Amem escrita por Liz Setório


Capítulo 20
Servo e Representante de Deus


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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—  Eu irei pra um mosteiro no Sul do país.

— Que mosteiro? O Mosteiro do Silêncio?

Durante o seminário ouvi falar sobre este lugar. Segundo, o meu professor na época, qualquer religioso católico poderia fazer parte do Mosteiro do Silêncio,  visto que não era feita nenhuma investigação prévia da conduta enquanto religioso. Então, a maioria dos presentes naqueles lugar haviam cometido heresias e/ou crimes como a pedofilia, por exemplo.

— Sim.

— Paulo, você tem certeza?

— Sim, isso é o melhor a  fazer nesse momento.

— Você sabe que eles são rígidos, né?

Como o próprio nome do lugar já sugeria, falava-se pouco ali. A maioria dos  que moravam no mosteiro faziam voto de silêncio e os que não faziam, evitavam falar, pois aquele lugar, era um lugar de conexão com o divino e de pura reflexão, diziam que quem saía dali, transformava-se em uma nova pessoa, completamente renovada e ligada a Deus.

O Mosteiro do Silêncio, era tido como um lugar de arrependimento. Os que ali desejavam ingressar assumiam o compromisso pessoal de não pecar mais.

— Sei. Ouvi falar deles no meu tempo de seminário, conheço a maioria das regras que eles têm. Acredito que nesse momento, estou precisando de rigidez.  Pretendo ficar lá ao menos pelo tempo mínimo permitido, dois anos, aí depois vejo que rumo dou a minha vida.

— Pelo visto a sua decisão está tomada. Talvez, isso seja até melhor pra você, porque perto do Miguel vai ser ainda mais difícil pra você se decidir.

— Com certeza... Ele me confunde ainda mais.

— Pense com calma. Não tome nenhuma decisão precipitada — aconselhou.

[...]

Quando cheguei em casa encontrei Miguel completamente desnorteado. Ele estava com os olhos lacrimejando, provavelmente, ele havia chorado tanto quanto eu.

Tentei evitá-lo, queria ficar sozinho, porém antes que eu pudesse me trancar no nosso quarto, meu amante me chamou, tinha a voz vacilante, era como se não quisesse dirigir a palavra a mim.

— Por favor, diga que não tem a ver com nós dois — pedi quase em súplica.

Eu amava muito Miguel, todavia não aguentava mais falar da nossa relação, aquilo me fazia sofrer, pois a cada dia, sentia-me ainda mais culpado por amá-lo.

— Não, não tem nada a ver com nós. Ao menos não diretamente.

— Como assim? O que houve? — interroguei preocupado.

— Eu não gosto de ser o portador de más notícias, mas… A Michele ligou e contou que o seu pai está muito doente… Ele diz estar sentindo a morte e quer que você vá dar a extrema unção nele.

O filme de terror que era a minha vida não parava de piorar. Meu pai era um péssimo pai. Ele havia me maltratado muito na infância e adolescência, nós nunca tivemos uma boa relação. Nem que eu fosse o padre mais correto e mais puro do mundo não conseguiria dar o perdão final a ele, até porque, infelizmente eu ainda não havia o perdoado inteiramente.

— Meu Deus! Você sabe que não posso fazer isso, estou extremamente impuro para exercer qualquer atividade relacionada ao ofício de padre.

— Mas o seu pai não sabe disso…. E não é um bom momento para ele saber.

— Miguel, eu não acho certo fazer isso…

— Paulo, sei que essa sua falta de vontade em ir tem a ver também com a má relação entre você e seu pai, mas ele está morrendo… Pelo amor de Deus, tente levar isso em conta. Talvez ele tenha se arrependido e só queira te dar adeus — argumentou.

— Depois falamos sobre isso — declarei, dirigindo-me para o quarto.

Miguel não falou mais nada e me deixou seguir.

Deitei na cama e comecei a chorar. Estava extremamente confuso, era muita coisa de uma só vez. Nunca morri de amores pelo meu pai, entretanto sabia que ao contrário de mim, minha mãe o idolatrava. Ela nunca me perdoaria se eu não fosse até lá dar a bendita extrema unção.

