O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 15
Chá É Para Ingleses


Notas iniciais do capítulo

Olá,

Parece que o Grigori caiu nas graças do pessoal, graças aos destratos que ele vem sofrendo. Pois então, teremos mais um pouco dele, e para alimentar as teorias dos curiosos de plantão, deixarei escapar aqui um pequeno vislumbre do passado do Grigori, que já aviso que é bastante conturbado.

Boa leitura!



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            -O senhor sabe lutar boxe?

            A pergunta pegou Holmes de surpresa. Ele estava terminando de arrumar sua cama, ajeitando os dois travesseiros. Grigori, que já se encontrava deitado no chão, tendo apenas um pequeno colchão para separar seu corpo do frio assoalho, parecia cada vez mais curioso a respeito do detetive. Natural, pebsava Holmes. Os recentes e estranhos acontecimentos serviram para aprofundar uma estranha relação entre ele e o menino, relação esta que, de tão estranha, o detetive não sabia como nomear. E, ao que tudo indicava, Grigori começava a sentir-se à vontade com sua situação.

            -Sim. Por que a pergunta?

            -Eu o vi derrubar aqueles três homens no pub.

            -Ah... Então você estava lá... – disse Holmes, tentando ajeitar o travesseiro da cama. – Bem, eu aprendi boxe com dezoito anos, na universidade, se quer saber.

            -Já venceu algum campeonato?

            -Campeonato? Bem, fui campeão duas vezes, em Oxford, e um vice-campeonato também. Perdi a luta para um aluno chamado Raymond Armstrong, australiano, estudante de Medicina. Sua vantagem era o fato de ele saber onde as pessoas mais sentiam dor. Perdi em cinco minutos, nocaute, um dos poucos que tive em toda a minha vida. Depois, me preparei. Estava nas quartas de final no próximo quando saí da faculdade. Ray Armstrong também estava classificado. Tenho certeza de que seria uma revanche e tanta, mas... Certas coisas aconteceram e saí de lá. E quanto a você, menino? Além de Stu, venceu mais alguém em uma briga?

            Grigori sorriu levemente. Iria perguntar mais sobre o que significavam estas “certas coisas”, mas o detetive, como sempre foi rápido e logo mudou o rumo da conversa.

—Alguns, mas não era um campeonato. Eram brigas de rua, geralmente brigávamos por um pedaço de pão duro, ou uma carne que achávamos no lixo. Às vezes, ganhava, às vezes, perdia.

            Holmes sentia-se cada vez mais horrorizado, com cada relato de Grigori a respeito daquela longínqua e miserável Rússia que parecia ainda pior que os relatos que ouvia de diplomatas ou dos artigos que lia nos jornais.

            -Bom, mas você poderá aprender boxe mais tarde. Assim, será mais difícil perder. Não digo perder em uma briga por comida, mas perder uma briga, independente do que for. E eu espero sinceramente, Grigori, que você não tenha que brigar mais por tal motivo.

            O menino concordou com a cabeça, desenhando nos lábios franzinos de menino um sorriso e virou-se para deitar.

            -Boa noite, Mr. Holmes.

            -Boa noite. – disse Holmes, apagando a luz do quarto.


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            Sangue.

            Muito sangue. Mas não era o seu sangue, repetia o menino a si mesmo. Não era o seu sangue. Isso não impedia suas mãos de tremerem, a ponto de fazer a pequena faca de cortar envelopes cair no chão. Ele tentava falar, mas as palavras não saíam. Parecia que ele havia perdido sua voz.

            -(Caralho! Menino, o que você fez?!)

            Lágrimas caíram de seus olhos. Tudo parecia turvo, mas ele ainda era capaz de ver o vulto de Mr. Taylor a andar de um lado a outro pelo escritório. Viu o homem vasculhando coisas, até ele soltar outra palavra indecorosa. Ainda trêmulo, Grigori preferiu desviar seus olhos do cadáver e do sangue que se espalhava lentamente pelo assoalho da sala para a direção de Mr. Taylor. Com destreza e notável rapidez, Mr. Taylor arrombou o cofre. O famoso cofre, onde Adrienovitch guardava sua riqueza e que não deixava ninguém chegar perto. Ele viu o sujeito colocar tudo que via pela frente em seus bolsos. Não era dinheiro, percebera Grigori. Mas algo reluzente, metálico. Brilhante como um dos dentes de Adrienovitch. Ouro.

