O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 49
Do Diário de Esther IV


Notas iniciais do capítulo

Olá,


Pois é, chegamos à última passagem do diário da Esther.
Acredito que este cap ajudará a entender o que é a Fazenda, e também como Esther conseguiu se passar por professora.
E não, a Fazenda não é um reality-show...

Brincadeiras à parte, boa leitura!



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São Petersburgo, Rússia. 10 de Fevereiro de 1909.

            É bem provável que esta seja uma de minhas últimas passagens por este Diário. Não porque temo por minha segurança. Toda a passagem de meu diário é criptografada com códigos que aprendi a desenvolver durante minha passagem na Agência, mas ainda assim, diante do teor do que descobri, sinto que preciso apagar os meus rastros de todas as formas possíveis. Mesmo as mais seguras e confiáveis que disponho.

            Antes de fazê-lo, preciso coordenar aqui tudo o que descobri.

            Minha visita à Fazenda de Ecaterimburgo foi produtiva. Fiz minha presença por lá completamente incógnita e assim, sem riscos, consegui descobrir o que afinal carregava os caminhões que passavam por aquele local, extremamente vigiado. Produtos químicos. O conteúdo não poderia ser mais curioso, pensei na hora. Naquele momento, lembrei-me de Holmes e de seu vasto e invejável conhecimento a respeito de Química, e o quão importante seria sua presença ali, a me ajudar. Logo senti necessidade de afastá-lo de meus pensamentos. Precisava estar focada e a última coisa que precisava era uma distração. Tenho certeza de que ele teria dito a mesma coisa.

            Voltei para São Petersburgo, trazendo em minha caderneta todos os códigos estranhos de Química que pude enxergar nas embalagens das caixas. Logo me lembrei de Lev Sokolov, grande entusiasta de Química, para perguntar-lhe sobre o que eram aqueles produtos e quais as possíveis fontes. Senti que localizar os fornecedores e filtrar o comprador seria uma boa forma de entender o que verdadeiramente se passava por ali, e o que aquele lugar poderia ter haver com o meu filho. Agora, vejo o quão tola eu fui, por ter agido desta forma, tão leviana. Lev Sokolov agia em minha volta com sorrisos e valorosa simpatia, deu-me as informações que eu precisava e também dicas para localiza-los. Mal sabia eu o tipo de bote que aquela cobra peçonhenta estava a preparar.

            O desgraçado deu-me a idéia de fazer perguntas a um dos fornecedores que ficava em Moscou. Embarquei em um trem para fazer este percurso, pensando que teria nada mais que uma viagem tranquila pela frente. Ledo engano, agora eu vejo. O trem foi atacado por homens estranhos. Reconheci alguns deles como vigilantes da própria Fazenda. Naquele momento, não tive dúvidas de que eles chegaram até mim, e por intermédio de uma só pessoa: Lev. Ele era o único, afinal, que sabia para onde eu estava indo, e com exatidão. Acabei sendo levada, junto com boa parte dos passageiros, até um vagão. Fomos trancados ali, sem maiores explicações. Em meio a desespero de muitos, senti que o trem estava adquirindo velocidade, e que não estávamos mais indo para Moscou. Estávamos seguindo o caminho contrário, perto de um bosque da região.

            Não sei quanto tempo se passou. Só me lembro de ter escutado um grande estrondo. Corri para a direção dele, assim como alguns passageiros mais aflitos, e logo pude perceber o que o causara. Um dos vagões foi separado. Justamente o vagão onde estavam os meliantes. Enquanto assistia o vagão deles perder velocidade, e o nosso cada vez mais adquirir e se distanciar, seguindo trilho afora, eu tive certeza de que algo tenebroso, funesto, estaria por vir.

            Voltei meus olhos para a janela, e logo percebi que era impossível saltar. Havia muitas pedras ao meu redor, e duvidava que pudesse sobreviver a uma queda naquela velocidade. Em minha procura por alternativas que garantissem a minha sobrevivência, outro estrondo se seguiu. Ouvi um dos passageiros gritar “Abismo!”, antes que eu sentisse meus pés saírem do chão, e uma força inacreditável me lançar para frente.

