Rafael sobre Miguel. Eu ainda não me sentia seguro para tal e também não saberia como o meu amigo reagiria.

—  Só estou entediado... Mas você disse que tinha algo para me contar. O que é?

— Recebi uma proposta do abade, mas não sei se aceito…

— Qual proposta? — indaguei curioso.

—  Sou doutor em Filosofia e fui chamado pra dar aulas na Universidade Católica. No caso, irei assumir o lugar de um professor que acabou de se aposentar...

— Essa proposta é maravilhosa, Rafa! Não entendo o motivo da dúvida.

— Eu terei que deixar o mosteiro — declarou meio desanimado.

Se Rafael aceitasse ser professor da Universidade Católica, seria bom para nós dois. Isso tornaria menos doloroso o fato de eu precisar me afastar dele, pois com certeza ele estando fora do mosteiro conseguiria suportar melhor a nossa separação.

— Isso não é ruim. Você vai poder sair daqui, ver gente nova e seguir com a sua vida. Você já tem tanto tempo nesse mosteiro...

— Não sei se quero isso… Estou tão acostumado a viver aqui… E além do mais… Além do mais… Tem você… Eu não quero te abandonar.

Era bonito ouvir aquilo de Rafael, eu me sentia feliz pela preocupação dele comigo, todavia, ao mesmo tempo ficava triste, pois sabia que não poderia corresponder o amor dele.

— Não se preocupe comigo, eu vou me virar — assegurei.

— Quando você ficar triste quem vai te consolar? Quem vai ficar aqui esperando o dia do amor platônico transformar-se em recíproco… — expôs num tom de voz melancólico.

Se pudesse com certeza corresponderia o sentimento de Rafael por mim. Entretanto, aquilo não dependia do meu querer. Rafael era um homem bom, bonito por dentro e por fora, porém eu não poderia amá-lo, o meu coração já pertencia a Miguel e era impossível mudar isso. Afinal, não se escolhe quem se ama, mesmo que Miguel não tivesse retornado, ainda assim eu não deixaria de amá-lo, pois o meu amor por ele era imenso e a esperança de poder viver este amor, era o que me mantinha vivo.

— Rafael… Eu… — Soltei um longo suspiro.

— Eu tenho paciência, Paulo — interrompeu.

—  Eu não tenho como te corresponder e mesmo que tivesse, como viveríamos isso? Namorar contigo aqui seria pedir para ser excomungado… Com certeza o abade descobriria tudo em dois tempos.

— Se o problema é o abade, então venha comigo, vamos embora. Eu desisto de ser professor da Universidade Católica, nós dois pedimos redução ao estado laical¹… Você me dá uma chance de te conquistar… Só uma e eu prometo lhe fazer feliz pelo resto da sua vida… E daqui há algum tempo o nome Miguel não significará mais nada para você.

Era possível perceber um certo desespero em sua voz. Sentia-me um pouco culpado por tudo aquilo. O que eu havia feito para despertar aquele amor? Em algum momento alimentei esperanças de Rafael ter algo comigo?

— Rafa… Eu não posso ir com você. É sério, eu... Simplesmente não posso ir…

— Paulo, você vai ficar aqui? Vai ficar esperando eternamente o mágico dia do São Miguel vim te salvar? — interrogou elevando o tom de voz.

Dava para perceber o quanto ele estava nervoso. Meu Deus, como eu contaria a Rafael que o mágico dia já havia chegado?

— Por favor, se acalme — pedi.

— Como eu posso ficar calmo? Você não consegue dar valor a alguém que te ama e está ao seu lado, mas valoriza quem nem está aqui — pontuou indignado.

— Rafa… Você fala como se as coisas fossem simples, como se eu tivesse escolhido amar Miguel…

— Eu também não escolhi te amar… Por favor me dê uma chance — argumentou, acariciando levemente o meu rosto.

