Luisa Parkinson: A Companheira Fantástica escrita por Gizelle PG


Capítulo 80
O Shopping no fim do universo


Notas iniciais do capítulo

Oi gente!

Como prometido, começa hoje uma nova aventura! -que na verdade é um episódio de Natal (o primeiro da temporada da Lulu! UHUUUUUL )
É. Eu sei que não é época de Natal, mas segue o bonde kkkkk (afinal de contas, com uma máquina do tempo, o Natal pode ser qualquer dia que quisermos!)



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Poderia fazer qualquer coisa, ela pensou, entrando na cozinha de supetão. Poderia, em fim, escrever seu livro. Talvez até chegasse a se basear em algumas das coisas maravilhosas que conferiu durante todas as aventuras que viveu junto do Doutor e Melissa. Quem sabe a inspiração que precisava para começar não estaria mais próxima do que ela imaginava? Divagando consigo mesma, puxou uma cadeira e sentou-se á mesa, sonhadora. Se o livro emplacasse, precisaria de um bom editor. E, quem sabe, alguns contatos para começar a divulgá-lo. Puxa! Escreveria vários volumes... Começaria com um inicio simples como talvez: “Era uma manhã realmente encantadora no...” Hã... Em algum lugar. Bom, em geral este era o problema. Antes de qualquer coisa, precisaria criar um enredo com tramas elaboradas e surpresas eletrizantes. Esquematizar um elenco cheio de personagens criativos e únicos, de modo que qualquer pessoa que ouvisse uma referencia dos livros, lembraria imediatamente do nome de Luisa Parkinson. Bom, depois de bolar um bom roteiro, deveria se preocupar exclusivamente em dar um começo impactante para a história. Então um meio e, muito provavelmente, um fim. Sim! Isso seria bom... Criar o primeiro volume seria sensacional! Seria um jeito incrível de deixar sua marca no mundo...

Alguma coisa caiu na pia e ela ergueu o olhar para uma pilha de louças amontoadas de modo desleixado. Engraçado... O que o Doutor dissera mesmo sobre a cozinha? Algo como “não se preocupe, ela se limpa sozinha”.

—Bobo! –a menina riu, erguendo-se da cadeira e caminhando até a pinha de pratos sujos. –Poderia pelo menos ter dito a verdade sobre isso...

Entretanto, um trocadilho engraçado aconteceu com ela, pois Luisa Parkinson: escritora renomada do reino dos devaneios... “Um verdadeiro exemplo para a sociedade atual... Estava ansiosa para o que o futuro lhe reservaria... Mas por hora, contentou-se em ser útil e terminar de lavar a louça.

E, como nunca fazia uma só tarefa doméstica sem cantar... Bom, digamos que a TARDIS amanheceu ainda mais musical naquele dia.

As Loucas horas com você... E eu vivo a sonhar...” –cantava em looping, a musica “Loucas Horas”, do Guilherme Arantes. Houve uma altura do campeonato, em que ela estava tão entretida com seus afazeres, que nem percebeu o Doutor se aproximar da porta e ficar observando-a cantarolar a música, enquanto trabalhava.

Depois de uma longa espera, ele não conseguiu mais se segurar:

—Oi! –disse, inesperadamente. A garota levou um susto tão grande que seu coração martelou no peito.

—AI! –ela gritou, indignada, levando a mão ao peito e derrubando um prato, durante a ação. O Doutor segurou o riso. –Você quase me matou de susto! Droga... Ainda por cima quebrei um prato por causa da sua falta de juízo.

—Não esquenta –o Doutor ria deliberadamente. –Eu tenho muito mais de onde veio esse. Na verdade, tenho um amigo que vende bugigangas de nave em nave. Ele passa por aqui toda quarta feira... Na verdade, estou curioso para saber qual será a novidade desta semana...

—Sério? Um vendedor de bugigangas no espaço?

—O nome dele é Legster. Ele é gente boa. Um pouco doido varrido... Mas é camarada.

—Só podia ser! –Luisa riu.

—É, mas ser mais ou menos doido nunca tirou a importância de ninguém.

Até hoje—Luisa enfatizou. –Deixe ele ter um papinho breve com Melissa e você verá quem tira a importância de quem...

—Verdade. –o Doutor concordou, sorrindo. –A propósito, bela música.

—Música? –Luisa demorou alguns segundos para fazer cara de indignação. –Você estava me espionando!?

—Espionando? EU? Mas que indelicado! –disse, teatralmente. –“Eu espionando alguém...” Rá! Essa é boa... –ele riu. Luisa pôs as mãos nos quadris.

—Francamente, Doutor... Você já foi mais cuidadoso.

—Bom, se você diz –ele ergueu as mãos em sinal de rendição. –Mas, quando essa conversa acabar, eu vou lembrá-la, com prazer, de que foi você quem afirmou isto.

—Seu bobo! –ela lhe deu um breve cutucão no braço, para descontrair. –Sabia que é muito feio espionar os outros?

—E será que você sabia que a minha cozinha é A.U.T.O.M.Á.T.I.C.A? –ele contrapôs com senso de humor.

—É? E de que tipo de sistema estamos falando? Eu procurei por um botão para ligar as máquinas, mas não encontrei nada além vestígios de uma bela “conversa fiada sua”.

—Entendo seu ponto de vista... Mas será que você lembrou de regar as plantas hoje? –ele afastou-se, bem humorado, como se para demonstrar alguma coisa que o deixaria em vantagem sobre ela. Luisa cruzou os braços, duvidosa. O Doutor caminhou até a mesa e remexeu superficialmente na terra que continha duas flores roxas exóticas de algum planeta diferente. Logo da lateral interna do vaso, ele puxou para cima um controle pequeno e mostrou-o a ela. –Eu sempre o mantenho fora de vista. Você sabe... Para não ostentar. –e apertou o único botão no centro do dispositivo que era cinza e parecia-se muito com uma pedra. –E Voilà! Tudo está funcionando como eu havia dito.

Luisa olhava para as máquinas funcionando sozinhas. Afastou-se de súbito de perto da pia quando uma garra de metal, parecida com uma mão humana, saiu de dentro de uma das gavetas do armarinho e começou a lavar os pratos. Mudou de lugar, mas logo teve que fazê-lo novamente, pois sentiu uma cosquinha perto do tornozelo e deparou-se com uma vassourinha amarela de cabo curto, varrendo sozinha os cacos de vidro do prato que se espatifara no chão, diretamente para uma pá. Luisa apoiou-se nos joelhos e sorriu para a cena, encantada com a magia daquele lugar; então se deparou com o olhar do Doutor sob ela e mudou rapidamente de investida, tentando parecer o menos impressionada possível, o que sinceramente, estava sendo uma tarefa um bocado difícil.