            Acordei sentindo profunda dor em meu corpo. Não demorei para entender que o trem havia descarrilado. Estava debaixo de uma pilha de corpos, quando despertei. Senti dor de cabeça, e notei que não conseguia mover o meu braço. Um estranho se aproximou. Pensei que ele iria me ajudar, mas tudo que fez foi tomar minha bolsa e levar meu dinheiro. Desgraçado filho de uma

            Provavelmente devo ter desmaiado outra vez, pois tenho poucas lembranças do trem. Acredito que foi a sensação do frio que me despertou, desta vez. Ainda meio tonta, voltei meus olhos para examinar o local. Percebi que havia dezenas de corpos nus ao meu lado, sob mesas e macas. Logo entendi porquê eu sentia frio. Eu também estava nua. Levantei-me da tal maca de aço, e tentei caminhar. Numa súbita necessidade de cobrir minha nudez, corri para uma espécie de avental e o usei como roupa. Ao olhar os objetos cirúrgicos sujos de sangue, os corpos e o forte cheiro de formaldeído, não tive dúvida de que estava em um típico e precário necrotério russo. Provavelmente, levaram todos os inconscientes do acidente ferroviário para lá, sem se quer ter o trabalho de verificar se estavam todos vivos ou não. Não havia também qualquer sinal de minha roupa, ou de meus pertences à vista.

            Um médico apareceu, repentinamente. Como a última coisa que um médico-legista pode esperar dentro de um necrotério é um cadáver vivo diante de si, não é estranho presumir que ele levou um grande susto. Mas, ao vê-lo tirar a máscara, quem tomou um susto fui eu. Eu o conhecia! Ele era Jacob Loytev, amigo de meu pai. Lembrei-me de imediato de minhas visitas à sua casa, a torta de frutas que ele me servia quando eu era criança...

            “Por Adonai...”, ele deixou escapar, bastante surpreso.

            “Jacob? Jacob Loytev? Sou eu, Esther Katz, lembra? Filha de Abraham Katz...”

            “E-E-Esther?! É você mesmo?! Por Adonai! Pensaram que você estava morta. Você chegou com a leva de mortos do desastre do trem. Inacreditável que tenha sobrevivido.”

            “Precisa me ajudar.”, eu disse, me aproximando dele. “Eu quero que eles ainda pensem que estou morta.”

            “Mas por que, minha filha?”, disse o idoso. “Quem você quer enganar?”

            “Há homens que me querem morta. Por favor, se teve algum tipo de apreço por meu pai ou por minha família, eu...”

            “É claro que tive, Esther. Aliás, eu soube do que houve ao seu pai, e gostaria de deixar meus pêsames. Ele me ajudou muito, me inocentando de um crime que não cometi. Sou muito grato a ele por sua defesa no tribunal, e é por minha gratidão a ele que eu vou te ajudar no que você solicitar.”

            Suspirei de alívio, quando ouvi isso.

            “Preciso simular minha morte.”, disse. “Chegou a ver algum objeto de valor comigo?”

            “Sim, você usava um cordão com uma Estrela de Davi. Está ali, guardado.”

            Olhei ao redor.

            “Há uma mulher ali com uma semelhança física próxima a minha. Saberia dizer se ela já foi identificada?”, perguntei. Ele me disse que o nome dela era Dasha Pulovtz.  “Tem certeza?”, ele me perguntou, quando me viu colocar o cordão de Estrela de Davi no pescoço daquela desconhecida. Deveria ter percebido que eu estava hesitante. Aquele era o cordão que Sherlock me presenteara, quando ainda vivíamos em Montpellier. Eu sabia que, ao abandoná-lo ali, eu o perderia para sempre. Perderia para sempre a mais forte lembrança que eu tinha das épocas mais felizes de minha vida. Ainda assim, eu precisava fazê-lo. Precisava abandoná-lo.

            “Tenho”, disse, mais para mim mesma que para o Dr. Jacob. Ele assentiu.

            “Pode levar os documentos desta Dasha. Bem como a roupa dela. Não quero que saia desta forma.”, ele disse, o tempo todo desviando seu olhar de meu corpo. Afinal, eu estava vestida apenas com um avental.

            “Ainda preciso que me faça mais uma coisa.”, disse, ao perceber que ele tinha uma câmera fotográfica ali. Contei a ele que precisava daquelas fotografias. Fotografias falsas, tiradas de mim, deitadas sobre a maca de necrotério, mas que corroborassem a minha morte. Fechei os olhos, simulando estar inconsciente. Deixei o negativo com ele, e saí daquele hospital, com as roupas da tal Dasha Pulovtz, mais disposta do que nunca a dar continuidade em meu plano de encontrar o meu Jonathan.