Segurei a sua mão e a levei até minha boca, beijei a mão de Rafael e em seguida, ainda segurando a sua mão, me desculpei:

— Por favor, me perdoe… Me perdoe…

— Por que você não me dá uma chance, Paulo? Por que não tentamos? — interrogou com a voz meio embargada.

Fiquei em silêncio e soltei a sua mão, não sabia como responder, como dizer que Miguel estava ali.

Diante do meu silêncio, Rafael foi aproximando seu rosto do meu, enquanto eu permanecia imóvel, talvez pela culpa que sentia por estar, mesmo sem querer, ferindo os sentimentos do meu amigo. Contudo, quando já estávamos quase nos beijando, delicadamente virei o rosto e depois, num gesto rápido me levantei.

— Desculpe… — disse antes de deixá-lo sozinho.

Saí correndo e nem ousei olhar para trás. Eu gostava muito de Rafael, gostava dele o máximo que alguém poderia gostar de um amigo, por isso, tinha tanto medo de magoá-lo ainda mais.

Voltei para o meu quarto extremamente perturbado.

— Miguel… Pode sair — sussurrei.

Ele  já vestido, obedeceu e sentou na cama.

— O que houve, Paulo? O que aquele homem te falou? — interrogou em tom de preocupação.

— Há coisas que eu não te contei… Aquele homem chama-se Rafael e… E é apaixonado por mim — disse, sentando ao lado de Miguel.

— Você sente alguma coisa por ele?

Naquele momento, percebi na voz de Miguel o mesmo ciúme de anos atrás, quando ele falava sobre o Flávio. Limitei-me a fazer um gesto negativo com a cabeça.

— Então por que você está tão perturbado?

Contei a Miguel sobre os cuidados que Rafael me deu desde quando cheguei ao mosteiro, sobre como a nossa amizade foi se fortalecendo… Também cheguei a mencionar o beijo que Rafael havia roubado de mim há algum tempo e é claro, não deixei de fora a minha última conversa com Rafael.

— É… Eu entendo bem esse cara… É difícil não amar um homem como você… Você precisa encontrar uma forma de dizer a ele que você vai sair daqui para ficar comigo.

— Me dê um tempo… Ele já está tão triste por causa do amor platônico que sente por mim… Não quero piorar ainda mais as coisas.

— Dois dias — respondeu de forma firme.

Assenti com a cabeça. Não poderia solicitar um prazo maior, seria injusto com Miguel. Nós, por minha culpa, já havíamos perdido muito tempo e aquele era o momento de eu ser corajoso e explicar tudo da melhor forma possível a Rafael.

Miguel se aproximou de mim e me deu um rápido beijo.

— Logo estaremos juntos de novo e ninguém vai nos separar — garantiu.

[...]

Um dia já havia se passado e eu ainda não tinha tido coragem de conversar com Rafael. A todo momento, pensava em como faria aquilo, que palavras usaria… Entretanto, nenhuma palavra, nenhum jeito parecia adequar-se à situação.

Aquele dia passou e eu falhei, porém no dia seguinte, encorajei-me e após o almoço, bati na porta de Rafael.

Ele demorou um pouco para me atender, a nossa relação estava meio abalada, desde a nossa última conversa, nós não nos falávamos direito.

— Entre, Paulo a porta está aberta — pediu.

— Nós precisamos conversar. Aconteceu algo que eu preciso te contar — revelei.

— O que houve? Eu também tenho algo para te contar.

— Conte primeiro então. É sobre a proposta do abade não é?

— Sim — murmurou.

— Qual a sua decisão? — perguntei visivelmente curioso.

— Eu vou… Não há mais sentido ficar aqui… Te ver só me faz sofrer… Eu te amo, Paulo e faria qualquer coisa pra você me amar também — disse com lágrimas nos olhos.

— Rafael, venha cá, me dê um abraço.

Num primeiro momento, ele permaneceu imóvel, porém depois veio até mim e me abraçou.

— Por favor, não chore — pedi, findando nosso abraço.