—Fascinante, não é? –ele reforçou, já que ela não dera o braço a torcer.

—Não entendo porque você ainda faz isso –ela interpôs. –Não precisa ficar se exibindo pra mim. Eu sei muito bem do que você é capaz.

—Não estou me exibindo. Estou apenas demonstrando como as coisas funcionam por aqui. –justificou-se, arremessando o dispositivo para cima e, logo em seguida, voltando-o para dentro do vaso. –É melhor não molhar essa planta. Não queremos que o dispositivo de curto circuito...

—Mais coitadinha! Ela vai acabar morrendo de sede se não a regarmos... Não pode achar outro lugar para guardar esse negócio?

—Não é só por causa do dispositivo. Essa planta não se alimenta de água. Ela veio do Cinturão de Comotron. Lá, as flores roxas se alimentam de uma só coisa...

—E o que é?

—Restos que normalmente são descartados. –o Doutor respondeu.

A garota fez cara de nojo.

Argh! E você ainda deixa ela ficar na sua cozinha?

—Mas ela está aqui á propósito. A cozinha forma muita gordura e micróbios também, durante o processo da preparação dos alimentos. Ela adora isso. E, por ser um tipo de “aspirador natural”, ela aspira e ingere tudo que torna a cozinha suja, ajudando na limpeza. Em troca, ela exala um perfume de chulé vencido, no ar, para cada porção que engole. 

Luisa tapou imediatamente o nariz.

—Não acho que foi uma boa troca. Acho que você ainda sai perdendo... –ela insistiu, segurando distraidamente uma espátula de plástico nas mãos. -Por que não a troca por um lírio ou por um buquê de margaridas?

—Por que elas não absorvem a sujeira da minha parede! –o Doutor retorquiu em tom óbvio, retirando-lhe a espátula das mãos. Logo depois sorriu, convencido. –Falando nisso, acho que vou comprar de Legster uma das Flores Cantantes de Grifânia. Gostei muito mais da minha cozinha com uma voz melodiosa alegrando o ambiente.

Luisa corou ao ouvir aquilo. Sabia que ele estava se referindo a ela, apesar de que não usaria exatamente o adjetivo “melodiosa’ para descrever sua própria voz... Ficou lisonjeada com o elogio.

—Ainda bem que foi só Guilherme Arantes. Se fosse Elton John ou Michael Jackson, garanto que sua reação não seria tão espontânea.

O Doutor soltou um muxoxo.

—Por que fica insistindo em dizer que não canta bem? Pode não ser uma Beyoncé, mas você tem que admitir que a sua voz até que é bem afinadinha.

Luisa o encarou dos pés á cabeça, estranhando-o.

—Sério, porque está sendo tão gentil?

—Eu sou sempre gentil com você.

—Sim. Mas hoje está ao extremo...

Ele arrumou a postura.

—E isso é ruim?

—Não! –ela sorriu, embaraçada. –Na verdade, eu gosto muito disso... Mas se você continuar com essa mania, eu vou acabar ficando mimada de verdade.

A reação dele foi totalmente inesperada.

—Que bom! Talvez isso a anime e a faça cantar outra música pra mim.

Luisa fez um bico de tirar sarro.

—Você está blefando! Só pode estar brincando comigo... –ela franziu o nariz. –Posso ser muitas coisas, Doutor, mas eu não sou boa cantora. E, apesar disso, ainda teimo em cantar! Mesmo assim, a pior parte ainda é quando eu me empolgo... Ainda bem que hoje não cheguei á tanto.

Se empolga?—ele jogou o cabelo pro lado. –Imagino que isso não seria novidade...

Ela fez uma careta de pura confusão.

—Como assim? Está querendo dizer que eu fico empolgada com freqüência?

—Eu não digo nada. A minha convivência com você é quem diz.

Mas é uma falta de sanidade que eu vou te contar... –ela ponderou, descrente, cruzando os braços. –De onde foi que você tirou uma coisa dessas? Desde quando que eu me empolgo fácil?

—Bem, quer que eu cite a versão compacta ou o pacote completo? Lembrando que o pacote completo vem com a opção de escolha entre as categorias “ordem alfabética” “numérica” e “ocasional”.

O quê!? —Luisa gemeu, boquiaberta.

—Certo. O pacote compacto. –ele se adiantou. -Bem, teve aquela vez quando nós conhecemos a Princesa Isabel... –ele citou, como quem não quer nada.

—Aquilo? Aquilo não foi se empolgar! –retrucou ela de um jeito zombeteiro. –De qualquer forma foi golpe baixo da sua parte ter logo escolhido esse evento. Eu não tinha como me controlar perante á ela... Você sabe que a Princesa Isabel é a minha figura história preferida... Essa não valeu!

—Ah, não? –ele instigou, cético. –Se aquilo não foi se empolgar, então eu sou o pirata da perna de pau! E todos aqueles: “Ah, meu Deus! É a Princesa Isabel!!!” “Olha só o vestido dela!” “Olha só o penteado!” “EU NÃO ACREDITO QUE É REALMENTE ELA!” “Doutor! Me belisca para eu ver se estou sonhando!”—ele fez mímica, imitando-a com uma voz de falsete.

Luisa ficou novamente boquiaberta e um tanto aborrecida com ele.

Seu mentiroso! Eu não falo desse jeito!—guinchou indignada, lançando-lhe um tapa no braço.

Olha a agressão! Olha a agressão!—brincou ele, recuando como se ela realmente o tivesse machucado. Por fim, cruzou os braços e fingiu estar de mal.

—Ah... Você nem ficou bravo! –ela interpôs, com um leve ar de instigação.

—Fiquei sim. Você feriu meus sentimentos... –disse, dramático. –Por que acha que eu estaria brincando? Logo EU?

—Mas que droga! –ela bufou, fazendo careta. –Você andou praticando essa coisa de “fingir estar bravo”, não foi? É a sua cara...

—Não faço a mínima idéia do que você esteja falando. –ele fez-se de desentendido e continuou de braços cruzados, impassível, mas no último minuto lançou a ela uma piscadela que a fez relaxar, e ao mesmo tempo o entregou.

—Ah, é? Então vamos jogar do seu “joguinho!—ela estipulou, erguendo as sobrancelhas, teimosa.

