O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 43
O Bom Samaritano


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal,


Estamos chegando na reta final da fanfic. Nem acredito nisso, pois parece que foi ontem que comecei a postar.

Agora que sabemos que Holmes e Grigori simplesmente saltaram de um trem em movimento no meio dos Montes Urais, vamos ver que tipos de perigos os dois ainda terão de enfrentar. Pois é, quem tava desejando saber o que tem afinal em Ecaterimburgo, vai ter que passar por uma dose de emoções - e mais mistério - nos próximos caps.

Boa leitura!
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Montes Urais, Rússia. Setembro de 1910.

Em Algum Lugar da Floresta de Sverdlovsk.


            Caía muita neve naquela noite, de modo que quase nada era possível de se enxergar com clareza. As mãos de Holmes tremiam de frio e também de medo. Sim, poucas vezes em sua vida ele sentira medo como naquela noite. Ele tinha chegado longe demais para terminar assim, tão perto de resgatar Esther daquele grupo de criminosos de identidade ainda desconhecida e acabar nas mãos deles. E por pouco, quase tudo fora perdido.

            Carregando um inconsciente Grigori, Holmes andava lentamente, com dificuldade pela neve fofa que impregnava o solo e sentindo seu ombro dolorido. Tudo indicava que o detetive havia deslocado, dando a sensação de que o magricela Grigori pesava quase o mesmo que uma bigorna.

A noite já caíra, e com o passar de sua caminhada, Holmes notou, com grave preocupação, que estava cada vez mais embrenhado na floresta dos Montes Urais. Em meio à alva paisagem coberta de neve, pinheiros e árvores altíssimas, típicas de uma floresta ainda intocada pela ação do homem. Cansado de caminhar sem destino, Holmes consultou o seu relógio. Estava caminhando e carregando Grigori há quase três horas floresta adentro, e ainda não havia encontrado nenhuma cabana ou mesmo caverna para se abrigar. O frio começava a tomar conta de seu corpo, tornando-se um aviso de que sua demora a encontrar um abrigo ou qualquer vestígio de civilização poderia pôr um fim doloroso em sua jornada à Rússia.

            Enquanto caminhava, Holmes ouviu um rosnar, semelhante ao de um cão em fúria. Ao virar-se, estava diante de nada menos que um lince selvagem, já com os dentes arreganhados, pronto para atacar. Com Grigori em suas costas, Holmes levou sua mão cuidadosamente ao revólver que estava em sua cintura, mas o detetive foi impedido de sacar a arma pelo som de um disparo. O tiro, que assustou o detetive, acertou em cheio a cabeça do animal, que caiu morto.

Ainda arfando de surpresa e medo, Holmes ouviu um assobio despreocupado e passos abafados pela neve. Logo surgiu um homem já de idade, vestindo roupas muito modestas e carregando um rifle antiquado.

—Está tudo bem?

Holmes assentiu, surpreso com a cordialidade demonstrada pelo estranho, pouco comum no povo russo.

—Graças a Deus. – deixou escapar Holmes, em inglês.

—Oh, vejo que você é inglês. – disse o sujeito, falando em Inglês, surpreendendo Holmes.

—Sim, de fato o sou.

—Faz um tempo que não vejo um. Venha comigo, então. Minha casa fica aqui perto. Lá, estará a salvo dessas feras. – disse, recolhendo o lince e o carregando nas costas, como se fosse um saco de batatas. Holmes notou que havia mais dois coelhos atados por uma corda em sua cintura.

O homem, mesmo aparentando ser um camponês russo, falava um inglês decente. Com um pouco de sotaque russo, mas decente. Deixando que o homem caminhasse na frente, Holmes pôde nota-lo melhor. Ele usava roupas modestas, um chapéu vagabundo, mas andava com relativa classe e sabia segurar bem uma arma. Sua vigilância era nitidamente como sendo de um homem acostumado a armas de fogo. Que tipo de camponês ele poderia ser?

—Precisamos nos apressar. Ele... – tentou dizer Holmes, olhando para Grigori, ainda nervoso com o desencadear de eventos que acabara de acontecer diante de seus olhos.