Rafael enxugou as suas lágrimas com as mãos estavam terrivelmente trêmulas. Ele estava muito abalado e eu tinha a noção de que as minhas negativas o magoavam muito.

Diante disso, decidi resolvi não falar nada sobre Miguel.

— Você disse que queria me contar uma coisa. O que era?

Droga. Eu estava contra a parede. Pensei um pouco e acabei inventando uma mentira mal elaborada.

— Ah, é… É besteira… Eu… Eu vou ser tio de novo.

Rafael me olhou desconfiado, obviamente ele percebeu a minha mentira.

— Parabéns... Mas eu não entendo porque você está me contando isso… Quer dizer, o porquê de você ter vindo até aqui me contar isso… Eu pensei que fosse algo sério.

— Eu estou feliz, queria dividir a minha felicidade contigo, é só isso.

— Paulo, você está mentindo não é?

Eu não tinha escapatória, o melhor seria revelar logo a verdade. Afinal, eu não queria que Rafael ficasse com raiva de mim caso acabasse descobrindo a verdade por outra pessoa.

— Sim, estou — admiti envergonhado.

— Então me conta a verdade, por favor.

— A verdade é tão complicada, Rafa… Eu menti, porque.... Porque… Rafa… Eu… Eu gosto de ti e odeio te magoar, por isso menti… A verdade… É… O… Miguel está aqui — disse a última frase de uma vez, sem gaguejar.

— Aqui? Aqui no mosteiro? — interrogou incrédulo.

— Não, agora ele está na cidade, hospedado em um hotel, mas ele esteve aqui, nós dois conversamos e decidimos ficar juntos. Em breve, eu também irei embora daqui.

— Como ele te achou?

— O padre Flávio contou onde eu estava.

Rafael ficou em silêncio por algum tempo, parecia estar processando a informação.

— Paulo… O que eu posso te dizer? Minha vontade era te pedir pra ficar, mas isso é impossível… Eu… Eu… Por favor, me deixe só.

Atendi ao pedido dele e deixei o quarto. A minha presença ali poderia piorar as coisas.

 Mais tarde naquele mesmo dia, conversei com o abade e expressei a ele a minha vontade de deixar o mosteiro. Ele me pediu para esperar uma semana, pois segundo ele, eu precisava refletir sobre a minha decisão e se após aquele período eu ainda desejasse sair do mosteiro, seria enfim liberado.

Pedi autorização para usar o telefone e liguei para o hotel onde Miguel estava, fingindo conversar com Ângelo, dei a notícia ao meu amado.

— Ângelo, daqui a uma semana eu vou sair daqui. Onde nos encontraremos?

— Vou te dar o endereço do hotel, meu amor. Você vem pra cá e daqui a gente vai embora.

Anotei o endereço e finalizei a ligação.

Aquela semana passou de forma lenta, eu contava os segundos para estar com Miguel.

[...]

Um dia antes de eu ser liberado para sair do mosteiro, Rafael foi até o meu quarto falar comigo.

— Amanhã você vai embora e dentro de um mês, as aulas da faculdade começarão e eu vou assumir o meu posto de professor.  Provavelmente a gente não vai se ver mais né. Então, eu… Eu… Gostaria de me desculpar… Eu tenho sido bem infantil contigo, essa semana fiquei te ignorando, te evitando… Desculpe, Paulo eu queria que você me amasse, mas… Mas tem o Miguel, você ama a ele e não a mim.

— Rafa, não precisa se desculpar… Nós somos padres, ninguém nos ensina a lidar com essas coisas de amor. Eu só espero que você encontre alguém que te ame, porque você é um homem maravilhoso e merece todo o amor do mundo.

— Eu tô tão perdido, Paulo. Na verdade eu sempre estive perdido… Pensei ter vocação para o sacerdócio, mas não tinha… Descobri isso muito tarde e quando vi estava namorando com aquele seminarista e depois… Depois eu já estava aqui… Sempre fui empurrado pela vida e agora a vida está me jogando para ser professor e eu vou. Afinal, vai ser bom pra mim sair daqui. Na verdade, nunca quis ficar aqui… Sempre me senti tão preso nesse lugar, mas sei lá, talvez eu tenha merecido essa prisão.