[...]

Quando saí do quarto, encontrei Miguel preparando o almoço.

— Você quer ajuda?

— Não, amo… Paulo, obrigado.

— Eu vou na rodoviária, pretendo ir para a cidade dos meus pais hoje a noite, quero comprar logo a passagem para adiantar.

— Compre duas.

— Duas?!

— Eu nunca iria te abandonar num momento tão delicado.

— Obrigado. Você é um verdadeiro anjo.

O meu amor me fitou com um olhar carregado de ternura. Meu maior desejo naquele momento era beijá-lo. No entanto, contive-me, aquilo não seria nem um pouco apropriado.

— Eu vou ligar pra Michele e ver como as coisas estão.

— Ok. Eu vou lá no restaurante avisar que não poderemos ir por alguns dias.

Liguei para minha sobrinha e ela me explicou a situação de papai. Ele estava com tuberculose, seu caso era muito sério e avançado, provavelmente não resistiria.

— Tio, o vovô tá mal e toda hora pergunta pelo senhor. Minha mãe sugeriu até chamar outro padre pra dar a extrema unção, mas ele não quer. Diz que tem que ser o senhor, porque tem que te pedir perdão… Tem que pedir perdão a Deus também...

— Diga a ele que se acalme. Eu vou fazer o possível pra chegar aí o mais rápido possível.

— Pelo amor de Deus não esqueça a batina — avisou.

— Quanto a isso vou ver o que faço.

Desliguei o telefone e decidi ir na casa de Flávio antes de ir na rodoviária. Contei a ele tudo que estava se passando e pedi uma batina emprestada, visto que as minhas haviam sido deixadas para trás.

— Não é certo, mas devido às circunstâncias vou te ajudar.

Depois de alguns instantes, Flávio veio até mim com um pouco de óleo de oliveira, duas batinas, uma sobrepeliz, uma estola roxa e uma caldeirinha acompanhada de aspersório.

— As coisas estão tão tortas que nem o óleo é puro de verdade… Ele foi benzido pelo nosso querido bispo Meirelles, aquele maldito pecador. Enfim, aqui está o que me pediu, botei duas batinas pra no caso de uma sujar.

— Obrigado, padre. Espere que Deus te recompense por sua bondade.

Felizmente ao chegar na rodoviária, consegui encontrar duas passagens ainda para aquele dia. As passagens eram para o fim da tarde. Sendo assim, por volta das 20h eu estaria na minha cidade natal.

[...]

Ao voltar para casa, me surpreendi com Miguel vestido com uma batina.

— Por que você se vestiu assim?

Foi uma surpresa estranha vê-lo novamente vestido como padre. Um flashback passou na minha mente, fazendo-me lembrar de cenas boas e ruins, envolvendo o sacerdócio e o meu exercício pecaminoso dele, juntamente com Miguel.

— Porque sei que você vai precisar estar de batina. E sei o quão difícil isso vai ser pra você, pensei que assim eu poderia te dar ao menos um apoio moral.

Aquela atitude foi muito fofa. Aquilo me fez perceber que apesar de tudo, Miguel me amava e me apoiaria em qualquer circunstância.

— Eu já tinha até esquecido dessa batina. Fui na casa do Flávio pedir uma emprestada, ele me deu duas, o óleo de oliveira e a estola — comuniquei, enquanto mostrava as coisas a Miguel.

—  Ótimo, então assim que chegarmos na rodoviária daqui nos trocamos pra não correr o risco de ninguém da sua cidade te ver sem batina.

— Meu medo é alguém daqui nos ver de batina. Acho melhor a gente se trocar lá, vamos chegar de noite, vai ter pouca gente na rodoviária, é só a gente correr e se trocar logo.

— Você tem razão, seria muito complicado explicar as batinas pro pessoal daqui.

[...]

Viajar novamente com Miguel foi algo estranho. Eu simplesmente não sabia como agir. Em um determinado momento, creio que devido a minha fragilidade emocional, apoiei a cabeça sobre o ombro dele. Naquele momento, até o silêncio da viagem pareceu intensificar-se. Eu me sentia estranho, afinal de contas, aquela era uma demonstração de carinho pública entre mim e o meu amor.

