O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 28
Do Diário de Esther II


Notas iniciais do capítulo

Olá,

Para quem estava sentindo falta da Esther, eis o cap.
Agora saberemos um pouco do que ela andou fazendo antes de sumir.
Creio que esse cap será um prato cheio para suas teorias...

Boa leitura!



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Londres, Inglaterra, 21 de Novembro de 1908.


Minha investigação está parada há mais de um ano. Quando voltei da suspensão, meu querido chefe Sparks resolveu me encher de trabalho. Disse que isso manteria minha mente ocupada, “livre de bobagens”. Quase o mandei à merda quando ele comentou tal coisa. Cretino. Chamando meu filho de bobagem, como ousa?!

Acho que preciso ir mais à Sinagoga

Após um trabalho em Berlim, consegui autorização para um “descanso”, do qual aproveitei para retornar à Londres, algo que não faço há tempos. Tentei evitar Baker Street ao máximo, mas certa vez, quando um acidente em uma rua principal de Westminster forçou o taxista a usar Baker Street como atalho, meu coração disparou. Fazia anos desde minha última vez ali, e mais do que nunca eu temia reencontrar Sherlock. No fundo, eu desejava vê-lo, desejava tocá-lo, abraça-lo, beija-lo saber como ele estava, se estava conseguindo viver bem sem mim. Mas eu sabia que se voltasse a vê-lo, eu poderia fraquejar. Eu estava com minha investigação parada há quase um ano. Ele poderia usar tal coisa a seu favor. E eu conhecia bem o seu poder de persuasão.

Ainda bem que eu não consegui ve-lo. Ainda bem.

Decidi aproveitar o tempo livre para rever amigos. Norah Reid era uma delas. Molly Sarandon tinha se transformado desde seu casamento com John Watson. De uma jovem inteligente e calma, passou a mulher obcecada com os filhos, ciumenta e possessiva. Por mais que eu tivesse permanecido com nossa amizade, não concordava com o tratamento que ela dava para a menina Emily. Pobre dela, sempre preterida, maltratada pela madrasta. Não tinha culpa dos pecados da mãe, tinha? Aliás, John também tinha sua porcentagem de culpa nisso, mas tudo parecia sempre recair apenas sobre a menina.

Notei que Norah estava com a vida arranjada, cada vez mais envolvida com a política. Seu filho, Eric, era um belo rapaz, mas senti que havia algo de muito deslocado nele. Uma melancolia inexplicável exalava de si. Na verdade, eu senti certa familiaridade com Sherlock em seu comportamento, com a diferença de que Sherlock sabia controlar o abismo de seus sentimentos. Só esperava que o menino Eric não recorresse aos mesmos narcóticos que faziam as vezes de refúgio para a depressão pós-casos de Holmes.

Minha razão de visitar Norah ia além do pessoal. Claro, eu tinha saudades de suas conversas inteligentes e seu jeito sempre perspicaz e audacioso de encarar a vida, mas o fato é que os motivos que me fizeram procura-la foram outros. Eu queria ajuda. Ajuda para entrar na Rússia, de modo incógnito. E eu sei que Norah conhecia os contatos certos, uma vez que a Rússia havia se tornado uma panela fervente diante do crescimento acentuado do Comunismo, causa que eu sabia que ela defendia. Ela pareceu reticente, mas quando contei de minha real intenção, ela cedeu. Deu-me o nome de um professor de Química russo chamado Lev Sokolov, que por coincidência do destino estava em Londres, para uma conferência. Pediu para que eu me aproximasse desse professor, referindo-me a ela em primeiro lugar, como um cartão de visitas. Notei que ela sentia profunda admiração por ele – admiração que eu não a via sentir por homem nenhum desde Edmund Reid. Logo suspeitei de que acontecera algum affair entre ambos – algo que muito me faria feliz, saber que ela conseguiu sentir em frente, mas preferi não sondar qualquer coisa. A julgar pelo tom dela, Norah queria privacidade e eu não tinha qualquer direito em interferir nisso.

Este professor Sokolov fará um seminário de Química na Universidade de Londres. Espero que a palestra dele não seja entediante.


Londres, Inglaterra, 21 de Novembro de 1908.


