O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 27
A Tempestade do Leste




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            A carta de Mycroft que chegara à residência dos Watson e em seguida passada às mãos de Sherlock Holmes era claramente objetiva. “Sherlock, venha ao Diógenes com urgência.”, e só. Nada de diferente vindo de alguém de Mycroft, homem econômico em palavras – algo completamente oposto de Watson, sabia Holmes. Apesar de sempre criticar a forma romanceada que seu amigo tinha de ver a vida, vez ou outra Holmes se irritava com as maneiras práticas e nada cordiais de Mycroft em se tratando de correspondência. Ou seria por tais correspondências sempre deixa-lo ansioso como uma criança que aguardava a vinda da Fada dos Dentes?

            Mas, diante dos últimos acontecimentos envolvendo Esther, a ansiedade de Holmes em encontrar seu velho irmão não advinha de qualquer alegria de criança, mas sim preocupação. Mas naquela tarde de poucas nuvens a preencher o céu de Londres, o detetive foi premiado com uma boa notícia.

            -Boehl está preso.

            Embora estivesse aliviado por dentro, Holmes permaneceu com o seu semblante estoico. Estava cansado de parecer sempre emotivo diante de seu irmão Mycroft.

            -Como conseguiram? – perguntou o detetive. Mycroft sorriu.

            -Denúncia anônima, pelo que soube.

            Holmes ergueu uma sobrancelha. – Deveras? Então, nenhum de seus “agentes” conseguiu chegar à Boehl? Foi necessário que alguém anônimo o denunciasse?

            O mais velho dos Holmes deu de ombros. – Pouco me importa os resultados, Holmes. O fato é que o fim de sua aflição acabou. Boehl está preso nas acomodações do Ministério das Relações Exteriores.

            Acomodações, pensou Holmes. Da boca de Mycroft, parecia que Boehl estava em um hotel, não nas masmorras do Serviço Secreto Britânico. Com toda a certeza o seu irmão jamais pôs seus pés lá.

Mycroft continuou, com o tom analítico de costume.

—E Boehl será enforcado amanhã. Se sair do Diógenes imediatamente, pegar um cabriolé no intervalo de... Doze minutos... – disse Mycroft, após consultar seu relógio de bolso -... levando cerca de dezoito minutos considerando o trânsito de sempre daquela região e sem incidentes, chegar na recepção e imediatamente procurar o Mr. Thorpe e falar brevemente com ele a respeito dessa sua... “Vontade” em ver Boehl, eu creio que isso te dará umas boas duas horas para ter uma conversa apropriada com ele, como sei que gostaria.

            -Por que tão cronometrado assim? – questionou Holmes.

            -Ele será transferido em breve. Pessoas não podem ser executadas lá.

            Holmes assentiu, despedindo-se de seu irmão brevemente e indo até o Ministério das Relações Exteriores, seguindo minuciosamente todos os passos cedidos por seu irmão.



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            Chamar as acomodações secretas de calabouço não seria um exagero. O local era úmido e escuro, e se localizava abaixo da terra, cerca de trinta e cinco degraus de escada, com exatidão. Holmes seguia pelos corredores apertados acompanhado de um agente bastante calado, cuja comunicação se limitava a resmungos inaudíveis e acenos com a cabeça. Talvez fosse melhor assim.

            Logo, o agente abriu a cela de número 32, um verdadeiro cubículo sem janela onde o único prisioneiro se encontrava sentado sobre a dura cama de metal coberta apenas por um cobertor fino. Era o próprio Boehl. Como semblante menos cansado que em Sussex, apesar dos hematomas visíveis no rosto. Um mercenário estrangeiro como ele, que cometera vários crimes graves obviamente não encontraria o destino na corda com o rosto em perfeito estado.

            -Boehl. – proferiu Holmes, pé e próximo à porta, sendo deixado às sós pelo guarda. O alemão se levantou, com o semblante de poucos amigos. No entanto, pôs-se a rir.

            -Olha, mas veja só quem teve a honra de me visitar. O que veio fazer aqui, Holmes? Rir de minha desgraça?

            Mantendo o semblante neutro, apesar de toda a raiva que sentia do mercenário, o detetive o respondeu.

            -Não. Vim te fazer algumas perguntas.

            -Hunf. – resmungou o mercenário. – Nem se dê ao trabalho de formulá-las. Sei que quer saber sobre o menino. Como é mesmo o nome dele?

