O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 42
Nos Gélidos Braços de Morfeu


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal


Bom, já que acabei de adentrar à imensa fila de desempregados de nosso país, ou, - espero que não! - nas palavras da turminha bolchevique, ao "Exército Industrial de Reserva", achei por bem postar esse cap nesse feriadinho de Finados.

O título diz tudo. Boa leitura!



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Onde estou?

Ah, mas é claro que estou em casa. Baker Street. Minha poltrona. Estou sentado sobre ela. Sinto por baixo de meus dedos a característica textura aveludada de um dos móveis mais estimados que possuo em vida. Ouço o trepidar da madeira queimando na lareira. Sim, está quente aqui. Quente, acolhedor. Deve ser outono. Gosto do outono. Lá fora, o som das carruagens.

Carruagens?! Há tempos que as ruas de Baker Street foram tomadas por automóveis... Não... Isso é um delírio...

—Ah, Mrs. Hudson! Que bom que trouxe o café. – diz meu velho amigo Watson.

Mrs. Hudson? Mas a senhora já morreu!

—Holmes, não seja indelicado com Mrs. Hudson! – repreende-me Watson, quando na verdade sequer exprimi meus pensamentos vocalmente.

De repente, ouço a porta se abrir. A pessoa que surge dela me assombra. Não porque está morta, mas porque simplesmente sequer consigo imaginá-la ali, em minha antiga residência. Colocando uma típica Ushanka sobre o cabide e se removendo de uma casaca pesada até demais aos padrões britânicos, Lenin traz em seu rosto o mesmo semblante sisudo de um intelectual submerso demais no mundo das ideias para saber o mínimo de cordialidade, pois o mesmo sequer faz qualquer cumprimento a Watson, sentando-se sem qualquer cerimônia sobre a poltrona ao meu lado.

Penso em dizer qualquer palavra para questionar sua inexplicável – e quem sabe, impossível – presença em Baker Street, mas outra vez sou paralisado. Desta vez, não por pessoas mortas, veículos ultrapassados ou visitas inesperadas, mas por meu semblante, projetado nos bem polidos talheres de prata do chá posto sobre mim. Meu cabelo não está mais grisalho, mas sim, escuro, negro como a noite, lustrado e vigorosamente penteado, como do auge de meus trinta anos de idade. As olheiras das últimas noites de péssimo sono, cansaço e preocupação também não estão em meu rosto. Apenas as velhas olheiras de uma vida boêmia e desregrada. Isso foi o bastante para me perceber que sim, eu estava vivendo uma forte ilusão. Um delírio.

Sim, isto é um delírio, repito a mim mesmo. Um tipo de delírio que conheço bem. Morfina, é claro. Drogaram-me com morfina, essa maldita droga que eu não uso há anos, mas que, apesar disso, conheço imensamente bem os efeitos...

Meus pensamentos voltam ao delírio quando percebo Lenin começar a se movimentar, abrindo uma pasta que sequer notara que ele estava carregando. O líder bolchevique, para meu pasmo, retira dali um pequeno e surrado bloco de anotações, com uma nítida mancha de café, e também um imenso tabuleiro de xadrez, cujo tamanho naquela pasta ultrapassa os limites da Física. Mais um sinal de meu delírio. Isso me deixa preocupado, pois meus delírios em Morfina e Cocaína costumavam, ao menos, obedecer as regras básicas de Física. Sinal de que estou enferrujado? Não sei.

—O que significa isso? – pergunto.

—Acho que nós dois precisamos de uma partidinha de xadrez, não? – diz Lenin, sem olhar diretamente em meus olhos, ocupado enquanto encaixava as peças na mesa.

Uma partida de xadrez. Por vezes, enquanto drogado, imaginei-me a jogar xadrez com meu irmão Mycroft, e posteriormente e por muitos anos, admito, com o Professor Moriarty. Quando impressionado pela audácia de Irene Adler, meus delírios se tornaram uma ida a uma peça de Vagner com a Mulher ao meu lado, conversando comigo sobre Música Clássica e basicamente “testando” meus conhecimentos no tema, fazendo perguntas extremamente técnicas sobre violino – apesar de a própria Adler ser incapaz de tocar uma só nota no instrumento sem parecer um gato arranhado. Mais tarde, foi a vez de Esther a ocupar minha transloucada mente perturbada por narcóticos, cujos delírios provocados por ela recuso-me a trazer à tona. No entanto, por razões desconhecidas, lá estava o bolchevique, a provocar-me.

—Está bem. – aceitei, movendo a primeira peça branca.

—Então, você acabou pego. – ele disse, com olhar despreocupado. Assenti.

—Cometi um erro. Não estava imaginando que seriam tão rápidos. Deveria ter previsto essa interceptação.

—Gostaria de entender por que se refere a tudo no plural. – disse Lenin, movendo uma peça preta perigosamente. Tentei proteger uma torre, fazendo um movimento evasivo.

—É um costume referir-se a algo ou alguém desconhecido no plural. “Pegaram”, “encontraram”, “levaram”...

—Tem razão. Já tem teorizado sobre isso? Pois há que se admitir que é um tanto suspeito que “eles” tenham te localizado tão rapidamente. Sequer pôs seus pés em Ecaterimburgo e fostes pego.

Olhei para Lenin, que naquele momento era nada mais que a minha própria mente, personificada sabe-se lá porquê com a aparência do bolchevique, tentando me pressionar a pensar. A morfina sempre clarificou minha mente, fazendo-o por intermédio de alguém, por vezes.

—“Eles” estão vigiando meus passos. – conclui. Lenin concordou.

—É alguém muito próximo. Alguém que esteve perto de você por muito tempo.