            -Então, vai ficar aí parado até ser pego por alguém, ou irá comigo para a América?

            -A-A-América?

            América, ele gritava eufórico em seu interior. Mr. Taylor o estava convidando para uma viagem até a América. A terra das oportunidades, do outro lado de uma coisa imensa chamada mar, que Grigori jamais vira em sua vida. Um lugar onde as noites eram mais quentes, e o dinheiro era farto. Dinheiro que ele poderia obter – quem sabe Mr. Taylor poderia lhe emprestar algum? – para achar seu irmão, Georgi.

            -Sim. Eu vou com você.

            Taylor sorriu. – Um futuro brilhante nos aguarda, moleque.

            Mas, de repente, o sorriso de Mr. Taylor desapareceu. Como em um piscar de olhos, aquele americano animado que acabara de roubar um cofre tornou-se um cadáver. Branco, pálido como jamais vira. Seus olhos estavam congelados, esbugalhados. Tremendo de medo, Grigori tentou se mover, mas notou que suas pernas estavam paralisadas. Mr. Taylor caminhava para mais perto de si, com o semblante nada satisfeito.

—Meu tesouro! – gritara o americano. – Você me matou, passou a perna em mim e levou o meu tesouro!

—Foi um acidente! – choramingava o menino, enquanto era sacudido por um Mr. Taylor cadavérico.

—Acidente?! Você me empurrou, fez com que eu batesse a cabeça na quina da cama! Queria me matar de propósito, me impedir de ir à minha terra-natal! E para quê, hein? Para ir atrás de uma pessoa que está morta!

—Meu irmão não está morto! – exclamou o menino, com o pouco de coragem que lhe restava.

—Eu deveria ter te deixado lá. Ter te deixado naquele país de merda, para ser tratado como uma bonequinha por Adrienovitch e seus homens...

—Não foi de propósito, sir! Eu juro, eu...


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            -Grigori? Vamos lá, acorde! Grigori!

            Holmes estava tentando, sem sucesso, retirar Grigori de seu sonho, ou melhor, pesadelo, dando-lhe sacudidas nos ombros e mesmo leves tapinhas na bochecha. Nada parecia impedi-lo de sua tremedeira. Suas bochechas estavam também levemente molhadas, pelas lágrimas que o menino deixara escorrer. O que quer que fosse, deveria ser terrível a ponto de fazê-lo chorar. Holmes não era dos mais experientes com crianças desta idade, mas lembrava-se de ter tido pesadelos nos primeiros meses após a morte de sua mãe, que o fazia ser acordado por seu irmão Mycroft. Embora jamais tivesse sofrido de incontingência urinária em sua infância, Holmes sempre acordava de seus pesadelos com a cama molhada por sua própria urina e chorando de soluçar. Ele só esperava que Grigori não tivesse o mesmo problema.

            Por fim, o menino finalmente acordou, com um forte suspiro. Seus olhos azuis estavam arregalados. Suas pupilas dilatadas demonstravam que seu coração estava batendo rápido, acelerado, deduziu Holmes. Após dar-lhe um tempo para sua respiração voltar ao normal, o detetive achou por bem perguntar, preocupado.

            -Está tudo bem?!

            -Oh, er... Está tudo bem, sir. – disse o menino, ainda nervoso e, claramente, envergonhado.

            Merda, será que ele ouviu alguma coisa?, pensou Grigori, lembrando-se bem de seu pesadelo. Ele já ouvira falar de pessoas que falavam durante o sono, e o menino jamais soube se estava incluído dentro delas.

            -Bem, que seja. Vamos lá. Temos um longo dia pela frente. Hoje te levarei à Circle Street, para arranjarmos umas roupas mais apropriadas e também um corte de cabelo civilizado.

            -Pensei que o meu estivesse bom... – disse o menino, levando suas mãos às negras mechas que insistiam em cair à testa.

            -Qualquer coisa abaixo da orelha não traz esse efeito, Grigori. Ao menos, não aqui na Inglaterra. Pense nisto, está em nosso país, terá de andar conforme o nosso estilo, se deseja ficar em um recinto sem ser confundido com um moleque varredor de ruas qualquer.