            -Não se faça de cínico. – disse Holmes, cruzando os braços. – Sei que você sabe muito bem como ele se chama.

            -Sim. Você esta certo. Eu sei que ele se chama Grigori. E eu também sei de muitas coisas. Se eu tivesse dinheiro aqui, apostaria que as perguntas que têm a me fazer são exatamente sobre tudo o que sei a respeito daquele fedelho.

            -Poupou o meu tempo. – respondeu Holmes, friamente.

            Boehl assentiu com a cabeça.

            - Pois bem, o que realmente quer saber?

            -Para quem você trabalha?

            -Oh! – Boehl riu. – Curiosa a vida, não? Sabe todos esses hematomas? Pois bem, todos foram resultados do meu silêncio quanto aos meus antigos empregadores. Ainda tenho mais algumas feridas, estas não visíveis e em lugares nada agradáveis. Aqueles cães da Rainha tentaram obter respostas pra essa mesma pergunta e só receberam meu silêncio. Por que eu iria responde-la a você, que sei muito bem que é do tipo que se mostra contrário a tortura? E não. Nem tente fazer falsas promessas, como “eu posso tirar você daqui”, não. Completei quarenta e um anos ontem. Amanhã serei um homem morto. Homens de minha profissão raramente chegam a esta idade, então acredito que não tenho muito do que reclamar sobre o meu fim. Cedo ou tarde ele vem.

            Holmes suspirou forte. Sabia que seria complicado conversar com Boehl. Mas, ainda assim, ele precisava tentar.

            -Conte-me, então, como se deu sua caçada à Grigori. Creio que isso não irá ferir seu... “Código de ética”. – zombou o detetive.

            Boehl riu. – Bom, creio que podemos começar. Por que não se senta?

            -Prefiro ficar de pé. – respondeu o detetive.

            -Como quiser. Parti da Rússia sabendo que deveria encontrar um americano chamado Henry Taylor, de cerca de trinta e cinco anos de idade, um ruivo sardento e de olhos verdes, que usava um bigode largo. Ele estava acompanhado de um menino chamado Grigori. Russo, pele pálida, cabelo negro e olhos azuis. Eles carregavam a inestimável riqueza de trinta e cinco lingotes de ouro...

            Trinta e cinco, pensou Holmes... Trinta e cinco... Grigori mentiu sobre isso...

            -Sabe, não é qualquer pessoa que aparece com barras de ouro para trocar por dinheiro. E esse americano não era burro. Ele sabia que seria suspeito se trocasse tudo de uma vez. Por isso, ele trocou parte das barras aos poucos. O problema é que isso deixa um rastro. Bastou-me procurar por ourives e negociadores clandestinos que fazem poucas perguntas para saber por onde ele estava andando. E assim, eu os acompanhei, de cidade em cidade.

            -Da Rússia até a Inglaterra? Pensei que um homem de sua estirpe fosse mais eficaz. – caçoou Holmes.

            -Ria o quanto quiser, Holmes. Fui empregado quase um mês depois do ocorrido na fábrica.

—Que ocorrido na fábrica?

—A morte do dono, Adrenovitch. E para antecipar sua pergunta, não. Não foi gente daquela fábrica que me contratou. A morte dele foi bem brutal. Quando cheguei à Lyovikh, não havia outro assunto naquele vilarejo de merda esquecido por Deus senão o brutal falecimento do único industrial na cidade, executado pelo americano Henry Taylor com a ajuda de um dos meninos empregados. O seu Grigori, à época um empregado – se bem que, naquelas condições, está mais para escravo, mas que seja. O desgraçado teve a garganta dilacerada por uma faca curta de prata, dessas de cortar envelope. Conversei com o médico legista da região. Não foi um ferimento profundo, mas o bastante para fazer alguém sangrar até a morte. O que foi?

Grigori não mencionou a morte desse industrial, Adrenovitch... Por quê? Será que ele...?

—Nada. Prossiga. – pediu Holmes, por um momento perdido em seus pensamentos.