—Sim. Por uma fração de segundos, cheguei a pensar que eram os bolcheviques. – falei abertamente, sem me importar se estava chamando os liderados de Lenin de bandidos da pior espécie de modo indireto. Pouco me importava. Aquele não era Lenin, de qualquer modo.

—O que não são, isso nós já sabemos. A morte de Daniel Jenkins atrapalhou os planos dos bolcheviques. Perdemos doze camaradas valiosos detidos na Okhrana porque nossa mais preciosa moeda de troca recebeu um tiro na cabeça no momento em que estava prestes a te revelar algo de suma importância. – o intelectual moveu outra peça, eliminando meu precioso cavalo da mesa. – Aliás, eu gostei do blefe.

Movi outra peça, eliminando a torre de Lenin que havia eliminado meu cavalo, e também mais um peão, fazendo o bolchevique franzir o cenho.

—Deste blefe? – perguntei, com diversão, referindo-me ao meu movimento que me fez perder meu cavalo, mas me fez eliminar duas peças do intelectual. Ele riu.

—Deste? Não muito, admito. Estou me referindo ao blefe de Vlad.

—Oh sim. – eu concordei. – Não é a primeira vez em minha vida que eu engano alguém por meio de artifícios.

—Vlad não saiu do banheiro de sua redação o dia todo. Aliás, é curioso que o rapaz saiba de tanta coisa, não?

—Ele é um jornalista.

—Vamos lá... – disse Lenin, num tom risonho. – Vlad está mais para um panfleteiro do que um jornalista. Precisa entender, Mr. Holmes. O senhor não está em seu país, onde jornalistas têm olhos de lince e faro para furos de reportagem. Está na Rússia. E aqui na Rússia, os jornalistas não tem um dom nato para a investigação. E Vlad nada mais é que um bolchevique que sabe escrever sem erros ortográficos. O bastante para se passar por um jornalista.

Eu suspirei. Se Lenin, ou minha mente, estava desejando me testar, fazia-o com notável proeza.

—Há um motivo muito forte para Vlad ter realizado essa investigação. Não um motivo, mas uma suspeita. E uma suspeita relacionada à única coisa que lhe importa em sua vida: o Partido Bolchevique.

Neste mesmo instante, Lenin moveu uma peça. A rainha. Observei o inexplicável movimento do intelectual sem entende-lo. Nem mesmo um amador faria um movimento tão ingênuo assim, deixando sua Rainha vulnerável ao meu peão.

—Me parece, Mr. Holmes, que por todo este tempo você esteve muito perto do que procura.

Movo minha peça, fazendo assim xeque-mate, assistido por um sorridente Lenin, que sequer parecia ter acabado de perder uma partida por um movimento tolo. O sorriso que Lenin me lançara se dissipara, e quando abro meus olhos, estou mais uma vez naquele vagão de trem, sabe-se lá onde na Rússia.

            Claro. Eu sou um viciado de longa data. O efeito da morfina é brevíssimo, e creio que passara mais rápido do que previa aquele patife, pois logo encontro a sala vazia, sem qualquer segurança. Com algum esforço, termino de me soltar da corda, sentindo meus pulsos doloridos. Não tinha tempo para inspecionar aquela ferida. Com cuidado, observei o corredor. Não havia ninguém. Tudo que pude escutar foram risadas, vinda do vagão restaurante, acompanhadas de conversas em russo sobre uma bebedeira qualquer em Moscou. Caminhando com cuidado, me dirijo até minha cabine, e me escondo quando noto um dos capangas, com pistola na cintura, a andar de um lado a outro. Ao que tudo indicava, ele era o único vigiando o trem inteiro, enquanto seus colegas se esbaldavam com bebida no vagão restaurante.

            Para distraí-lo, eu lanço uma moeda sobre o chão. Por sorte, ele decide investigar o barulho, e ao passar por meu esconderijo, eu o agarro e aplico um golpe rudemente conhecido como “sossega-leão”, deixando-o completamente inconsciente. Pego sua pistola e logo percebo que o bandido roubou o meu relógio de bolso, com o infame soberano. Tomando minhas coisas de volta, volto ao quarto de Grigori, e o encontro amarrado a uma cadeira, completamente inconsciente.

            Fico nervoso, quando vejo uma pequena e circular mancha de sangue sobre sua coxa, praticamente no mesmo local em que recebi morfina. Uma dose desconhecida de morfina e o corpo frágil de uma criança são combinações perigosas. Meu temor me faz checar sua pulsação. Está fraca, mas ele ainda está vivo. Prossigo com Grigori em meu colo para o vagão final, onde percebo que o trem está em alta velocidade. Aliás, pelo vislumbre que tenho das janelas abertas, não há nada ao redor além de floresta, neve e montanha.

            Os gritos desesperados em russo de “ele escapou!” me despertam. Se eu não fizer alguma coisa, serei capturado novamente, e duvido muito que sobreviva desta vez. Sem alternativa, não vejo outra rota de fuga senão pular daquele vagão em movimento e torcer para que a neve amorteça minha queda e que nenhuma pedra apareça pelo caminho.

            Tentando proteger Grigori com meu próprio corpo, eu me lanço contra uma colina e caio rolando em meio à neve, deixando aquele trem repleto de marginais prosseguir sua viagem sem mim.


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Notas finais do capítulo

E agora?? Meu Deus!! Será que eles sobreviveram??
Neste sábado, teremos as respostas, não se preocupe.
E por favor, não me batam por eu ter colocado a vida do pequerrucho Grigori em perigo, rs.

Então Lenin - ou o subconsciente de Holmes, como vocês preferirem - deixou aí algumas dicas. Será que vocês já têm o bastante para formar uma opinião?

Até sábado!



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