            Assistir à palestra não foi tão complicado quanto pensei. Lev Sokolov tinha um forte sotaque russo, mas gostava de fazer gracejos durante a palestra, deixando a todos os presentes bastante atentos, inclusive os mais leigos como eu. Embora eu tenha certeza de que eu era a única leiga naquele auditório.

            A palestra de Lev falava a respeito de uma superpílula, criação sua, que poderia prover os mais pobres de todos os nutrientes necessários para a vida. Listou cerca de15 vitaminas que seriam fornecidas com uma cápsula que cabia na palma da mão. Disse que seria vital para atletas, os mais necessitados, e até mesmo em casos de uma Guerra, que segundo ele, “era cada vez mais certa de ocorrer”.

            Ele recebeu muitas perguntas ao final de sua fala, especialmente a respeito de testes. Ele disse que os testes ainda não aconteceram, porque ele estava recebendo negativas do governo Russo, mas que contava com financiamento inglês e que poderia vender a tecnologia ao Exército Britânico, se necessário. Em meio a explicações sobre propriedades químicas, foi tudo que pude entender.

            Encontrei-me com ele no final. Parecia ser um homem tranquilo. Dificilmente o passaria por comunista. Acredito que os comunistas de anos atrás tenham mudado bastante. Ou, na verdade, outros tipos de comunista tenham adentrado à causa. Não só os comunistas de porta de fábrica, mas também os de sala de aula.

            Quando mencionei Norah Reid, seu semblante se tornou grave, sério. Senti-o mais preocupado, temeroso de estar sendo observado enquanto conversávamos. Para dizer a verdade, sua paranoia me fez sugerir uma conversa em local mais reservado, do qual ele aceitou.

            Fomos a um café e nos sentamos à mesa mais afastada dali. Ele tornou-se relutante quando contei a ele que gostaria de ir à Russia “incógnita”, algo que eu já esperava. O problema é que ele parecia relutante em me ajudar. Não vi alternativa senão contar minha história de vida a ele. Ele ouvira com atenção, e tornou-se curioso com a menção de Jenkins. Claro, Jenkins era um conhecido agente da Okhrana, é natural que um comunista fique curioso. Meu ódio a Jenkins me fez conseguir sensibiliza-lo. Por fim, aceitou. Disse que costumava levar alguns ingleses da “causa” com documentos falsos para a Rússia e que faria o mesmo por mim. Cobrou-me uma fortuna, mas isso já era esperado. Por sorte, tinha ainda algumas economias, o bastante para pagar.

            Ele virá me buscar amanhã de manhã, antes do sol nascer. Pegaremos um vapor com direção à Rússia, onde receberei os prometidos documentos falsos e assim, poderei procurar pelo meu filho naquela terra que jurei jamais pôr meus pés novamente.


São Petersburgo, Rússia. 21 de Dezembro de 1908.


            Agora, que desembarco no porto de São Petersburgo, me sinto estranha. Anos atrás, eu era uma menina assustada, temerosa com meu destino, acompanhada de meu irmão e de minha mãe, entrando em um navio rumo a um país estranho, trazendo apenas uma bagagem pequena e magra e uns rubros escassos no bolso, sem saber o que poderia me acontecer. Olhar para aquele fluxo de pessoas, muitas deles indo embora da Rússia, me estremeceu. Seus semblantes cansados e tristes, maltratados pela vida, eram tão semelhantes aos meus, aos de minha mãe...

            [manchas de gota d’água] Preciso ser firme. Não posso fraquejar agora. Jonathan precisa de mim. Ele só pode contar comigo, e mais ninguém.


São Petersburgo, Rússia. 10 de Janeiro de 1909.


            Natal e Ano-Novo se passaram. Apesar do clima de nostalgia ter me devastado nessa época, à medida que eu observava famílias andando pelas cidades lotadas de neve carregando seus vistosos pinheiros, creio que jamais estive tão concentrada. Desde que Mr. Sokolov entregou-me os tão prometidos documentos, pus-me a andar por São Petersburgo em busca de Elizabeth Smith. Soube que a firma que realizava os depósitos foi fechada, à mesma época que o desaparecimento da moça. Duvido que tal coisa seja apenas coincidência.

            A firma está lacrada com tábuas de madeira, mas segundo relatos que pude escutar pela vizinhança, o prédio já foi saqueado. Isso não reduziu minhas esperanças. As pessoas que fizeram tal coisa estavam atrás de dinheiro e coisas valiosas. Tudo que eu queria eram papéis. Documentos, para ser mais específica. E isso não interessava a ladrões comuns.