A escuridão do ônibus fazia a minha vontade de beijar Miguel aumentar. Houve então, um momento em que não consegui mais controlar o meu desejo. Levantei a cabeça e acabei iniciando um beijo, um beijo curto, pois o medo de ser percebido pelos outros passageiros do ônibus, era ainda maior que o meu desejo por Miguel.

Findado o beijo, nos encaramos por um instante. Eu não tinha coragem de dizer nada, mas o meu amante, ao contrário de mim, parecia sempre ter coragem para tudo. Então, rompendo a quietude do ambiente, sussurrou:

— Vai ser difícil te esquecer.

Não respondi nada, apenas fiz um rápido carinho em sua face. Para mim, também seria difícil esquecê-lo. No entanto, era necessário. Aquele amor me causava confusão, eu precisava de tempo para pensar e me conectar com Deus, o Pai que nunca havia me negligenciado ou abandonado.

[...]

Quando chegamos em nosso destino, rapidamente fomos ao banheiro, precisávamos colocar as batinas o quanto antes.

Assim que me olhei no espelho e me vi novamente como padre, senti uma coisa esquisita. Eu havia esquecido como era a minha imagem de batina.

Miguel não demorou muito a deixar a cabine do sanitário e vir até mim.

— Está pronto, padre? — indagou.

Apenas assenti com a cabeça.

Deixamos o banheiro e logo apareceu um homem perguntando para onde íamos e se oferecendo para nos levar até nosso destino.

— Nós vamos pra casa de dona Jussara, fica perto da escola — expliquei.

— Ok.

— Quanto vai ficar? — quis saber Miguel.

— Daqui até lá geralmente eu cobro uns 30 reais, mas como é para vossas santidades, eu faço por 20.

— Reverendíssimas — corrigiu Miguel em um sussurro que demonstrava uma leve irritação.

—  Então nós vamos com o senhor — declarei.

Nós sequer tínhamos opção, o motorista era o único a oferecer transporte ali. Provavelmente seus companheiros já haviam ido embora. O relógio já marcava 21h.

Quando chegamos o carro parou a poucos metros da residência de minha mãe. Em pouco tempo já estávamos frente à porta, dei duas batidas e logo mamãe veio nos atender. Assim que me viu ela desabou em lágrimas e eu também. Fazia muito tempo que não nos víamos. Mamãe me deu um forte abraço, abraço esse carregado de saudade.

Após se soltar do meu abraço, ela pediu a benção a Miguel e depois a mim. Fiz uma curta apresentação dos dois, disse que Miguel era um amigo de muito tempo que estava me dando apoio nesse momento difícil.

Sempre achei estranho minha mãe me pedir a benção, deveria ser o contrário, todavia ela sempre justificava que ter um filho padre era uma honra, e, o ato de me pedir a benção, a fazia se lembrar do privilégio de ter, em suas palavras: colocado no mundo um servo e representante de Deus.

— Venham, entrem — pediu.

Já dentro de casa, ela reclamou por Michele não ter avisado sobre a minha ida até lá.

— Não, não brigue com ela — pedi.

— Tudo bem… Eu estou muito feliz de te ver, apesar do motivo que te traz aqui não ser nada bom.

— Eu prometo que não demorarei mais tanto pra vir aqui. Estou com saudade de tudo daqui... Até do perturbado do meu irmão.

— O Ângelo foi dormir no hospital com seu pai.

— Falando em dormir, nós dois precisamos muito.

— Vem cá, vocês não se importam de dividir o quarto não, né?

— Não —  respondi.

— Ainda bem, porque agora nós só temos um quarto sobrando. Seu pai fez uma academiazinha no quarto que era da Mafê e o que era seu e do Ângelo, agora usamos como quarto de hóspedes.

— A senhora pode ficar tranquila. O Paulo e eu somos muito amigos, não há problema nós dividirmos o quarto.

— E quanto a dividir a cama? — questionou minha mãe.


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