Pode vir, então! Estou preparado para qualquer tipo de abordagem sua!—o Doutor anunciou, sentindo-se prestes a participar de algum tipo de duelo.

Ou talvez seja isso que você pensa!—Luisa sorriu, de um modo impertinente. –Com medo? —provocou.

Nem uma gota!—retrucou, também impertinente. Ele aproximou seu rosto do dela e lançou seu olhar mais penetrante, para tentar intimidá-la. Não funcionou. –Dê tudo o que têm que eu usarei todas as minhas forças para resistir á você!

Falou, cara!—Luisa disse, encarando-o. Seus rostos estavam em questão de milímetros um do outro. –Tá legal: Quem ri primeiro perde! —estipulou Luisa. Aquela era uma velha brincadeira que eles faziam juntos em momentos de descontração.

Está bem!—o Doutor aceitou. Os dois apertaram as mãos e começaram a se encarar. Tentariam fazer um ao outro rir (a regra geral da brincadeira).

—Vamos começar?

Não! Espera só um minuto! Eu tenho que me preparar... –e pôs a mão no bolso interno do casaco tweed, misteriosamente. Luisa ficou em êxtase, esperando o que ele poderia tirar de lá de dentro, mas sua reação foi completamente abismada, ao vê-lo surgir com um chapéu vermelho e, logo depois, colocá-lo na cabeça.

Luisa segurou-se para não rir.

—Que diabos é isso na sua cabeça?

—“Isso” é o meu chapéu turco: Cumprimente o Fez! —ele disse, animado. Luisa sorriu de canto de lábios.

Misericórdia!—exclamou ela, se segurando para não ter um ataque de riso. –Isso está parecendo um coador de café vermelho ridículo... Ou um balde de pipoca de cabeça para baixo. Sério... Não dá pra te levar á sério com uma coisa dessas na cabeça!

—Fique você sabendo que eu curto barretes turcos!—ele articulou. –E, por mais ridículo que seja, isso me dá uma vantagem sobre você! Porque agora, além de tudo o mais, eu tenho certeza de que você não resistirá me ver assim e que logo irá se por a gargalhar, e isso, minha cara companheira, te levará á inevitável derrota, muito em breve...

Luisa apertou os olhos.

Veremos—desafiou.

E os dois iniciaram a partida, fazendo caretas um para o outro, de vez em quando.

—Você com certeza melhorou um bocado... Andou aperfeiçoando sua técnica? –sondou Luisa.

—Impressão sua... Esse é o poder do meu Fez em ação! –explicou o Doutor, contente com a “suposta vantagem sobre ela”.  –Barretes turcos simplesmente tem esse efeito.

—É. Eu percebi. –disse, meio indiferente. –Pena eu ter de cortar o seu momentosinho de glória com a “minha arma secreta”.

O Doutor empalideceu.

Arma secreta? Como assim? Ah... O que você pretende...? –ergueu uma das sobrancelhas.

—Nada de mais. Na verdade, eu só estava pensando... –ela se fez de distraída, então pulou e roubou o barrete turco da cabeça do amigo, então saiu correndo com o chapéu, gritando: -Tá com você!

—Ei! Volte aqui SUA SEQUESTRADORA DE CHAPÉUS INOCENTES! –ele gritou, ainda com a mão na cabeça, processando o que havia acontecido, depois saiu em perseguição para recuperar seu Fez.

Ambos saíram correndo pelos corredores idênticos da TARDIS, até que chegaram na sala de controles, onde Melissa estava fazendo as unhas das mãos, com os pés cruzados sob o sofá, na maior folga. A perseguição continuou ao redor do painel de controles, até que Luisa, por força do hábito, correu para o lado errado, fazendo com que o Doutor a segurasse. Ele a agarrou por trás e os dois iniciaram uma descontraída luta braçal, pelo domínio do chapéu. Luisa agitava o chapéu de uma direção á outra, rapidamente, enquanto o Doutor tentava imobilizá-la com um dos braços fechados ao redor de sua cintura, e com a outra mão, esticava-se para apanhar o barrete vermelho.

Gente! Olha a pegação...! —advertiu Melissa, inacreditavelmente sem tirar os olhos das unhas e sem interromper uma vez sequer, o trabalho da lixa.

Não estamos nos pegando! —argumentou o Doutor, esforçando-se para apanhar o Fez das mãos da garota, que era muito ágil no quesito “se esquivar”.

—Não me leve a mal Doutor... Só estou tentando nos privar de ter de ficar olhando para esse balde de pipoca estúpido toda vez que falarmos com você! –disse Luisa, referindo-se ao chapéu e, finalmente, esquivando-se dele.

—Pelo amor de Deus! Será que vocês dois podem agir como gente grande só uma vez na vida?—Melissa articulou, quando eles passaram correndo por ela e perturbaram a paz do seu espaço pessoal.

Naquele exato instante, a sala de controles toda se apagou num inesperado blecaute e todo mundo ficou no escuro.

—Ótimo! Parabéns pra vocês dois! Estão felizes agora? –Melissa ralhou, escandalosa como sempre. –Esse alvoroço tão imprudente da parte de vocês foi mesmo tão imprudente que até cortaram a nossa energia!

—Não há como a energia ser cortada aqui... –o Doutor começou, mas foi interrompido por Melissa.

—Não tô nem aí para as suas explicações! A única coisa que eu quero ouvir nos próximos minutos é uma garantia de que a luz vai voltar até o horário da novela das oito... –Melissa enfatizou. Nesse meio tempo, Luisa apanhou uma lanterna dentro de sua bolsa rosa. –A novela que euzinha acompanho diariamente e, quando eu fico um só dia sem assistir... –a loira respirou descontrolada e bateu o punho fechado contra a palma aberta da outra mão. (Sua reação foi registrada no meio do breu graças á luz da lanterna de Luisa que estava voltada para a amiga nervosinha, naquele instante). –Entendeu?

—Calma gente... Não há porque se desesperar. Nós vamos arranjar uma saída, vocês vão ver –Luisa começou a pensar positivo e, alternadamente, iluminou pontos distintos da nave no escuro: o ambiente interno da sala de controles ficava muito mais sinistro sem a iluminação habitual. –Bom... Vamos ficar todos á vista, tá bom? –a garota engoliu em seco.

—O quê? Não podemos ficar parados sem fazer nada! Temos que agir! –sacudiu Melissa.

—É? E fazer o quê por exemplo? –questionou o Doutor ironicamente. –Rezar até a luz voltar? Isso não vai funcionar... Primeiro por que isso jamais poderia ter acontecido dentro da TARDIS...