            Numa noite deserta, repleta de neblina, disfarcei-me e invadi o local abandonado. De fato, o tal saque ocorreu. Avistei papéis, cacos de vidro e lixo espalhados por toda a parte. Levaram praticamente tudo que poderia render alguns rubros, ou mesmo que pudesse mobiliar um pouco a casa. Mas caixas abarrotadas de papéis ainda pairavam em um canto, esquecidas. Os papéis estavam desordenados, indicando que os bandidos ainda vasculharam algo de valor, mas nada que pudesse atrapalhar minha procura.

            Passei a madrugada lendo documento por documento, com a ajuda de uma pequena lanterna. Aquele era um escritório de exportação, e só o que havia ali eram cotações de venda, fichas de funcionários... Nada de comprometedor. Por sorte, minha empreitada não foi totalmente em vão. Em uma das pastas, avistei uma lista de depósitos bancários. E lá estava o nome de Elizabeth, seguido de um endereço.

            A famosa Rua Arbat, em Moscou.



Moscou, Rússia. 13 de Janeiro de 1909.

Rua Arbat.


            A movimentadíssima Rua Arbat não estava muito longe de possuir toda a badalação e inquietude que eu tão bem conhecia de Londres. Havia cafés e lojas por todo o lugar, e pessoas bonitas e bem-cuidadas também. Era a primeira vez que eu visitava Moscou, e para minha surpresa, a cidade não estava taã longe da pungência de São Petersburgo. Havia a belíssima Catedral de São Basílio, o imponente Kremlim e a fabulosa Praça Vermelha, todos locais fascinantes e de encher os olhos com suas maravilhas arquitetônicas. Pelo que pude perceber, essa radiante Moscou sofria apenas por não se adequar ao gosto do Czar Nicolau II.

            No número 39, pude encontrar o casarão mencionado como endereço de Elizabeth Smith. E mais uma vez, encontrei uma residência lacrada. Na verdade, chamar aquele escombro de “residência” era um elogio inadequado. O local tinha claramente sofrido um incêndio, mas nada muito recente. Provavelmente, algo acontecido há alguns anos atrás.

            Não havia uma pessoa na Rua Arbat que não soubesse quem eram os ocupantes. O casal Morozov. Sempre que mencionados, notei que havia algo neles que o faziam soar como famosos. Não tardei a descobrir quem era os tais Morozov, pois vizinhos fofoqueiros dispostos a me contar toda a história não me faltaram.

            A residência dos Morozov foi protagonista de um ataque em 1905, ocorrido na mesma época que o “Domingo Sangrento” que provocou todas as revoltas que abalaram a Rússia e fez trazer o temor de uma Revolução nos mesmos moldes que a Revolução Francesa. Os Morozov eram uma família de nobres, uma das poucas a serem atacadas na vizinhança, não porque eram simplesmente ricos, mas porque a mulher, Natasha Morozov, era ninguém menos que uma das filhas do Duque Ivanov [grifado por Esther].


Moscou, Rússia. 15 de Janeiro de 1909.


            Escrevo em uma madrugada, passada em claro na cama de um hotel três estrelas em Moscou, porque honestamente, preciso arrumar minhas idéias.

            Desde que descobri que Elizabeth Smith era uma babá empregada por uma das filhas do Duque Ivanov, sinto meu coração ainda mais aflito. Passei os últimos dias indo aos jornais, para me inteirar sobre o que aconteceu aos Morozov desde então. Por sorte, ninguém morreu ao ataque. Os Morozov simplesmente se mudaram de Moscou e foram viver em uma fazenda longínqua, cuja localização eu ainda não sei. Tola que fui, por acreditar que talvez os Morozov tivessem recorrido aos Ivanov para sair da cidade. Cada vez mais que leio as notícias sobre os Ivanov, duvido muito que os braços daquela família se constituíssem numa opção minimamente sensata.

Oficialmente, o Duque Ivanov tivera apenas filhas como herdeiras – seu único filho varão era o filho bastardo Dmitri, já falecido. Apesar da nobreza, a vida das irmãs Ivanov na Rússia era um verdadeiro livro aberto, perante jornais e noticiários. O problema é que, desde a morte do Duque, os Ivanov ocupavam cada vez mais as páginas policiais, ao invés das colunas sociais.