—Não estamos longe. – o homem parecia querer tranquiliza-lo. – Não se preocupe, o menino ficará bem. Quando acordar, terá um prato de sopa quente esperando por ele.

O homem estranho não estava errado quando disse que estavam próximos. Terminando de completar a subida na colina, Holmes pôde ver uma pequena cabana de madeira. Das janelas e portas fechadas, um pouco de luz escapava de suas frestas, além da fumaça da chaminé a indicar que o ambiente seria mais aconchegante que a friagem daquela noite na floresta.

Ao abrir a porta, Holmes foi recebido pelo calor aconchegante da lareira, que esquentava aquela cabana pequena. Sem pensar duas vezes, Holmes pôs Grigori para perto do fogo. Ao retirar o menino de suas costas, Holmes deixou escapar um lamento de dor, pelo ombro deslocado. Seu gesto chamou a atenção imediata do sujeito.

—Está tudo bem?

—Meu ombro... Acho que o desloquei. – admitiu o detetive.

—Não se mova. – disse o sujeito, aproximando-se de Holmes. Ajudando-o a remover a casaca e o terno, e principalmente ignorando os gritos de dor do detetive, o estranho finalmente conseguiu deixa-lo apenas de camisa.

—Você está correto. Seu ombro está mesmo deslocado. Presumo que não seja a primeira vez. – disse o homem, com aparente calma. Sentindo intensa dor, o detetive apenas assentiu. A morfina que ainda havia em seu organismo o ajudou a sentir menos dor em sua caminhada, mas o efeito praticamente já havia passado pelas horas passadas na floresta. Holmes tinha consciência de que, se não fosse a morfina aplicada pelos bandidos, seria impossível carregar Grigori nas costas, ainda que fosse em seu ombro sadio.

—É melhor o senhor se deitar no chão. – pediu o estranho. Holmes assentiu. Sabia o que aquele indivíduo estava prestes a fazer. Segundo Watson, esta era a forma mais fácil e prática de se colocar um ombro deslocado no lugar. Fazer a pessoa com o ombro deslocado deitar-se de costas em uma superfície plana, com o braço machucado em um ângulo de 90 graus em relação ao corpo. Depois, pedir à outra pessoa presente para segurar sua mão/pulso e lentamente (mas com firmeza) puxá-lo para fazer tração. A tração feita neste ângulo faz com que a cabeça do úmero volte à posição inicial, encaixando-se com relativa facilidade. Holmes poderia ouvir claramente as palavras de seu melhor amigo a vagar em sua mente, enquanto inebriado pela dor de seu ombro deslocado.

Além de obedecer a esta etapa, o idoso também colocou seu pé no tórax de Holmes, decerto para ter mais apoio. Tal como o recomendado, o idoso colocou o ombro de Holmes no lugar. Enquanto o detetive gania de dor, o sujeito saiu da sala. Voltou com um punhado de neve, dentro de um pano.

—Ainda bem que, por aqui, gelo é o que não falta. Será bom para anestesiar a dor e evitar inflamações. – disse, colocando a superfície gelada do pano sobre o ombro lesionado de Holmes. Com rapidez, o estranho também fez uma tipóia do cachecol e colete de Holmes, imobilizando o braço do detetive. Tudo isto, admirou-se Holmes, com notável frieza, sabedoria e destreza de um homem experiente.

Apesar do frio, gotículas de suor se formaram na testa de Holmes, decerto pela dor do ombro deslocado. Uma tosse, vinda de Grigori, chamou a atenção do detetive. Verificando o menino, Holmes percebeu que a neve que cobria sua casaca e boina havia derretido no calor do ambiente, deixando o menino encharcado. Ainda imóvel pelo efeito da morfina, Grigori estava pálido e seus lábios estavam roxos. Holmes tentou se mover para retirar suas roupas molhas, mas coube ao próprio estranho detê-lo e fazer isso, descartando a roupa molhada em um canto.

—Irei eu mesmo colocá-lo em minha cama. Farei o que puder para deixa-lo bastante agasalhado. Depois, vou preparar algo quente para comermos. O senhor deve estar faminto. – disse o homem, calmamente.