—E lá vai você de novo! Será que pode parar de bancar o “sabichão” e admitir que esqueceu de pagar a conta de luz deste mês?  Porque não me importa nem um pouco se você recebe cartas de um duende ou da fada dos dentes... Ignorar contas de luz é uma coisa muito séria! –ralhou Melissa, impulsiva.

—Mas é isso que eu venho tentando dizer! Eu sou um sujeito AUTÔNOMO! Viajo por conta própria... É a TARDIS que fornece tudo. Não há conta de luz para se pagar! Não há nem carteiro trabalhando neste canto da galáxia!

—É. Pensando bem, isso não faria sentido... Como um carteiro encontraria você se a TARDIS muda constantemente de “endereço”? –Luisa avaliou.

—Ah! Finalmente uma ajuda... Obrigado pelo apoio! –ele disse, cheio de marra. –Pelo menos alguém me dá razão aqui dentro! –lançou a indireta; Melissa revirou os olhos.

—Se bem que você disse que há um vendedor de bugigangas que, sei lá como, consegue te localizar toda quarta-feira –Luisa lembrou, contradizendo-se.

O Doutor fez uma careta perplexa.

E você está do lado de quem afinal?

Do lado dos eletricistas! Essa com certeza seria a melhor escolha de todas... –Melissa palpitou. –Como eu queria ter um amigo eletricista nessas horas... –lamentou-se consigo mesma.

—Bom pessoal, chorar pelo leite derramado não vai trazer a luz de volta... –Luisa interveio. –Temos que começar a pensar em uma forma de resolver o problema, senão ficaremos no escuro até de manhã.

—Luisa tem razão. –o Doutor assentiu. –A pior parte é que sem energia, a TARDIS não funciona. Os controles não ligam e ela não consegue se deslocar pelo tempo e espaço... Por isso, se não fizermos nada ficaremos á deriva no espaço, até descobrimos o que causou o apagão na TARDIS.

Que lástima! —gemeu Melissa jogando-se em algo parecido com um sofá. –“Á deriva no espaço!” Nunca pensei que chegaríamos a esse ponto...

—Não é tão ruim –Luisa ponderou, sentando-se em cima de alguma coisa macia, de frente para a amiga. -Pelo menos temos um teto sob nossas cabeças. –e deu de ombros. -Poderia ser pior...

Melissa fitou-a com veemência.

—É. Poderíamos estar trancados em uma jaula com leões prontinhos para nos devorar. –satirizou. -É... Talvez ficar á deriva no espaço não seja o pior dos nossos problemas... –Melissa disse, com os olhos pregados acima dos ombros de Luisa.

—Viu? Eu sabia que se você reconsiderasse... –Luisa confirmou.

—Hã... Luisa. Será que você pode iluminar aqui, por favor? Eu não encontro os controles... –disse o Doutor, intrometendo-se na conversa das duas.

—Claro. –a amiga virou a lanterna na direção dele e se espantou quando o painel de controles, onde o Doutor se apoiava naquele instante, não passava de uma mesa circular de madeira, sem quaisquer botões ou alavancas inseridas.

O espanto foi tanto que até o próprio Doutor ficou boquiaberto. Impulsionada pela revelação desconcertante, Luisa tratou de iluminar, novamente, outros pontos da sala de controles, que revelaram-se agora não passar de um grande salão entulhado de caixas e alguns móveis cobertos por lençóis envelhecidos pelo tempo. O susto era tanto que não acabava, e quanto mais ela dava um novo rumo para a luz da lanterna, mais chocados eles ficavam, ao perceber que não havia mais a mobília de sempre, nem as geringonças familiares espalhadas por aí, nem mesmo o armário de casacos; não havia nem sinal do corredor extenso que levava ás entranhas da nave, muito menos das portas azuis da cabine. Para falar a verdade... Não havia mais TARDIS ao seu redor. Agora, era mais do que evidente que eles não estavam mais na máquina do tempo; ou que, em última hipótese –catalogada por nível de improbabilidade—a nave havia se transformado em uma espécie de porão abandonado.

Assustada, Melissa se remexeu no lugar onde estava deitada, e descobriu se tratar de uma pilha de caixotes recheados de espuma, ao invés de sua tão amada poltrona vermelha. Luisa também veio a tomar conhecimento disso, mas esse fato não a paralisou. Ficou mais sem fôlego com a idéia de poderem estar verdadeiramente trancados naquele lugar, seja lá onde aquilo fosse, e sem qualquer tipo de saída.

Enquanto Luisa apontava a lanterna na direção onde, antigamente ficavam as portas –talvez na esperança delas surgirem magicamente, de novo –Melissa ouviu um ruído de alguma coisa caindo e voltou-se imediatamente para aquela direção. Reconheceu o ponto observado: atrás de Luisa; bem no meio do breu e a uma distância relativamente próxima dali. Intrigada, a loira franziu meramente o cenho ao tentar reconhecer a causa de uma atual movimentação estranha, acima do ombro esquerdo da melhor amiga, mas a lanterna da garota não captou sua expressão.

Por outro lado, poderia ser a luz da lanterna brincando de formar sombras esquisitas e enganando o senso de reconhecimento do seu cérebro.

Mas aquela hipótese se tornou inválida quando Luisa apontou a lanterna para um lado aleatório e a tal “sombra” moveu-se fora de sincronia.

—Não entendo como viemos parar neste lugar –Luisa argumentou, indiferente á todo o resto. -É tão improvável, que duvido que alguém possa explicar...

Finalmente, Melissa a interrompeu, apontando freneticamente para alguma coisa atrás da amiga.

—Não sei não... Talvez ELA possa!—exclamou.

E a forma de uma mulher surgiu das sombras. Uma mulher esquisita, com a pele prateada brilhante e um tipo de áurea azul, emanando do corpo. Os cabelos eram dourados e bem curtos; os olhos eram azuis anil; não usava maquiagem, estava descalça e tinha envolto no corpo um pano simples, feito uma toalha. Parecia incrivelmente assustada, talvez até mais do que eles... O fato é que os quatro ficaram tão atônitos de verem uns aos outros, que o Doutor e as meninas nem tiveram tempo de reconhecer o quanto a misteriosa mulher era bonita. –usando uma referência compreensível, ela era uma mistura incomum de humana e algo como uma fada ou ninfa –tinha um corpo de mulher; brilho próprio, delicadeza extrema e orelhas pontudas, muito comuns nas duas figuras mitológicas. Era tão apaziguadora quanto a figura de um anjo. Mas se assustou tanto com eles que saiu correndo, sem olhar para trás, e desapareceu no meio dos caixotes.