            A mais velha das irmãs, Olga Ivanov, era a mais poderosa delas. Casada com ninguém menos que o Comandante Vassíli Golubev, figura altamente singular no Exército e pertencente ao círculo de confiança dos Romanov. Apesar de casada, fazia questão de ainda utilizar o sobrenome dos Ivanov, do qual ostentava sempre com orgulho. Tem uma aparência imponente e um tanto aristocrática, pude notar pelas fotografias de jornais e colunas sociais.

            A segunda mais velha, Elizaveta Ivanov, era solteirona. Faleceu de pneumonia um ano após a morte do Duque.

            A terceira mais velha, Anya Ivanov, era freira. Morreu em seu convento, aparentemente de causas naturais, cerca de nove meses depois da morte do Duque.

            A quarta, Veronica, era casada com um pintor decadente. Teve seu fim quando sua casa foi assaltada, e os bandidos acabaram matando o casal e também os filhos, uma tragédia largamente publicada nos jornais. O crime aconteceu exatos sete meses após o falecimento do Duque.

            A quinta, Ekaterina, também era casada, porém com um nobre russo, da fluente e também poderosa Família Smirnov. Ambos tiveram uma filha. A família, porém, também foi assassinada durante um ataque de empregados insatisfeitos com os Smirnov. Todos tiveram suas cabeças penduradas em espetos, presos à beira da estrada, em um gesto que deixou a nobreza russa chocada. Isso aconteceu dez meses depois da morte do Duque.

            A sexta, Vanya, foi internada em um hospício após fazer grande escândalo em um baile, em meio a nobres. Os jornais a noticiaram como viciada em ópio. Isso aconteceu oito meses após a morte do Duque.

            Cerca de cinco anos após a morte do Duque, sua sétima filha, Vera, estava noiva de um industrial chamado Ernest Duncan, quando um trágico acidente com seu automóvel também acabou com sua vida. A culpa do incidente coube a uma rivalidade de Duncan com uma firma norueguesa. O caso ainda seria julgado. Ela foi a última a falecer, restando apenas Olga como herdeira ainda viva.

            Mas o objeto de minha investigação era Natasha Ivanov, que creio também ser uma vítima da disputa pela herança dos Ivanov que culminou na vitória de Olga. Ela se casou com Petr Morozov, que possuía muitas terras ao Leste. Foi a este casal que meu filho foi entregue, segundo minhas suspeitas. Porém, o que mais deixou estarrecida foi saber que um crime brutal, ocorrido há seis anos, na fazenda dos Morozov em Ecaterimburgo, marcou esta família. No que foi descrito como “ataque de ciúmes”, Petr matou a esposa e, arrependido, cometeu suicídio em seguida. Não sei porquê, mas lembrei-me com a história de vida de Sherlock e de seus pais, com a diferença que meu “sogro” Siger era mais covarde até nesse aspecto, preferindo descontar sua raiva por décadas em uma criança pequena e inocente. Entretanto, para minha frustração, o jornal não cita uma criança entre as vítimas da tragédia nem menciona se o casal tinha filhos, fato este que me pôs em dúvida se meu Jonathan realmente fora adotado pelo casal. Talvez Elisabeth tenha trabalhado por lá como doméstica, não necessariamente como babá. São tantas as dúvidas...

            De todo modo, eu estou arrumando minhas coisas para prosseguir para Ecaterimburgo, onde a tragédia dos Morozov se desenrolou. Algo me diz que voltarei de lá com a verdade na bagagem. Ainda que esta verdade seja a última coisa que eu deseje ouvir.


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Notas finais do capítulo

E então, ficaram intrigados com os rumos da investigação da Esther?
Parece que a coisa toda está muito tenebrosa. Algo que me diz que isso não vai prestar.

No próximo cap: é hora de reunir as malas, tirar a poeira do casaco mais grosso do armário, colocar um par de cachecóis e seguir para a Rússia, Holmes! E não esquece de pôr um casaquinho e uma touquinha no Grigori, E Irene provavelmente deve optar por um casaco de pele porque ela é poderosa, rs

PS: Eu falo essas coisas, mas eu adoraria conhecer a Rússia no inverno...

Enfim, piadas á parte, no próximo cap teremos o início dessa "viagem" para a Rússia.

Obrigada por acompanharem e até o próximo!!



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