São Petersburgo, Rússia. 11 de Fevereiro de 1909.


Acabo de vir de meu esconderijo. Ao contrário de outros agentes, mais “criativos” em dar nomes engraçados ou tenebrosos, eu apenas o chamo assim, de “esconderijo”. Aqui, dei importantes passos, pensei, passei noites em claro a olhar toda a informação que pude conseguir. Mas agora não mais. Ateei fogo ao local.

Marquei um encontro altamente secreto com Vlad Sokolov, e entreguei a ele tudo que sabia, mas pedi extrema cautela quando vi seu ânimo jornalístico em publicar minhas descobertas. Pedi que ele não contasse a ninguém, nem mesmo ao tio. Na verdade, o correto era dizer “especialmente” ao tio, mas se eu dissesse isso, eu o deixaria repleto de suspeitas. Não sei explicar o por quê, mas eu o alertei de que,cheguei a cogitar que, se caso um homem de olhos cinzentos e nariz de falcão aparecesse, ele poderia contar sobre minha investigação. Recrimino-me agora, por ter sido tão tola a ponto de sequer imaginar que Holmes ainda poderia vir à Rússia atrás da criança, ou de mim, ou de nós dois.

Provavelmente o bastardo do Lev terá uma surpresa agradável ao concluir que eu estou morta, quando colocar os olhos nas minhas fotografias. Com extremo cuidado, procurei Jacob mais uma vez, e ele me confirmou que os capangas sequer se preocuparam em comparar o corpo com a fotografia, confiando na palavra de Jacob.  Alegremente, levaram a fotografia ao seu chefe, sendo provavelmente recompensados pelo serviço.

Soube que a pobre Dasha foi enterrada em uma cova comum como indigente, em meu lugar. Isso perturbou-me o sono por dias, até que decidi averiguar se a mulher havia deixado algum parente. Mãe, esposo, filhos. Para meu alívio, Dasha era uma mulher solteira e que perdeu o pai há pouco tempo, não possuindo nenhum vínculo muito próximo na Terra, como muitas mulheres russas. Isso me dá certo alívio, mas também me faz sentir vergonha de mim mesma por se aproveitar de uma tragédia alheia.

Cresci ouvindo que a vingança não fazia bem à alma, mas os dias sombrios de minha vida adulta estão me mostrando o contrário do que aprendi. Cada vez mais vejo que a vida tem lá suas exceções.


São Petersburgo, Rússia. 25 de Março de 1909.


            Após semanas vivendo nas sombras, finalmente encontrei uma oportunidade de ressurgir, como essa tal Dasha Pulovtz. Além de saber sobre sua família, inexistente, descobri que ela era Professora de Alemão, idioma que eu dominava pouco, e notei que uma “escola” em Ecaterimburgo estava oferecendo uma vaga para Professora de Francês, idioma que domino bem.

            Para participar da entrevista, decidi que era momento de mudar minha aparência. Sem qualquer dó, cortei meu cabelo e também apliquei sobre ele tinta preta. Devido à cor loira de meus fios, a tintura conseguiu se fixar bem em meu cabelo e sobrancelha. Estava completamente irreconhecível.

            Durante a etapa, notei que muitas candidatas desistiam, devido às “exigências” do cargo. Era necessário morar em Ecaterimburgo, viver ali sem levar a família, não escrever qualquer carta a qualquer familiar durante o período do contrato, e as saídas da escola eram completamente limitadas a “casos de extrema necessidade”. A julgar a exigência, não tive dúvidas de que a tal escola ficava na Fazenda.

            Diante de tantas exigências e um salário medíocre que não as compensava, fui a única candidata que permaneceu no processo seletivo. Começarei já na semana que vem.


Ecaterimburgo, Rússia. 3 de Abril de 1909.


            Este é meu primeiro dia na Escola de Formação Excepcional, como é chamada oficialmente a única escola daquela região. Como eu imaginei, o carro que veio me buscar na Estação me deixou na Fazenda, a mesma fazenda que eu investiguei e cuja aproximação quase me levou à morte. Poderia parecer loucura voltar para lá nestas circunstâncias, mas o meu ímpeto em encontrar o meu filho prevalecia sobre tudo.