—Espere! Não vá! Não fuja de nós! –o Doutor gritou, inutilmente.

—Para onde ela foi? –perguntou Luisa.

—O quê era aquela coisa? –Melissa estremeceu.

—Eu não sei... –o Doutor averiguou, sentindo uma estranha sensação ao se referir a ela. -É estranho... Ela me aprece terrivelmente familiar.

Os três se entreolharam no segundo seguinte, inquietos. Provavelmente tentariam seguí-la, optando pela mesma direção para onde ela se voltara, mas não puderam prosseguir com o plano, pois ouviram duas vozes diferentes (falando em uma língua completamente irreconhecível) ficando cada vez mais altas, provavelmente de acordo com a aproximação das criaturas perante ao grande salão de pacotes, onde estavam presos até então.

—Rápido! Ali embaixo! –o Doutor guiou-as e os três se esconderam embaixo de uma escada, bem atrás de uma porção de caixas empilhadas. Não sabiam o que encontrariam pela frente. De repente, os recém chegados poderiam não ser tão solidários ou compreensivos, como eles esperavam, e a equipe ainda poderia acabar em uma fria: e, além do mais o Doutor sabia de cor a Norma Seis Do Regulamento Oficial da Proclamação das Sombras: Todo cuidado é pouco.

No instante seguinte, irromperam no espaço –através de uma passagem secreta na parede –duas criaturas vermelhas com grandes chifres e olhos esbugalhados, usando uma espécie de vestimenta ao contrário, em que a parte de cima dos vestidos era mais larga que a de baixo.

—Puxa! Isso que é assassinar a moda... –sussurrou Melissa.

Indiferentes ao trio escondido embaixo da escada, as duas criaturas seguiram com seus afazeres, revirando caixotes em busca de alguma coisa. Apesar de muito esquisitas e feias, foram rapidamente reconhecidas pelo Doutor como: “duas fêmeas aparentemente amistosas, do planeta Aso”; e ainda complementou com: “Os Asos são muito chiques! Eles sabem definitivamente como se vestir para qualquer ocasião... Literalmente; Desde o seu nascimento até o seu funeral, mas ficam um pouco irritados quando contrariados...” –explicou, e ambos os três voltaram a prestar atenção nas duas. As fêmeas Asos remexiam os caixotes, de onde apanharam algumas peças de roupas e saíram bem rapidinho, voltando para o mundo exterior, seja lá qual fosse.

Enquanto se retiravam, falavam muito rápido e com uma vozinha irritantemente estridente, que era difícil de entender, pois dava dor de cabeça quando você tentava se concentrar nelas.

—O que elas estão dizendo? –cochichou Luisa, para o Doutor.

—Não sei ao certo, mas acho que estão falando alguma coisa sobre “clientes exigentes” e “como gostariam de fazer sopa com as tripas deles”. –ele terminou com uma careta. –Foi o que eu disse: chiques, mas muito impacientes.

Clientes?—Melissa chegou no ponto. –Será que estamos em algum tipo de comércio?

—Só tem um jeito de descobrir... –o Doutor começou a se levantar, quando percebeu que não havia mais ninguém á vista. –Vejam! A passagem ficou aberta depois que elas saíram... Vamos atravessá-la e ver onde vai dar.

—Só espero que não seja dentro de nenhuma sopa de tripas –Melissa ironizou. –Acho que isso estragaria o meu apetite das próximas dez semanas.

Ansiosos, atravessaram a passagem, e em seqüência um corredor estreito, todinho iluminado por uma luminária verde florescente. Ao fim do trajeto, deram de cara com uma porta de ferro inserida na parede. Sem pestanejar, o Doutor girou a escotilha circular que rangeu, movendo-se, e permitiu que a luz do dia atravessasse para o lado de dentro. O Senhor do Tempo e suas companheiras arregalaram os olhos ao dar de cara com um imenso e improvável Shopping, ao seu redor, do outro lado da porta. 

Não mesmo...!—Melissa deixou escapar. –Isso é inteiramente; esplendidamente; infinitamente... Impossível!

—Talvez na Terra –o Doutor acrescentou com um sorriso interessante no rosto. –Mas fora dela... O que não se vê hoje em dia?

—Uau! –Luisa arregalava os olhos, tentando captar tudo ao seu redor. Pois, de acordo com o ângulo em que estavam, viam o aglomerado de pessoas e lojas alienígenas, ao vivo e em corres, exatamente de cabeça para baixo. –Isso é... Incrível!

Eles estavam no teto do Shopping.

—Eu sei. É Hilário! –o Doutor bateu palmas, empolgado.

Mas nós estamos em pé no teto!—exclamou Melissa. –De ponta cabeça!

—Tudo porque estamos no “Estrela Guia”, o shopping mais famoso do universo. Como já devem ter notado só pelo nome, ele tem o incrível poder de lançar moda e tendências para com todo o cosmos. –explicou. -Garotas: contemplem o primeiro Shopping ao contrário, de toda a história do universo!

—Mas nós não caímos! Como estamos fazendo isso? –Luisa voltou-se para ele.

—De uma maneira específica e bastante breve, para poupar interrupções, concluo que a melhor explicação provém de uma simples informação: A organização do fabuloso Estrela Guia está usando a “não gravidade, gravitacional, dos bolsões anti-gravidade”, para poder fazer com que esse efeito aconteça. –o Doutor franziu o nariz, meio insatisfeito com a própria explicação. -Em geral, é mais compreensível na prática, do que em teoria. –concluiu por si só.

—E isso significa que ficaremos o dia todo suspensos no teto como macacos de ponta cabeça em uma bananeira? –Melissa criticou, exigente.

—Bem, não se eu cortar a reação anti-gravitacional –o Doutor aplicou o uso da chave sônica e os três perderam a órbita do teto, sendo imediatamente atraídos para o centro do comércio: O chão. Desta vez, finalmente, as coisas estavam no seu devido lugar.

Olharam de novo ao redor e se viram rodiados por uma multidão de alienígenas de diferentes espécies e clãs, que caminhavam falando engraçado, por todas as extensões dos corredores do Shopping, sem nem se incomodarem com o tele-porte dos recém chegados.

—Ufa! Ainda bem que eles ligaram a gravidade... Teria sido uma queda feia! –suspirou Luisa, ajeitando as roupas.