            O menino bufou, levantando-se do chão. Ao vê-lo nesta posição, Holmes notou algo curioso. O menino dormia completamente vestido, mesmo com os sapatos. Ao perceber o olhar de Holmes sobre seus pés, o menino se explicou.

            -Costume. Não posso tirá-lo de meus pés quando estou na rua, posso?

            -Bem, mas você não está na rua.

            -Não devo perder o hábito. Não sei quando estarei de volta.

            -Grigori, há algo que precisamos conversar...

            De repente, uma batida à porta interrompeu Holmes.

            -Mr. Holmes, o café está á mesa. – era a voz da senhoria, Mrs. Lethan.

            Holmes suspirou.

            -Bem, isso é conversa para depois. Vamos.


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Londres, Inglaterra. 7 de Maio de 1910.

Holmes levantou-se, deixando o menino Grigori circunspecto, descrente com seu próprio futuro. O que Mr. Holmes estava pretendendo? Lançá-lo a algum orfanato lotado de órfãos? Ou manda-lo de volta à Rússia? Nenhuma dessas opções era desejável, e se ele lhe mandasse qualquer uma delas, Grigori não tinha dúvidas de que fugiria dali assim que possível, mesmo que isso implicasse viver nas ruas daquela cidade enorme.

            Seu humor, que tinha se obscurecido com a lembrança do pesadelo e o assunto que Holmes trataria com ele cedo ou tarde foi logo apaziguado quando ele deparou-se com aquela menina. A ruiva, de cabelos muito cacheados e rosto de quem estava aborrecida com alguma coisa o tempo todo (ou rosto esse que ficava assim sempre que lhe via pela frente), descendo as escadas.

            -Bom dia, Miss Watson.

            -Bom dia, Mr. Holmes. – ela disse, fazendo uma levíssima e educada reverência. – Garoto. – disse, tentando não direcionar uma ofensa direta.

            -O nome dele é Grigori, Miss Watson. – disse Holmes.

            -Certo. Gregory. – ela disse, propositalmente, deixando ambos ainda estarrecidos no corredor, diante da empáfia da moça.

            -Gregory? – perguntou-se Grigori.

            -É uma tradução para o seu nome em nosso idioma. Aliás, Grigori, algo assim vindo de uma jovem tão ardilosa como Miss Emily Watson, foi até bom.

            -Mas Gregory? Soa tão... Estranho!

            Holmes soltou uma risada. – Para nós, o seu nome é que soa estranho.

            Em instantes, ambos estavam na mesa do café, à exceção das meninas mais novas, ainda em seus quartos.

            -Emily, você não tinha suas lições de francês para terminar? – perguntou Molly à menina mais velha, sob o olhar atento de Holmes e Watson.

            -Estava com fome. Além de quê, não vou mudar meus hábitos apenas porque você e o papai querem suas filhas à distância de suas visitas. – respondeu a moça, numa clara referência a Grigori.

            Watson deixou os talheres tilintarem.

            -Emily, mais uma dessas e...

            -Sim. Você irá me colocar de castigo. Pois bem, papai. Irei poupá-lo do discurso e subirei eu mesma. Já tomei o suficiente do meu café da manhã. – disse a menina, desafiando seus pais, deixando seus talheres sobre a mesa e subindo as escadas, ainda a tempo de ouvir um “Mais tarde conversaremos” de Watson.

            -Peço desculpas pelo inconveniente. Ela está assim porque desconfia de que eu a mandarei ao colégio interno esse ano.

            -Oh, é mesmo? – surpreendeu-se Holmes, olhando para Molly com cinismo no olhar. – E ao que vejo, a menina tem razões para ceder às desconfianças.

            -É um colégio de excelência, em Cambridge. Será o melhor para ela. – respondeu Molly, com determinação.

            Holmes virou-se para Watson, que parecia querer lavar as mãos.

            -Bem, eu quero dar a Emily uma oportunidade que muitas meninas da idade dela não conseguem. Tendo acesso a uma boa educação, será uma menina educada, poderá ter um bom marido... Por que não?

            O assunto não se prolongou além daquele “por que não?”, para alívio de todos os presentes daquela mesa. O café não durou muito tempo, pois Holmes e Grigori tinham assuntos a resolver, assim como Watson, que tinha seus pacientes para atender. Os amigos se despediram no limiar da entrada da casa.