— Não, você não mereceu ficar preso aqui. Aqui tem homens ruins, homens que molestaram crianças e mulheres, homens corruptos… Mas você não é como eles, você é uma pessoa boa e merece tudo de melhor.

Rafael começou a chorar copiosamente e eu sem saber o que dizer, apenas deixei ele chorar, enquanto o envolvia em um delicado abraço. Após algum tempo o meu amigo se acalmou e me garantiu que usaria o emprego de professor apenas para juntar um dinheiro, depois iria se desvencilhar da Igreja e procurar outro emprego.

[...]

No dia seguinte, acordei cedo, em realidade eu sequer havia dormido, estava louco para poder estar nos braços de Miguel novamente e desta vez ficaríamos juntos até o fim dos nossos dias.

Passei na sala do abade e ele liberou a minha saída. Aproveitei para lhe perguntar como se dava o processo de redução ao estado laical.

— É um processo longo e extremamente burocrático. O senhor tem certeza disso?

— Absoluta.

— Então eu te aconselho a falar com o bispo, pode ser o bispo da sua diocese de origem, o Meirelles no caso, ou pode ser com o bispo daqui ou o bispo de onde o senhor vai morar agora.

— Ok, muito obrigado — disse, enquanto deixava a sala dele.

— Paulo, espere — pediu.

Quando olhei para trás, o abade disse em tom sério e até um pouco assustador:

— Mas não pense que a redução irá lhe transformar num ex padre, isso não existe, meu filho. O sacramento recebido no dia de sua ordenação é irrevogável.

Olhei para o abade e não disse nada, suas palavras me perturbaram bastante.

Deixei a sua sala e fui até o quarto de Rafael.

— Você já está indo? — indagou com voz de sono.

— Sim.

— Me dê um abraço.

— Você não precisa pedir isso.

Dei um forte abraço em Rafael e depois lhe entreguei um papelzinho.

— O que é isso?

— É o número do meu celular, eu quero manter contato com você.

— Paulo… Eu não prometo te ligar, não sei se isso vai ser bom pra gente.

— Mas guarde o número, por favor.

— Tudo bem.

Dei um beijo no rosto de Rafael e finalmente deixei o mosteiro.

[...]

Miguel me esperava na recepção do hotel, seu rosto foi modificando-se de feição rapidamente, saindo da preocupação e adquirindo uma expressão mais leve conforme eu me aproximava.

— Agora somos só nós dois — disse quando cheguei perto dele.

Ele acariciou levemente o meu rosto e fez menção de me beijar, todavia eu não deixei. Eu preferia evitar demonstrações públicas de afeto, tinha medo de que algum homofóbico louco pudesse nos atacar.

— Aqui não — sussurrei.

— Paulo, meu amor me diz uma coisa: você se decidiu? Quer ficar mesmo comigo?

O tom de voz dele demonstrava uma intensa preocupação, provavelmente Miguel tinha medo que eu pudesse deixá-lo novamente.

— Miguel… Meu anjo. Eu juro por Deus que nunca mais vou te abandonar.

— Uma jura assim, ainda por cima com o nome de Deus, se descumprida é até pecado.

— Pois desse pecado estou livre — assegurei.

— Se é assim, tenho uma surpresa pra você.

— Uma surpresa?

— Sim.

— Que tipo de surpresa?

— Se eu contar deixa de ser surpresa.

— Você não vai me dar nem uma diquinha?

—  Tá bom, só uma dica: tem a ver com a nossa viagem — respondeu de forma misteriosa.


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Notas finais do capítulo

Redução ao estado laical¹: dispensa que o padre recebe das suas obrigações sacerdotais.

Referência: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19710113_dispensatione-oblig_po.html



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