—Mas nós não cairíamos... –o Doutor interpôs. –Nós estávamos pisando no chão, que na verdade é o teto deles, enquanto eles faziam exatamente o oposto. Se encarar tudo em sentido figurado, nós tecnicamente não tiramos o pé do chão.

—Não sei que tipo de lugar maluco é esse, mas o cheiro é adorável... –Melissa apertou o estomago, ao sentir um cheiro adocicado no ar, que mais parecia uma mistura de churros com pipoca caramelizada. –Acho que eu vou me dar muito bem aqui...

—Aqui. Pegue –e jogou para ela um botão desgastado.

—Quer que eu procure uma costureira? –Melissa ergueu as duas sobrancelhas ao girar o objeto nos dedos.

—Não. Isso é pagamento dos Gronks. Os Gronks são aqueles carinhas cor de carvão, baixinhos, com chifres vermelhos e nariz amarelo exuberante. Eles só aceitam botões por aqui. Eles colecionam. Dê à eles um botão e eles lhe darão um doce em troca.

Melissa pareceu encantada com o funcionamento do comércio local. A “moeda” parecia interessante; o jeito de lucrar, muito mais.

—Trocar um botão por um doce? Por que você nunca mencionou essa maravilha de lugar antes? A minha avó tem uma caixinha repleta de botões...

O Doutor riu alto.

—Tome mais dois então –e jogou-os para ela. –E vê se não gasta tudo em doces!

—E vou gastar no quê, então? –Melissa sorriu, saindo correndo de encontro com uma barraquinha de doces típicos. Um Gronks inclinou-se para ela, anotando o pedido.

Luisa ainda seguia a amiga com o olhar, quando o Doutor interceptou-a.

—Ela vai ficar bem. –disse ele, dando a entender que havia coisa melhor para se fazer nesse ínterim de tempo. –Por que não damos uma volta?

—Não sei não... Será seguro deixá-la sozinha? –Luisa averiguou, cuidadosa como sempre.

—O quê? Qual é: É de Melissa que estamos falando! —ele interveio, passando o braço ao redor do pescoço de Luisa. –De acordo com ela, esse é o “paraíso do doce”, não é? Julgando por esse lado, acho que ela não tinha como estar melhor...

Luisa avaliou o conjunto de observações com cautela. Não pareciam muito convincentes para ela, mas acima de tudo havia a vontade de explorar um lugar novo e, muito provavelmente, nunca tocado pelo homem.

—Hum... É. Talvez seja divertido –decidiu, abrindo uma exceção. –O que quer fazer primeiro?

—Vamos bisbilhotar por aí, afinal não é todo dia que a gente pára num “cinqüenta estrelas”, feito o Estrela Guia.

—Tudo bem... Mas só se voltarmos logo! –Luisa condicionou, pegando no braço dele.

Ambos sorriram reciprocamente, um para o outro, e desataram a andar por entre a multidão, decididos a se entreterem com alguma das atrações.

—Olha só! Liquidação de Esquis próprios para os anéis de Saturno!

—Camisetas para quatro braços e meio!

—Meias ventiladas! Puxa! Eu ganhei um par de Natal uma vez... –o Doutor comentou. –Elas têm um ótimo resfriamento. Acabam de vez com o chulé. –e parou para pensar. –Só nunca fui capaz de entender se o presente foi uma indireta sobre meu chulé ser forte ou se é só uma baita coincidência...

Luisa riu.

—E olha só aquilo lá! –correu para perto de uma vitrine que balançava feito uma gelatina com bolhas de ar dentro. –Que gozado! –ela pressionou o suposto “vidro” da vitrine com o dedo, formando uma tenção passageira no ponto forçado pelo indicador, que depois chacoalhou e tremeu com seu recuo, deixando-os entusiasmados com a visão distorcida das prateleiras. –Fascinante!

—Deixe-me experimentar isso –o Doutor entrou na loja e colocou na cabeça um capacete duro de cobre, que brilhava, de tão polido que estava. –Esse vai nos servir bem para o dia em que Melissa nos disser que tirou a carteira de habilitação...

A amiga tornou a rir do novo comentário.

—E que tal um: Aspirador de Lembranças Ultra-forte? –ela leu a etiqueta. –Engraçado... Pra que será que serve?

—Ótima pergunta! –um alienígena magricela, fino como um cabo de vassoura, e com olhos esbugalhados, surgiu de trás de um balcão e imediatamente virou uma cadeira giratória que revelou um outro alienígena menor, com cara de lelé da cuca, também com o tal “Aspirador de Lembranças” preso á cabeça. Então, sem ao menos se apresentar, o alien magricelo começou a tagarelar, em sua língua, coisas sobre o produto, e por fim, resolveu fazer uma demonstração no colega da cadeira, ainda meio fora de si, muito provavelmente, por conta de alguma outra cessão de demonstração.

Não deu outra. Ele acionou um botão que fez a criatura quase estrebuchar e, no fim da demonstração pavorosa, fumaça roxa começou a sair de suas orelhas e um cheiro estranho percorreu o ar.

—Mas que coisa... O cérebro deve ter fritado –o alien constatou, como se fosse um evento comum, do tipo que acontece em qualquer parte do dia. -Fazer o quê? Não se fazem mais Fruds como antigamente... Próximo voluntário!

—Hã... –o Doutor saiu de fininho, levando Luisa consigo. –É melhor ficar longe disso... Não queremos nada que comece com “apagar lembranças”.

—Bom argumento –a garota aprovou. –E esse negocinho aqui? –ela apontou para um recipiente lacrado, com um líquido vinho-amarelado dentro.

—Parece bastante lacrado –o Doutor deu de ombros. –O que sugere que algum idiota já tentou beber o conteúdo de dentro. O que, automaticamente, afirma que o líquido deve ser inigualavelmente venenoso e mortal.

—Que horror! Pra que alguém venderia um troço desses?

—Para se intoxicar? –o Doutor sugeriu, obviamente. –Ou pra matar pragas. Pensando bem, acho que pode ser um ótimo pesticida...

—Olha! –Luisa correu para outra vitrine. –Uma “sei lá o que” com pinos!

—É um jogo Zapts. É muito popular na galáxia de Sanous. Eu já joguei algumas vezes com um amigo que tenho por lá. Grande jogo... Pena que as últimas cinco trovoadas foram péssimas.

—Você perdeu, não é?

—Se eu perdi?—ele procurou desesperadamente um novo foco. –Hã... Olha só! Um Roda-fone. Eu não vejo um desses desde... Bem, desde o dia que ajudei a inventá-lo.

Luisa inclinou-se contra a vidraça.

—Qual a graça em um telefone com rodas?