            -Olhe Watson, sobre o ocorrido durante o café... – Holmes tentou começar.

            -Não, Holmes. Esse é um assunto resolvido. Eu espero que minha Emily não tenha ofendido a nenhum dos dois. – disse Watson, voltando seus olhos para Grigori. – Aliás, rapaz, eu sinceramente torço para vê-lo bem vestido. Mas confio que meu amigo será bem-sucedido, ele tem bom gosto. – disse Watson, dando um tapa leve no ombro de Grigori. – Até mais.

            Holmes pensou em tomar um cabriolé, mas percebeu que o trânsito estava intenso demais àquela hora, e que Circle Street não ficava muito longe dali, dava para uma caminhada. Optou, então, por andar pelas ruas com Grigori.

            Com o menino ao seu lado, Holmes tentava mostrar-lhe a cidade. Em uma das caminhadas, acabou por flagrar Grigori escarrar e cuspir no chão, chamando a atenção dos pedestres. Pediu, num misto de rispidez e educação, que não mais fizesse isso, e o menino o obedeceu sem reclamar.

            -Então, esse é o problema com a menina? Ela não é filha dela. Por isso é uma menina rejeitada.

            -Grigori! Essas são maneiras de falar sobre Miss Emily? – escandalizou-se Holmes, tanto de abismação por ver o menino tocar em tal assunto delicado com grande indiferença, e também por ele ter descoberto sobre a maternidade de Emily sem ter acesso a muita informação. Não era absurdo chegar a tal confusão, visto a forma com que Molly tratava a menina, mas muitos adultos reduziriam a relação conturbada das duas como “pobre mãe e rebelde filha”. Era de se deixar pasmo o quão rápido Grigori já formava suas conclusões – até o momento, corretas.

            -Desculpe, sir, é que... Bem, eu reconheço problemas quando estou diante deles. E vejo claramente que aquela mulher não quer a menina por ali.

            Holmes não conseguia mais esconder sua surpresa

—Isso está tão evidente assim?

            -Um pouco.

            -Ótimo, mas isso não explica como você deduziu que a menina não era filha de Mrs. Watson.

            -Porque vocês, ingleses, chamam todos de “Mr. e Mrs.”? Por que você não chama ambos pelo nome cristão?

            -Porque não é apropriado, e por favor, Mr. Grigori, não se desvie do assunto.

            O menino suspirou. – Bem, há um padrão ali. As outras meninas parecem com seu amigo, mas herdaram o cabelo castanho da mãe. A menina é a única completamente ruiva, com os cabelos bem cacheados... Olha, isso deve parecer besteira...

            -Não, continue. Estou achando interessante. – disse o detetive suprimindo um sorriso. Poucas vezes na vida se deparara com crianças tão atentas e espertas assim.

            -Bem, nenhum dos dois tem o cabelo cacheado, pelo contrário. Então, eu suponho que ela seja... Como é que se diz “padcheritsa”...

            Holmes franziu a sobrancelha.

            -Não sou tão bom em russo assim, mas creio que, pelo contexto, queira estar querendo dizer “enteada”...

            -É, acho que a palavra é essa. Enteada. Ou seja, filha apenas do Vrach Watson.

            -É “Doutor” Watson, Mr. Grigori. E como percebeu que ele é medico?

            -Livros. Havia um livro de médico na mão de Emily.

            Os olhos de Holmes se arregalaram. – Oh, é mesmo?         

—É, quando cheguei naquela casa, foi a primeira coisa que vi.

—Então, você sabe ler Inglês.

—Não. – disse um menino, agora um tanto tímido. – Mas eu percebi pelos desenhos. Dois crânios abertos, desenhados. Quem mais gostaria de ver crânios desenhados senão médicos?

Um livro de Anatomia?! Nas mãos de uma menina de nove anos como Emily?! Mas a que ponto chegou o relapso do meu amigo Watson... Terei de ter uma conversa séria com ele sobre isso mais tarde.

O menino continuou.

—Então presumi que pertencesse ao pai dela. Não sei como funcionam as coisas nesta terra, sir, mas não acho que um livro desse tipo seja leitura de mulher.