—Obrigado, Mr...?

—Abe.

À beira do fogão, Abe acendeu algumas velas, iluminando um pouco a área da cozinha. Pela primeira vez, Holmes pôde ver seu rosto nitidamente. Ele era um homem já idoso, deveria estar à beira dos setenta anos. Usava uma barba grande e seus cabelos estavam acima da orelha. Havia ainda alguns fios loiros remanescentes e seus olhos eram verdes, irradiando notável tranquilidade.

Como se não tivesse matado um animal feroz há alguns minutos atrás.

Abe...

—Apenas Abe? – insistiu Holmes.

—Sim. Apenas Abe. Por quê?

Holmes sentiu-se envergonhado por ser desnecessariamente rude com um homem desconhecido que acabara de salvar sua vida.

—Perdoe-me, é que... Enfim, é um costume de meu povo chamar pessoas que não conheço pelo sobrenome.

—Entendo. – disse Abe, tranquilamente, retirando uma garrafa de dentro de um armário. – Bom, eu o dispenso desse “costume”, caso não se incomode, afinal não estamos na Inglaterra. Vodka? Irá ajudar a espantar o frio.

Holmes assentiu, recebendo em seguida um pequeno copo. Ao beber, sentiu um ardor fortíssimo atingir a garganta e queimar-lhe as bochechas, forçando-o a deixar escapar uma careta. Aquela era uma vodka fortíssima. Abe riu.

—Vejo que não está acostumado. Tudo bem, é melhor se limitar a um gole, ou acabará embriagado.

Ao vê-lo rindo pela primeira vez, Holmes notou que a expressão facial do idoso lembrava alguém que ele conhecia. Seu olhar estava direcionado a ocupação do homem idoso em preparar uma refeição decente a duas pessoas estranhas. Curioso, pensou Holmes. Aquela era uma situação claramente arriscada. Eles estavam em um terreno hostil e foram, de repente, ajudados por um estranho que poderia muito bem ser um inimigo disfarçado apenas para entrega-los. Mas havia algo naquele idoso que passava confiança a Holmes. Uma certa verdade em seu olhar que a experiência de Holmes com toda a sorte de gente lhe dizia que era alguém confiável.

Abe parecia concentrado em cortar legumes, enquanto a água fervia em uma pequena panela. Em um dos armários, o idoso retirou um pedaço de carne, cuidadosamente embalado e coberto de sal grosso, certamente para preserva-lo. Cortou alguns pedaços e o lançou à panela. Depois, foi a vez dos legumes. Batata e beterraba, percebeu Holmes. O idoso parecia cantarolar algo, enquanto fazia sua modesta refeição. Uma canção familiar aos ouvidos de Holmes.

Onde eu já ouvi isso?

O cheiro bom do ensopado logo começou a impregnar o ambiente. Parecia que a situação de pânico tinha dado a Holmes um pouco de fome, pois ele sentiu seu estômago reclamar. Verdade seja dita, ele estava a mais de 24 horas sem comer coisa alguma, e caminhar horas a fio por um bosque em plena nevasca o deixou exausto.

—Acredito que essa nevasca passa amanhã. – disse Abe, entregando a Holmes uma tigela e uma colher.

—O que já não é sem tempo. Ouvi dizer que esse inverno é um dos piores da Rússia.

—Todos os anos dizem a mesma coisa. – retrucou o idoso, fazendo Holmes imediatamente lembrar-se das palavras de Grigori, tempos atrás. Um grunhido foi escutado, vindo da cama disposta no canto do cômodo. Era o menino, se mexendo e resmungando alguma coisa em sua língua paterna.

—Parece que minha modesta sopa de beterraba está despertando o seu filho.

Holmes sentiu-se no dever de retrucar.

—Ele não é meu filho.

—Não? Bom, perdoe-me a especulação. Não é difícil chegar a esta conclusão, é? Afinal, vocês estavam juntos...