—É que ele vem até você. Se ele tocar, ele automaticamente te procura pela casa, acabando de vez com aquele pequeno probleminha comum de: “não sei onde foi que botei meu telefone”.

—Engraçado –Luisa sorriu. –Esse lugar inteiro é um barato!

—É mesmo, não é? –o Doutor ajeitou a gravata, satisfeito por ter acertado “acidentalmente” na escolha do passeio. -Tem alguma coisa de que gostou?

—Talvez aquele ali. –Luisa apontou para um guarda-chuva com cabo de ponto de interrogação, largado em um canto. Parecia uma peça esquecida pelo tempo... Era um tanto curiosa. Ao fitá-lo, os olhos do Doutor pareceram se perder em devaneios bem distantes.

—Eu já usei um desses, numa certa época da minha vida... –ele revelou. Luisa fitou-o, cheia de expectativas, esperando que ele continuasse. Mas o rapaz apenas sorriu para ela, apertando-lhe o ombro, momentaneamente. -Mas isso foi há muito tempo... –e deu-lhe as costas, deixando-a sozinha com aquela vitrine. Ela encarou a peça uma última vez, antes de correr atrás do amigo.

Doutor, espere por mim!—estava uma confusão e tanto lá dentro e se ela não se apressasse, poderiam se perder de vista um do outro, e isso certamente seria muito ruim em um lugar tão grande quanto aquele. Por sorte, o rapaz estava usando aquele chapéu vermelho ridículo, e não foi difícil reconhecê-lo no meio da multidão. –Ah! Você está aqui. O que está olhando agora?

Era um relógio de bolso, prateado, com desenhos circulares na tampa, bem desgastado pelo tempo. Por um momento, o Doutor pareceu ficar paralisado diante da vitrine. Se Luisa não o conhecesse bem, diria que ele estava horrorizado, mas isso talvez já fosse demais...

—Doutor... O que foi?

—Esse relógio –ele tirou o próprio relógio do bolso. –Ele é igual ao meu!

—O quê? –Luisa se inclinou para examinar os dois modelos. –E não é que é mesmo!?

—Isso só pode significar uma coisa: esse relógio pertenceu a um Senhor do Tempo!—o Doutor disse, cheio de esperanças. –E, dando continuação ao raciocínio, se eu pedir para examiná-lo em minhas próprias mãos... Talvez, eu possa descobrir á quem ele pertenceu!

E correu para dentro da loja, deixando a companheira para trás.

—Oi! Com licença! Será que eu posso ver aquele relógio ali? –abordou um balconista que tinha cara de sono.

—Claro. Venha comigo. –a criatura era devagar quase parando. “Lenta” seria um apelido carinhoso para ela. Mas, apesar de todo o transtorno do percurso do balcão até a prateleira certa, eis que ele entregou o relógio ao Doutor.

—Obrigado, viu? –o Doutor sorriu amplamente ao segurar o relógio.

—São vinte duns.

—Como assim? Para olhar o relógio? –o Doutor se espantou. Naquela altura do campeonato, Luisa já se juntara a eles.

—Exato. Vinte duns para olhar o relógio.

—Isso é sério mesmo? –o Doutor parecia abobado. –Mas é só para olhar! Ah, quebra esse galho, vai!? Nunca ouviu a expressão “ olhar não compromete”?

—É uma peça muito rara. –argumentou o outro. –E além do mais, o dono exigiu que cobrássemos até por piscada.

Dono?

—É. Você não soube? O relógio está em leilão.

Luisa cutucou o Doutor sem chamar muita atenção.

—Mas se é um leilão, então por que não há outros participantes levantando placas e oferecendo lances?

—É porque trata-se de um leilão alienígena. As regras são diferentes. –explicou o Doutor. –Funciona assim: o objeto fica em exposição na vitrine, ao redor de uma proteção especial. Os interessados que passarem pela loja, podem fazer seus lances no momento em que desejarem, sem necessariamente precisarem estar todos reunidos em uma única sala. Conforme a sua ordem de chegada, eles avisam quantos lances já foram dados pelo produto e qual o valor estimado até agora. Se puder cobrir o último lance, você faz o seu. E no fim do dia, eles anunciam o ganhador.

—Exato –confirmou o vendedor. -O Dono virá buscar o dinheiro assim que for comprado. Mas deixou uma exigência: só pode ser vendido para uma pessoa que estiver vagando pelo universo sem endereço fixo, nem identidade própria. Mas, na minha opinião, isso será quase impossível de se conseguir hoje em dia. Especialmente se você unir os atributos “sem teto” e “endinheirado” na especificação.

O Doutor trocou olhares significativos com Luisa.

—Eu fico com ele! –e tirou uma porção de moedas vermelhas do bolso (dinheiro local). –Trinta duns serve?

—É o primeiro lance até agora –a criatura sonolenta que mais parecia um bicho preguiça coçou o queixo pontudo. –Se não houver outro lance maior até as 45:60/10 horas, pode considerar vendido para o senhor.

—Certo. –o Doutor assentiu e voltou-se para a companheira com as mãos nos bolsos, mas os olhos dela estavam em outra coisa.

Nossa, olha aquilo!—andou na direção de uma mesa com uma coisa pequena e luminosa, bem no centro. O objeto estava envolto de uma redoma de um vidro verde, e ela não pôde tocá-lo, como pretendia. Porém, ficou admirando-o do outro lado.

—Gostou? –mal percebera, o Doutor já estava novamente do seu lado, observando sua reação.

—É lindo. –ela disse, com os olhos brilhantes. –O que ele é?

—Um Harmônius. –informou um novo balconista, que tomava conta daquela mesa. –Na verdade, o último fabricado.

—Harmônius? –Luisa olhou para o amigo, curiosa.

—É um instrumento musical –o Doutor explicou, com um sorriso no rosto. –Eu já ouvi falar desses Harmônius. Eram usados pela Imperatriz da Harmonia para controlar o número de estrelas que há no céu. O instrumento captura um pouco da energia de cada uma das estrelas, catalogando-as e, acima de tudo, usa a energia á favor de si, transformando-a em som.

—Nossa. –Luisa suspirou. Estava mais do que encantada com aquele pequeno brilhoso.