—Bom, eles fugiram para São Petersburgo, assim disse a polícia local. Testemunhas reconheceram um homem com uma mala pesada e um menino repleto de sangue a pegar um trem. Se fosse na Inglaterra ou na minha terra Alemanha, tais coisas não aconteceriam, mas sabe como é, a Rússia é uma perfeita desordem... A pista estava fria, mas consegui rastreá-los até o Canal da Mancha. Lá, eu os encontrei hospedados em um hotel de primeira, comendo do bom e do melhor. Notei que a chegada à Inglaterra deixou o americano Taylor mais descuidado, menos discreto. Faltava muito pouco, muito pouco mesmo para pegá-lo, mas...

Holmes já sabia o que era. A inesperada morte de Taylor.

—Mas? – insistiu o detetive.

—O desgraçado foi morto.

Holmes arregalou os olhos, surpreso. – Morto?!

—O corpo dele foi encontrado na manhã seguinte, pela camareira do Hotel. Ele estava com o pescoço quebrado. A polícia foi acionada e constatou que o pescoço dele se partiu devido a uma queda, que pode ter sido acidental ou não. Como não havia quem reclamasse o corpo, a polícia decidiu não se aprofundar e registrou o caso como um acidente. Nem se preocuparam com o paradeiro do menino, que estava junto dele.

—Grigori. – completou Holmes.

—Sim. Eu vasculhei o quarto dele, antes da chegada da polícia. Não encontrei as barras de ouro e o menino tinha evaporado. Foi então que a minha busca se tornou um inferno, porque o menino não deixava rastros. Era praticamente invisível. Cheguei a pensar em desistir, mas a recompensa era boa demais para isso.

—Iludido por um menino... Que coisa, Boehl. – zombou Holmes.

—Você sabe melhor do que eu que aquele menino não é uma criança comum. Do contrário, não teria vindo aqui, falar comigo apenas para saber mais sobre ele. O fato é que o fedelho perdeu as malditas barras de ouro durante um assalto e agora, toda essa minha busca foi em vão.

—Bom tocar nesse assunto. O que seu “empregador” achou disso?

—Hunf. – resmungou Boehl. – Reagiu muito mal. Tão mal a ponto de me denunciar.

Holmes ergueu uma sobrancelha.

—Então, ele acreditou que você ficou com as barras de ouro para si?

—Não, não. Ele simplesmente achou que meu trabalho foi ruim, que se eu tivesse capturado os dois e obtido imediatamente as barras de ouro, o menino não as teria perdido. Ele me chama de incompetente e em duas horas, encontro o meu esconderijo em Londres cercado de agentes? Duvido que seja coincidência.

—Entendo. – assentiu Holmes. – Bom, se foi realmente o seu “empregador” que te denunciou, creio que posso começar por tal ponto.

—Como é? – questionou Boehl.

—Não creio que tenha percebido minhas intenções desde o princípio, Boehl. Mas o fato é que esse seu “empregador” me pareceu o tipo de pessoa realmente ansioso em reaver ou obter essa fortuna em ouro que foi roubada pelo falecido americano e Grigori. Esse tipo de gente, que contrata pessoas como você para cruzar meio continente atrás de seus desafetos me parece ser o tipo perigoso demais para que eu ignore. E enquanto esse seu “empregador” estiver à solta, Grigori jamais estará em paz. Compreende?

Boehl assentiu, como se compreendesse as razões do detetive. Holmes despediu-se dele e voltou sua atenção à porta. Quando prestes a abrir a maçaneta, Boehl tornou a falar outra vez.

—Não se trata de “quem” é meu empregador, mas “o quê” é meu empregador.

Então, ele decidiu falar. Decerto quer vingança. Ainda que por minhas mãos.

—E eu teria cuidado se fosse você, Mr. Holmes. Esses filhos da puta são perigosos.

—Já lidei com gente perigosa antes. – respondeu Holmes, calmamente.

—Jamais duvidei disso. E é por isso que estou te alertando. Não é o tipo de perigo que está acostumado a lidar.

—O que seria, então? Um novo “Napoleão do Crime”? – perguntou Holmes, curioso.

Boehl riu. – Não do tipo de crime que você conhece.

A porta se fechou, pesadamente. Holmes avistou, no final do corredor, o guarda a aguardá-lo, na saída da “masmorra” do Ministério. Apesar de subjetivos, os avisos de Boehl preocuparam o detetive.

            Algo lhe dizia que estava se aproximando uma tempestade do Leste.


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Notas finais do capítulo

No próximo cap: mais da investigação da Esther.

Até o próximo!



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