            Tentei puxar um pouco de assunto com o professor que me acompanhava, um tal de Thomas Brumev, que mais tarde conseguiu a vaga de Coordenador. Ele me contou que dava aulas de Inglês, e a julgar por seu sotaque, notei que ele era americano. Foi gentil e bondoso comigo, mas apesar disso, tinha consciência de que jamais poderia me abrir a respeito do que eu realmente estava fazendo ali.

            Na Fazenda, eu e Brumev fomos conduzidos às formalidades e apresentações pelo coordenador no local, que me explicou que a Fazenda – era esta a alcunha que ele utilizava – era na verdade um colégio para meninos superdotados, com um intelecto maior que da maioria das crianças daquela idade. Ele me disse que as crianças, trinta no total, possuíam entre nove e doze anos. Quando mostrou-me o conteúdo didático que eu teria de passar à turma, eu me espantei. Os meninos teriam conteúdo de Francês Avançado, quase Nativo! Pouquíssimos adultos carregavam aquele tipo de bagagem. Brumev também percebeu o mesmo, e até fez um comentário sobre isso. O coordenador riu. “Elas estão acostumadas, podem ficar despreocupados. Terão alunos como jamais viram, mais inteligentes e precisos do que máquinas.”

            Esse comentário do coordenador me deu calafrios.


Ecaterimburgo, Rússia. 17 de Julho de 1909.


            Georgi.

            É estranho chama-lo assim. Georgi. Apesar de ter descoberto há algum tempo que meu Jonathan fora chamado de Georgi Morozov, eu ainda insistia em chamá-lo mentalmente de Jonathan. Eu o conheci logo na primeira semana. É um belo menino. Tem o cabelo loiro e os olhos verdes, que mais parecem duas pedras de esmeraldas. Ele é um tanto tímido, reservado, e sinto que ele obteve isso do pai. Gosta de passar o dia na biblioteca, lendo. Diz que quer se tornar médico. Aposto que Watson ficaria fascinado ao saber disso. Que o rebento de Holmes deseja seguir seus passos.

            Ele foi um tanto desconfiado, à medida que me aproximei dele. Acho que esse tipo de interação não deve ser comum por aqui, mas eu não me importei. Demorei alguns meses para conseguir sua confiança, e agora conversamos sobre praticamente tudo. Sei que estou me arriscando, uma vez que assinei um contrato que deixava bem claro que eu só deveria discutir e conversar com os alunos a respeito do conteúdo didático, mas meu desejo de me aproximar de Jonathan Georgi era tão grande que o risco valia a pena. Descobri que ele era um menino bastante inteligente e educado.

            Mas essa estava longe de ser a maior das surpresas.

            Hoje, numa conversa aleatória que tive com Georgi durante o café da tarde, ele acabou me contando que tem um irmão. Um irmão chamado Grigori. Pensei que ele estava se referindo a algum amiguinho, mas o menino enfatizara em chamar esse tal Grigori de irmão. Disse que fora criado, desde o nascimento, com ele, que ambos eram irmãos gêmeos. Georgi se lembrava da infância na fazenda dos Morozov, a julgar por seus comentários sobre brincadeiras de pique-esconde pela fazenda. Todas acompanhadas por esse Grigori.

            Aproveito a solidão da noite para escrever em meu diário. Seria possível que os Morozov tivessem tido um filho? Jamais considerei essa possibilidade, que tem lá sua probabilidade de ser verdadeira. Ter um filho legítimo não impede um casal de adotar uma criança. Essa revelação deixou-me mais surpresa, e ao mesmo tempo preocupada: onde está esse tal Grigori, então? Por que eu não encontrei nenhuma menção a ele? O que houve com ele, no dia do ataque?

            Tantas perguntas me levaram a um questionamento. Um questionamento inevitável, mas não menos doloroso.

            Será que Georgi é realmente o meu filho?


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Notas finais do capítulo

Coitada da Esther... Quando ela pensou que havia finalmente encontrado o filho dela...

Então, o que acham dessa revelação sobre quem está por trás da Fazenda e de seus esquemas? Contavam com Lev Sokolov como mente por trás disso? Alguém já faz idéia do que ele pretende ali?

Sei que ainda há algumas perguntas sem resposta, mas em breve - prometo! - teremos todas as respostas. Ok?

Obrigada por acompanharem e até quarta! E deixem reviews, hein!



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