            -Não mesmo, o seu julgamento a respeito disso é correto. Bem, creio ser este mais um problema para meu caro amigo carregar. Mas veja, Grigori, já chegamos ao primeiro alfaiate. Vamos lá?

            O menino suspirou, ainda resignado, mas adentrou junto a Holmes. Saiu de lá com uma vestimenta de segunda mão, mas muito melhor que as roupas que se acostumara a usar a vida toda. Sentia-se um príncipe, até. Holmes comprou-lhe quatro conjuntos de terno completos, de cores oliva, marrom escuro, azul marinho e cinza. O menino pôde também escolher uma nova boina, abandonando a boina preta e encardida e optando por outra, da cor azul-marinho. Holmes percebeu que o menino gostava de azul marinho. Depois, foram até uma sapataria, onde conseguiram sapatos adequados, estes completamente novos.

            O último lugar a ir era o mais temido por Grigori. A barbearia.

            -Mr. Stone, veja o que consegue salvar deste cabelo. – disse Holmes, enquanto o barbeiro analisava o cabelo negro e ondulado de Grigori, já próximo de bater-lhe no ombro.

            -Dá para salvar pouca coisa, Mr. Holmes, mas creio que conseguirei deixa-lo civilizado o bastante para uma caminhada no Green Park sem provocar asco nos pedestres.

            Os olhos do menino se mostravam chorosos a cada mecha de cabelo cortado que caía sobre seus ombros. Por fim, o cabelo tinha altura de menos de um dedo.

            -O que acha? – perguntou o barbeiro, convicto.

            -Ótimo. Muito mais civilizado agora. – opinou Holmes, recebendo do barbeiro um frasco. – O que é isto?

—Um pesticida para piolhos.

—PIOLHOS?! – assombrou-se Holmes, chamando a atenção – para seu horror – de todos os presentes na barbearia.

—Sim. Por isso optei por um corte bem curto. Será mais fácil para eliminar os piolhos completamente. Aliás, Mr. Holmes, eu recomendo passar também nos seus. – cochichou o barbeiro, em quase confidência, para ojeriza de Sherlock Holmes. – Tenha um bom dia.

            Céus, será que eu estou com piolhos? Na minha idade?

O mero pensamento fez o detetive coçar levemente a cabeça. Decerto o frasco foi apenas uma precaução.

Na saída da barbearia, o menino comentou.

—Estranho, eu não tenho piolhos... Tudo bem que os cabelos estão sujos, mas...

Holmes sabia que não podia confiar plenamente no comentário de um garoto de rua, mas algo lhe dizia que o comentário de Mr. Stone foi apenas uma forma de arrancar mais dinheiro do corte adicionando um frasco que poderia não ter serventia alguma. Ao abrir o frasco e cheirar seu conteúdo, o detetive não teve dúvidas: aquilo não era pesticida, mas lavanda. De todas as sensações que lhe transmitia raiva, a que mais enfurecia Holmes era a sensação que ele sentia quando era enganado. E enganado porque deixou que sua visão pré-formada sobre um menino de rua dominasse sua capacidade de dedução. Ele poderia ter observado que o menino não tinha piolhos, mas simplesmente deduziu que ele tinha piolhos porque qualquer menino de rua tem piolhos. Os Irregulares tinham, então por que Grigori não teria? Este era um dos problemas da dedução, percebeu o detetive. A generalização. E foi a mesma generalização que o fez ser enganado naquele momento. Mr. Stone era apenas mais um que percebeu que Grigori era um menino pobre e se aproveitou da situação.

Com raiva, o detetive lançou seu frasco fora ali mesmo, causando pasmo a Grigori.

—O que foi?

—Pode se acalmar. Você realmente não tem piolhos, Grigori.

Graças a Deus, chegou a pensar o detetive, mas preferiu não tocar mais naquele assunto desagradável.

            Depois de saírem do barbeiro, Holmes resolveu levar o menino a caminhar mais um pouco pela cidade. Era fascinante ver os olhos azuis do menino a observar com espanto todas as maravilhas arquitetônicas de Londres, como se estivesse em um outro planeta. Curioso como ele é, ficaria fascinado em conhecer o Museu Britânico, a Biblioteca Nacional, o Parlamento...

            Onde estou com a cabeça? Esse menino não é nada meu! De onde estou tirando esse paternalismo? Ele é um órfão, ignorante, sem modos! Jamais se interessaria por algo assim!

