Jonas e o Teleporte escrita por Izaias Maia
Jonas alcançara a rua. Passos apressados transformaram-se em uma corrida. Apesar do pedido do agente de segurança e bem-estar para não entrar em pânico, era exatamente como Jonas estava. Em pânico.
Corria sem destino certo. A cabeça fervilhando. O coração acelerado. As mãos tremiam. Correu por três quadras. E então parou para recuperar o fôlego.
Olhou ao redor. Não reconhecia o lugar. Na verdade, nunca havia ido tão longe de seu apartamento a pé.
Observou a enorme rua vazia. Parecia uma cidade abandonada. Apesar da estranheza de Jonas, é exatamente assim que se parecem as grandes cidades hoje em dia. Sair à rua não é mais necessário.
O prédio do outro lado da rua chamou-lhe a atenção. Atravessou a rua e tocou o interfone.
— Edifício Vale Verde. Bom dia – disse a voz do outro lado.
— Olá. Gostaria de visitar Tadeu Blaut.
— Pois não, senhor. Autorizando teleporte no dispositivo do saguão, i.d. PTR 76 traço...
— Não, não... – interrompeu Jonas – Estou aqui fora. Na rua. Vim a pé.
— Na rua? Mas por quê?
— Olha... deixe-me subir...
— Ah sim! Amigo do Tadeu... – e desligou o interfone.
Um instante depois o portão se abriu.
Jonas estava um pouco desconfortável na velha poltrona aveludada de Tadeu. Sua sala de estar mal iluminada estava abarrotada de pilhas de jornais velhos, cadernos e revistas. Nunca tinha visto tanto papel junto. O amigo o recebera com tanta cordialidade que o deixara desconfortável. Cumprimentou-o com um sorriso largo e espontâneo seguido de um abraço apertado com tapinhas nas costas. Convidou-o para entrar com a animação de um garoto sem amigos que recebe a visita do colega mais popular do colégio. Jogou as roupas que estavam sobre a poltrona velha e a ofereceu para Jonas, com certeza o assento mais confortável da sala.
Tadeu aparentava ser mais velho que Jonas, embora não o fosse. Calvo, com uma barba rala grisalha, barriga saliente avolumando o roupão surrado com cheiro de tabaco que usava sobre a samba-canção listrava. Preparava duas canecas de chá na pia abarrotada de louça suja enquanto dissertava animadamente sobre os últimos acontecimentos de sua vida de professor universitário.
— E ele me enviou o projeto sem sequer fazer as correções! Essa molecada está muito preguiçosa. Sabe, tenho uma meia dúzia de alunos me procurando toda semana implorando para ser seu orientador, e o menino ainda me dá uma mancada dessas! Tem que saber dar valor, sabe...
Puxou uma cadeira e sentou-se à frente de Jonas, entregando-lhe uma das canecas.
— Mas eu sei que não foi para saber da minha movimentada vida acadêmica que você veio me procurar, não é mesmo velho amigo?
— É, não exatamente. – respondeu bebericando o chá. – Tive um problema hoje cedo e lembrei da conversa que tivemos no congresso em Samoa...
— Sobre modelos de mercado global...? – indagou curioso o colega.
— Não. Sobre a Portal Tech...
Tadeu sobressaltou-se na cadeira. Um brilho de curiosidade emanou de seus olhos.
— Interessante. Conte-me mais...
— Hoje cedo fui me teleportar para o trabalho, mas parece que o dispositivo deu defeito. Apareceu uma mensagem de erro no display. Logo em seguida um agente da Portal Tech apareceu lá em casa. Achei o cara meio suspeito...
— Como foi esse defeito? – interrompeu Tadeu.
— Simplesmente não fui teleportado. Nada aconteceu.
— Nada? – o amigo ajeitou-se na cadeira enquanto coçava a barba rala e encarava Jonas com um olhar curioso.
— Bom, teve uma luz muito forte. Senti um calor. E...
— Teve um apagão? Não se lembra direito das coisas?
— Sim. Por um momento...
— Passou mal? Vomitou?
— Um pouco...
— A pele descamou? Caiu cabelo?
— Não, acho que não...
— A visão ficou turva? Teve convulsões? Hemorragia?
— O quê? Não! Meu Deus, Tadeu! Do que você tá falando, cara?
Talvez não tenha sido uma boa ideia ter vindo visitar o amigo maluco, pensou Jonas.
O semblante de Tadeu passou rapidamente de curioso para preocupado. Levantou-se da cadeira e andou pensativo pela sala enquanto bebia o chá.
— Acho que sei o que aconteceu, meu bom amigo... – fez uma pausa dramática, e então voltou-se para Jonas: - Você sofreu uma falha de desintegração!
A revelação não surtiu o efeito desejado. Ao invés de uma interjeição de surpresa e assombro Jonas respondeu com um olhar de estranheza. O olhar de quem questiona sua sanidade mental. Um olhar familiar para Tadeu.
— Você não faz ideia do que eu disse, não é mesmo? – disse ele deixando cair os ombros.
— Não... Eu devia?
— Olha... – Tadeu coçou as têmporas – Vamos do começo. Como você acha que funciona o teleporte?