—E não é só isso –o balconista continuou. –O Harmônius é um instrumento multi-funções. Ele reconhece qualquer tipo de toque, sopro ou investidas infinitas que você fizer com ele, e transforma seja o que for, em melodia. Além do que, também é excelente na amplitude de sons. –o balconista se inclinou para eles, como se fosse contar um segredo. -As lendas dizem que, até mesmo se você cantar, segurando-o, ele dá um jeito de criar, sozinho, uma melodia para acompanhar sua música. Muitos dizem que ele tem alma própria, e com ela compõe a melodia, mas sobre isso eu não sei afirmar. –disse, muito informativo.

Luisa animou-se ainda mais, depois de ter ouvido tudo isso. O Doutor pretendia perguntar mais alguma coisa para ela, mas o sorriso amplo que a menina deu tirou todas as suas dúvidas.

Sem qualquer vestígio do que pretendia fazer, ele começou a remexer os bolsos e tirou uma bolinha-de-gude. Assoprou ar quente nela e depois lustrou-a, esfregando-a de leve contra o casaco. Então entregou-a ao balconista, que arregalou os olhos.

—Eu vou levar. –disse por fim, indicando o Harmônius com a cabeça. Luisa imediatamente voltou-se para ele, espantada. Não queria que o amigo gastasse nem um centavo com ela. A garota ouvira o que ele dissera sobre o tal dinheiro “duns” ter acabado. O que, a aparentemente, significava que o Doutor apostara todas as suas economias em um relógio raro, idêntico ao seu, e atualmente encontrava-se duro. Diante das circunstâncias, ela não poderia admitir que o rapaz se rebaixasse a tentar trocar uma simples bolinha-de-gude, por um instrumento antigo e raro feito o Harmônius.  

—Não Doutor! –ela se pôs em sua frente. –Não precisa fazer isso...

—Mas você gostou dele. Eu queria dá-lo de presente pra você.

—Não. Esqueça. É um objeto raro... Deve ser muito caro, não é? –ela ergueu as sobrancelhas para ele, na expectativa dele compreender sua boa intenção, sem que o balconista desconfiasse de que estavam sem dinheiro. –Não quero que você se submeta a passar vergonha em público por minha causa...

—O quê? –ele franziu o cenho, guardando a bolinha-de-gude no bolso. –Acho que estou ficando maluco. Tinha certeza de que você tinha gostado...

—Espere, senhor! –o balconista arregalou o único olho. –Posso ver de novo essa esfera azul?

—Pode. –o Doutor tirou a bolinha novamente do bolso e despejou-a entre os dois dedos finos, com unhas pretas, do balconista. –É uma autentica, se quer saber.

—É de onde?

—Originário de um planeta de nível 5, chamado Terra. Fica muitos anos luz daqui, mas é um lugar adorável.

—Terra, é? –ele avaliou a bolinha, sem qualquer arranhão na superfície. -E para que serve essa esfera?

—É de um jogo chamado bola-de-gude. Eles posicionam a bolinha entre os dedos, assim... –e demonstrou para o outro, que não tirava os olhos da bolinha. –E depois a impulsionam, assim. E ela pula e bate na outra bolinha. O objetivo do jogo é conseguir acertar outras bolinhas com a sua própria. Se você esbarrar em muitas bolinhas dos oponentes, então automaticamente, elas se tornam suas.

—É mesmo? –inesperadamente, o alienígena pareceu perplexo e, ao mesmo tempo, empolgado com a novidade. –Gostei desse jogo. Você tem mais bolinhas?

O Doutor bateu nos bolsos e Luisa percebeu que aquilo não era um bom sinal.

—Hã... Infelizmente não. Era a única que eu tinha comigo, lamento.

—Então não poderei jogar com mais ninguém e apanhar suas bolinhas, pois só há uma delas... –o olho grande dele fechou-se brevemente, enquanto ele averiguava as variantes.

—É. Tem razão. –o Doutor suspirou. –Desculpe tê-lo feito perder o seu tempo...

—No entanto –o alien abriu o único olho, pacientemente. –Parece-me um artigo interessante para eu revender como mercadoria da Terra. Esse planeta deve ter admiradores e, que eu saiba, nós não temos nenhum objeto representando essa tal de Terra. –ele esfregou o próprio queixo, pensativo. Luisa e o Doutor arregalaram os olhos, embasbacados. O alien de um olho só observou melhor a bolinha e, por fim, sorriu satisfeito, mostrando as presas. –Tudo bem então. Nós fechamos negócio! –e guardou a bolinha no bolso, retirou a redoma do Harmônius e entregou-o para o Doutor.

—Não. Dê a ela. Eu comprei para ela. –ele pediu e o alien entregou o objeto diretamente nas mãos da menina, com as mãos trêmulas. 

—Que engraçado... –ela sorriu. –Ele parece formigar...

—Está fazendo amizade com a senhorita. –anunciou o vendedor.

—Obrigada! –Luisa abraçou o amigo muito forte, lisonjeada com o presente. –Nem sei como agradecer...

—Não precisa. –o Doutor tirou-a do chão com seu abraço de urso. –Só ver o seu sorriso já é o bastante.

—E olhem! Ele parece que gostou de você! –o balconista deu alarde, apontando para o objeto nas mãos dela e Luisa e o Doutor se separaram do abraço, para observar o Harmônius novamente.

De repente, o objeto brilhou mais do que nunca, como se tivesse a energia de mil estrelas dentro dele, então foi diminuindo de intensidade, até adquirir apenas seu brilho normal.

—Isso foi incrível! O que ele fez?

—Ele a reconheceu como sua legitima dona. –explicou o vendedor. –Parece que ele estava esperando pela senhorita...

—Ouviu isso Luisa? Ele estava esperando eu “passar vergonha”, bancando o “pateta intergaláctico” com uma bolinha-de-gude, e comprá-lo pra você á base de troca –brincou o Doutor, atirado.

—Seu bobo! –ela deu-lhe um cutucão de leve, com um sorriso torto no canto dos lábios.

—Vamos indo –o Senhor do Tempo puxou-a para saírem da loja. –Eu volto mais tarde para ver o relógio... –avisou para a criatura com cara de preguiça, apoiada na vitrine.

—Certo. Até mais –disse o primeiro vendedor. –E façam boas trocas!


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Notas finais do capítulo

E essa foi a primeira parte do fabuloso Arco de Natal!!! :D

(Sim, o nome do Capítulo foi inspirado no título do 2º Livro do Guia do Mochileiro das Galáxias kkkk -o que faz sentido, porque a gente sabe que a BBC curte umas altas referências de Douglas Adams)

Como sabemos, todo ep de Natal de Doctor Who começa leve, radiante e mágico, mas depois tende a dar uma incrível reviravolta... Será que esse aqui será a exceção?
Aguardem o próximo capitulo!



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