            -O que está havendo ali? – perguntou-se o menino, de testas franzidas, apontando para um aglomerado de pessoas.

            Holmes sabia o que havia naquele ponto. Era onde ficava o jornaleiro daquela rua. Aliás, ele saíra tão apressado de casa, ainda mais com o acontecimento no café da manhã, que nem lera o jornal.

            -Deve ser a manchete do jornal.

            Mesmo Holmes, curioso tanto quanto Grigori, decidiu se aproximar. Ao fazer isso, tentando captar o que fazia aquelas pessoas se acotovelarem para observar, ele percebeu que não era uma simples manchete de jornal.


ENCOURAÇADO BRITÂNICO TOMADO PELOS RUSSOS


            As pessoas, que se rodeavam em torno do jornaleiro, comentando a notícia uns com os outros, davam mais do que certo uma resposta à altura, e de certa maneira um conflito entre os dois países. Embora o cheiro podre estivesse vindo dos lados alemães, realmente ninguém esperava por esta.

            -É melhor irmos embora, Grigori...

            Um dos homens, que lia a manchete do jornal, ouviu o comentário de Holmes. – Grigori? Temos um maldito russo entre nós?

            Holmes tentou apressar o passo, ao lado de Grigori, mas foi impedido enquanto ouvia comentários como “você não é bem-vindo, russo” ou “porco cretino!”

            -Esperem senhores, isso é um mal-entendido... – Holmes tentava se afastar daquela multidão, mas tinha sido cercado. De repente, começou a receber empurrões e hostilidades das mais diversas.

            -Parem, somos ingleses! – disse Holmes.

            -O senhor pode ser, mas esse menino aí... Eu reconheço um russo fedorento quando estou diante de um! – disse um homem, o mais exaltado, tentando segurar Grigori, que tentou se esquivar.

            -Largue-o! Largue-o! – gritava Holmes, sendo contido por dois homens.

            -Sabia que meu filho pode estar naquele encouraçado, moleque? Hein? – gritava o homem contra Grigori, segurando-o pelo colarinho da camisa, sendo apoiado pelos demais. – Sabia que sua gente pode ter matado o meu filho? – ele perguntava, com lágrima nos olhos.

            -Por favor, sir... – pedia o menino, deixando escapar seu sotaque russo e causando ainda mais revolta nos pedestres.

            Holmes conseguiu se libertar momentaneamente dos dois homens que lhe tinham segurado e separou o sujeito exaltado de Grigori, com um soco. Aproveitando-se da bagunça da situação, Holmes tomou Grigori pela mão e pôs-se a fugir dali, sendo perseguido por, pelo menos, seis ingleses revoltados, loucos para descontar sua fúria em um servo do maldito Czar.

            A polícia também foi acionada, embora não no momento ideal, quando tinha que conter aquele tumulto. Logo, Holmes se viu correndo em pleno centro londrino com um menino, fugindo de vários cidadãos enfurecidos.

—Vamos, eu conheço um lugar seguro... – ele disse, embrenhando-se entre as vielas e becos escuros, seguindo direita, esquerda, direita, esquerda. Realmente, percebeu Grigori, Mr. Holmes deveria conhecer muito bem a cidade de Londres.         Pararam em uma viela e adentraram à uma espécie de banheiro público, ou ao menos foi isso que o nariz, mesmo o menos sensível de Grigori, notou pelo odor insuportável.

            -Aqui não irão nos procurar. – disse Holmes, tapando o nariz.

            Minutos, que mais pareciam eternidade, naquele lugar fedido se passaram, até que Holmes julgasse que estava tudo bem e ambos pudessem sair. Não havia mais vestígio de nada ou de alguém lhes perseguindo.

            -Vamos. – disse Holmes, seguindo por outra rua.

            Grigori percebeu que as ruas, a cada medida que adentravam, tornavam-se mais luxuosas. As pessoas que caminhavam, as carruagens, as vitrines das lojas. Ele sequer poderia perceber que Londres poderia ser mais rica que aquilo. De repente, uma infinidade de homens bem vestidos e distintos, a caminhar de um lado a outro, sempre conversando em meio a cigarros. Ele apenas teve tempo de ler uma placa chamada “Pall Mall”.