—Sim, eu entendo. Eu espero que nossa estadia em sua casa não incomode a você nem a sua família. – disse Holmes, sutilmente sondando o idoso. Algo que não passou tão despercebido assim por Abe.

—Não precisa ser tão indireto. Como pode ter percebido, eu moro sozinho. Não tenho família.

Um silêncio se seguiu, enquanto os dois homens se relaxavam à beira da lareira, já jantados. Por alguns momentos, Holmes movia seu olhar para o menino, preocupado.

—Ele vai ficar bem. – disse o idoso, como se compreendesse sua preocupação. – Pegou um pouco de neve, mas vai ficar bem.

—Temo por uma hipotermia...

O idoso riu da possibilidade exagerada levantada por Holmes.

—Não vai acontecer tal coisa. Daremos um pouco de mel para ele. Será bom para afastar um eventual resfriado. Acho que ele está acordando. Vá ver como ele está. Enquanto isso, eu vou arrumar nossas camas. Já está tarde.

Holmes assentiu, verificando Grigori. Ele estava com febre.

—Grigori... Vamos lá, acorde... – disse Holmes, recebendo como resposta dois olhos azuis semicerrados. Satisfeito, Holmes continuou.

—Como está se sentindo?

—Estranho, meio... Meio sonolento... E com frio. – disse o menino, francamente, antes de tomar uma colher de mel, dada por Holmes.

—O que aconteceu? – questionou o menino. – Quando eu acordei, havia um homem na nossa cabine e...

—Falaremos amanhã, agora descanse. Eu estarei dormindo ali, qualquer problema pode me acordar. – disse Holmes, ajeitando o cobertor do menino até seu pescoço.




Holmes teve uma noite sem sonhos. Não sonhou com sua vida de casado com Esther ou os tempos felizes que passaram em Montpellier, como nos últimos tempos vinha acontecendo. Talvez fosse fruto da fadiga recente a qual fora submetido, que deixara seu corpo e seu cérebro tão cansados a ponto de sequer serem capazes de fabricar sonhos. Ele despertou ainda com os ossos doendo, reflexo de sua recente estripulia, e também o ombro ainda imobilizado latejando de dor. De fato, não era mais nenhum garoto.

Ele consultou seu relógio de bolso. Passava das nove da manhã. Não havia mais nenhum sinal de Abe pela casa. Em um canto, onde havia uma enxada na noite passada, Holmes notou que ela não estava mais lá. Decerto Abe tinha ido trabalhar. Era estranho imaginar um lavrador trabalhando em um clima tão frio, mas não em um país tão frio como a Rússia.

Grigori estava sentado à beira da lareira, aparentemente melhor, o que deixou Holmes mais tranquilo. O menino parecia mais confortável ao redor do fogo, que estava quase se apagando. Holmes se sentou ao seu lado e pegou o atiçador, reavivando o fogo.

—Melhor? – perguntou o detetive.

—Um pouco. – assentiu o menino. Holmes notou que ele estava com o nariz escorrendo, mas já trazia um semblante mais corado que a noite anterior.

—O que houve com o seu braço? – perguntou o menino, curioso.

—Desloquei meu ombro. Não precisa se preocupar, não é algo grave. Enfim, acho que ainda deve ter um pouco de sopa na panela. Você precisa se alimentar. – disse Holmes, levantando-se e indo até o fogão.

Holmes percebeu que a panela estava vazia. Certamente, Abe tomou a sopa da noite anterior em seu café da manhã, o que era mais do que justo. Um tanto hesitante, Holmes decidiu abrir os armários, em busca de algo que pudesse dar de comer ao menino. Abe não iria reclamar disso.

Holmes encontrou um pote com pão. Ao retirar o pote, Holmes acabou sendo surpreendido por um objeto bastante inusitado, muito bem escondido no fundo do armário.

Um candelabro de sete braços em bronze, que Esther chamava de Menorá.


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Notas finais do capítulo

Ihhhhhhh

Mas afinal, quem será esse Abe, hein?? Eu vou admitir que nem deixei muito mistério sobre a verdadeira identidade dele. Tá até meio óbvio. A pergunta é: como ele veio parar ali?

Até o próximo cap!



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