De novo o olhar de estranheza.
— Todo mundo sabe, Tadeu. A matéria é convertida em energia, que é transmitida até o destino, e então convertida novamente em matéria.
— Ahá! – gritou Tadeu, assustando Jonas – Aí que está! Não é isso que acontece!
— Tá maluco cara?
— Não, não. Vocês é que estão malucos de entrar nessa... nessa máquina de suicídio!
Agora sim Jonas exibiu a expressão de surpresa e assombro que Tadeu esperava.
— Su... Suicídio?- balbuciou Jonas.
Tadeu encheu-se de satisfação. Era sempre um deleite revelar o verdadeiro mecanismo perverso de funcionamento dos teleportes a um não-esclarecido. Era um momento único e prazeroso trazer à luz do conhecimento alguém que ignorava os segredos nefastos da Portal Tech. Tadeu encheu o peito e tomou mais um gole do chá. Pôs-se a andar pela sala enquanto falava como um detetive explanando a solução mirabolante de seu mais bizarro caso.
— O teleporte é, sem dúvida, um dispositivo que reúne uma tecnologia fantástica, devo admitir. Um dispositivo com três funções, na verdade. E nenhuma dessas funções é de fato teleportar qualquer coisa que seja. A primeira função, como já mencionei, é destruir em nível atômico toda a matéria que seria “teleportada” – fez o sinal de aspas com os dedos -. A segunda função é a de um escâner de precisão quântica. E a terceira, mas não menos importante, é a função de uma impressora molecular tridimensional.
Tadeu fez uma pausa intencional. Sempre que contava a verdade sobre o teleporte fazia esta pausa para que o ouvinte absorvesse e começasse a digerir a informação. E Jonas reagiu exatamente como todo mundo: um olhar de perplexidade e pavor de quem começa a tirar suas próprias conclusões, ao mesmo tempo que espera pelo término das explicações para confirmar a verdade que começara a compreender.
— “Mas transformar matéria em energia não é possível?”, você deve estar se perguntando. A resposta é sim. Pelo menos é matematicamente possível. Mas algo ser possível não implica que seja provável. Ou praticável. Envolveria quantidades imensas de energia e uma tecnologia que definitivamente não possuímos.
— Mas... mas... – balbuciou Jonas.
— Eis o verdadeiro mecanismo de funcionamento do teleporte. – continuou Tadeu – Quando um corpo entra no dispositivo de origem sua estrutura molecular é escaneada em nível quântico. Essas informações são transmitidas para o dispositivo de destino, que então constrói uma cópia exata do corpo. Uma fração de segundo depois que a cópia do corpo original foi montado no destino, uma descarga de raios gama destrói completamente o corpo na origem, não deixando nenhum vestígio sequer.
Seguiu-se silêncio. Por mais de um minuto ouviu-se apenas o vento soprando pela janela e chacoalhando as pesadas cortinas da sala. Tadeu sorria de satisfação enquanto observava atentamente a expressão de contemplação assombrada de Jonas.
“Bem-vindo ao meu mundo”, pensou Tadeu.
— O teleporte é uma... máquina de clonagem? – indagou Jonas, cortando o silêncio.
Tadeu sentou-se, colocando sua caneca sobre uma pilha de jornais.
— Sim. Uma máquina de clonagem à distância que destrói o original.
— Isso é muita loucura, Tadeu. Não pode ser verdade. Quer dizer, cada vez que me teleporto eu morro e surge um clone meu no destino? Na verdade então eu sou um clone? O verdadeiro Jonas morreu na primeira vez que usei o teleporte? Eu não sou eu? Nem minha mulher ou meu filho são eles mesmos?
— Exatamente... Entendeu por que não uso teleporte?
— Não, não... – balançou a cabeça em negativa veemente. – Está errado. Não pode ser.
Tadeu tirou do bolso seu smart e digitou algo enquanto falava.
— O que aconteceu foi que seu teleporte o escaneou e transmitiu suas informações para o teleporte de destino, que imprimiu sua cópia. No entanto, o seu dispositivo falhou em destruir o seu corpo. Provavelmente um defeito no reator de raios gama. Você recebeu uma carga de radiação insuficiente para destruí-lo. É o que chamamos de falha de desintegração. Não é tão comum, mas já li alguns relatos de casos. Acredite, você teve sorte! Li sobre um cara na Austrália que ficou com queimaduras de...
— Espera aí! – interrompeu Jonas – Tem uma cópia minha no meu trabalho? Que doideira é essa? – Jonas levantou-se abruptamente – Cansei dessa palhaçada! Achei que você poderia me ajudar, mas pelo jeito está ainda mais louco que na época da faculdade.
Jonas virou-se para a porta, decidido a ir embora. Tadeu previra essa reação. Calmamente interrompeu o rompante de raiva do amigo.
— Você postou uma foto mais cedo?
— Sim... Na cafeteria. Mas o que isso tem a ver?
— Veja você mesmo... – Tadeu esticou oferecendo o smart.
Jonas apanhou o aparelho. Exibia sua publicação mais recente. Sentiu o estômago revirar. O coração disparou e um suor gelado escorreu da testa.
Não era a foto na Prime Coffe.
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