            -Estamos em Whitehall, Grigori. O lugar de Londres com a maior concentração dos homens mais poderosos da Inglaterra por metro quadrado. – disse Holmes, antes de parar em um certo “Clube Diógenes”.

            -Agora, fique quieto. Silencie até mesmo sua respiração. – alertou Holmes.


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            Grigori passou cerca de vinte minutos sentado, entediado, em uma daquelas poltronas enormes da Sala de Visitantes do tal Clube Diógenes. Ele fizera exatamente como Holmes lhe tinha ordenado, ainda que não tenha achado nada demais naquele lugar cheio de velhos lendo jornais e livros enquanto fumavam. Agora, queria saber o que tinha levado Mr. Holmes até ali, depois de quase serem surrados por ingleses patriotas.

            Enquanto tentava desfrouxar a gravata, Grigori foi surpreendido pela entrada de um homem idoso, gordo e altíssimo, que chamava a atenção imediata a si.

            -Sherlock, mas o que significa isso?

            Grigori virou-se para Holmes, que pareceu desconfortável.

            -Mycroft, este é Grigori. Ele é... Um companheiro que arranjei.

            O idoso parecia ainda atônito. – Mas que diabos, Sherlock? Não acha que essa sua explicação é um tanto vaga?

            -Não tão vaga quanto as cartas que me enviastes. Cartas estas que não me informaram de seu estado de saúde, delicado nos últimos tempos, e tendencioso a ficar ainda mais diante da perspectiva política nebulosa que temos assistido nos últimos tempos. – disse Holmes, acendendo um charuto.

            -Exageros do bom doutor, meu irmão. Posso garantir-lhe.

            -Oh, sim. E esta sua respiração irregular, também é exagero? Posso ouvir daqui que está ofegante demais para alguém que goza de boa saúde.

            -Malditos ouvidos de músico! – disse Mycroft, numa espécie de escárnio. – Apenas uma pneumonia que contraí, mas estou melhor.

            -Não quero ser grosseiro, meu irmão, mas na tua idade...

            -Já está sendo grosseiro, Sherlock. Por favor, não continue. – pediu Mycroft, furioso.

            -Como queira. Apenas quis dizer que estes problemas costumam ter lá sua gravidade e requerem atenção. Porquê não vai à Sussex? Ou mesmo Yorkshire para descansar?

            -Não há como tirar férias, meu irmão, diante da catástrofe política que está prestes a acontecer. Soube do ataque russo ao nosso encouraçado, não? Ao que sabemos, é uma rebelião de soldados insatisfeitos, mas não sabemos o quanto isso desresponsabiliza o Czar. Pode ser orquestrado. Mas deixamos disso, porque vejo que estamos entediando o nosso convidado especial, Mr. Grigori. Aliás, Mr. Grigori, os soldados russos gostam do Czar?

            O menino, surpreendido ao perceber que Mycroft já sabia de sua nacionalidade, respondeu.

            -Quase ninguém gosta dele, sir.

            Mycroft concordou com a cabeça.

            -Muito interessante esse seu menino, Holmes. Russo, alfabetizado em nosso idioma por um americano, destro e de estatura considerável para um menino de nove anos...

            -Não, sir. Eu tenho treze anos.

            Mycroft arregalou os olhos. – Sério? Então, terei de corrigir o “estatura considerável”. De qualquer modo, menino, não adentrou à puberdade ainda, mas creio que em breve entrará, não se preocupe. Então, terá de fazer coisas de adulto, como fazer a barba, ou deixar cultivar um bigode, como fez meu irmãozinho, Sherlock aqui até os quinze anos. – disse Mycroft, com riso, enquanto Holmes permanecia sério, incomodado com a brincadeira inapropriada. – Você sabia que Sherlock tinha medo de se cortar com a navalha? – ele disse, rindo.

            -Tempos passados, Mycroft. Tempos passados. – disse Holmes, enquanto, sério, observava um Grigori quase rindo da situação cômica. – Mas vamos ao seu caso agora. Eu exijo que procure um médico.

            -Exige? Céus, Sherlock Holmes quer que eu veja um médico! Meu irmão, sossegue... Estou muito bem. Aliás, sua visita aqui tem sido muito adequada, pois evitou meu deslocamento a um entediante jantar de família na casa de Watson. Muito obrigado, meu caro irmão. Aliás, rapazinho... Por que não aproveita e prova um sanduíche? Na sala ao lado, está uma mesa de café e chá. Garanto que não irá se arrepender. – sugeriu Mycroft, com cumplicidade.

            Grigori observou Mycroft com desgosto, pois sabia muito bem o que aquele homem idoso queria dizer com a amigável – porém, não tão ruim assim – idéia de sanduíche. Claro, conversa de adultos que ele não poderia testemunhar. Resignado, o menino levantou-se e seguiu as ordens do mais velho dos Holmes, deixando, finalmente, os dois adultos às sós.

            -Confesso que uma visita infantil jamais esteve em meus planos, mas até que não foi tão ruim quanto eu pensei. O menino é educado.

            Holmes soltou uma risada. – Educado? Creio que está perdendo seu toque, Mycroft. Esse menino é um moleque de rua.

            Mycroft franziu uma sobrancelha, em descrença. – Pois me parece que este menino é que lhe enganaste, meu caro irmão. Ele é um russo, tudo bem, mas teve alguma educação. Apenas não sei dizer se boa o bastante. Ou não percebestes como ele se comportou aqui? Levantou-se quando me viu adentrar! Apenas um russo muito, mas muito educado, faria isso! E acaso não reparastes também nos dentes dele?

            Holmes parecia analisar a questão instantaneamente.

            -Os dentes de um menino de rua são amarelados, no mínimo, quando não em falta ou podres. Os dentes deste menino estão um pouco sujos, mas não de uma pessoa que está na rua há anos. Diria que ele está apenas há um ano. Aliás, não é só isto. Ele fala a nossa língua muito bem para um russo. Sim, porque eu percebi que ele é um russo.

            Holmes concordou.

—Eu sei. Mas ainda assim, ele fala bem, e diria que tem um certo sotaque americano, pela maneira como pronunciou o R algumas vezes, eu acho.

—São poucos os russos que tem uma educação assim, aprendendo o inglês como idioma.

            Esther teve uma educação assim, pensou Holmes, com tristeza.

            -Só não entendo por que ele está mentindo a idade.

Holmes riu. – Parece que você já nasceu adulto, Mycroft. Crianças gostam de parecerem mais velhas do que são. Mas você está certo, ele realmente está mentindo a idade. A falta de pelos no rosto, o pomo-de-adão ainda não desenvolvido...

—Acnes. Quando eu tinha treze anos, sofria um problema sério com acnes. – admitiu Mycroft. – E ele não tem nada disso.

—Sem contar a voz. – completou Holmes. – Ainda esganiçada.

—Sem dúvida, ele é uma criança de nove ou dez anos, no máximo. – concluiu Mycroft, recebendo um assentimento de Holmes, fazendo-o rir. – Sabe, sinto muita falta disso. Infelizmente, ninguém de meu meio consegue me acompanhar como você, meu caro irmão. Mas vamos voltar ao que interessa. O assunto que traz sua visita até Londres não é minha saúde, não mesmo. Só aceitei o convite do jantar de Watson para aproveitar a ocasião de me encontrar com você, porque não posso tratar desse assunto, sequer introduzi-lo, por carta. Sua ida a Londres deveria parecer o mais casual possível. – Mycroft suspirou, ao perceber que Holmes já chegara a uma conclusão. – É sobre Esther, meu irmão.


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Notas finais do capítulo

Ihhhhh... Agora a parada vai ficar séria!!!
Àqueles que estão aguardando, finalmente teremos mais notícias sobre Esther.

E gostaram das peripécias do Grigori por Londres? Parece que Holmes foi pego na própria dedução e acabou sendo enganado pelo barbeiro... Esse é o problema de deduzir, porque você sempre parte da generalização. Nem sempre dá certo.

Se contar que o Watson está pagando por todos os seus pecados com a Emily, que é praticamente uma mini-Rose Willians. KKKKK Acho que agora vocês conseguem ter um vislumbre do porquê a Molly ter se tornado tão amarga.. Criar a filha da amante do marido. Nem todas as mulheres encaram bem isso.

Teremos mais confusões e revelações nos próximos caps, aliás, esperem por caps bem movimentados...

Obrigada por acompanharem e reviews são sempre bem-vindos!!!!



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