Castelobruxo: Anos Dourados escrita por Carolina J Martins


Capítulo 9
Capítulo 9 - Festa do Urutau




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            Carmen Lúcia estava procurando uma roupa adequada para aquela noite, mas era difícil achar qualquer coisa sem bagunçar a mala quase pronta.

            – Não acredito que esqueci de deixar uma roupa de fora… – Ela resmungou.

            – Você pode pegar uma minha – Arlete disse às suas costas, falando mais alto do que a música nos jardins de Castelobruxo. Ela própria já vestia uma blusa rosa bonita e uma saia branca. – Sei que é você bem mais alta que eu…

            Mas Arlete não conseguiu terminar de falar. Alguém batia na janela fechada do dormitório. As duas se voltaram ao mesmo tempo para a origem do barulho.

            – Fantasma! – Arlete gritou, correndo para abrir a janela.

            A argentina estava montada em uma vassoura do lado de fora. Seus cabelos estavam bagunçados de um jeito selvagem e seus olhos azuis refletiam a luz das fogueiras acessas na parte de fora do dormitório. Era Fantasma, mas, ao mesmo tempo, não parecia Fantasma. Sua áurea de animação era contagiante.

            – O que aconteceu? – Arlete perguntou, rindo e dando espaço para a outra entrar.

            – Posso entrar? Mesmo com a vassoura? – Ela olhou de Carmen Lúcia para Arlete.

            Foi essa última que respondeu:

            – Claro!

            Fantasma se apoiou no parapeito e saltou para dentro, trazendo a vassoura consigo. Ela realmente parecia uma versão exótica de si mesma. As bochechas estavam excessivamente rosadas, os cabelos longos postos fora do lugar, a camiseta azul e o short pareciam sujas. E ela estava tão feliz!

            – Vocês estão prontas? – perguntou. – Os meninos estão esperando a gente!

            – A Carmen tá procurando alguma coisa pra vestir – Arlete disse. – Esqueceu que hoje era a festa do urutau e não deixou nada pra fora.

            – Eu até te emprestaria uma roupa – Fantasma disse – Mas também já arrumei minha mala…

            Arlete sentou em sua cama com um suspiro.

            – Não acredito que as duas vão me deixar aqui! O que eu vou fazer enquanto vocês estiverem fora?

            As férias de junho haviam quase chegado e, uma semana antes, quando a vice-presidente do grêmio estudantil Eleonora, pregara um papel no andar delas, perguntando quem ficaria em Castelobruxo durante as férias, Arlete colocara seu nome. Ela não conseguira explicar direito porque fizera isso, e Carmen Lúcia sabia que a amiga estava escondendo alguma coisa, possivelmente relacionada à sua relação estranha com a mãe, mas não a pressionou.

            Independente disso, o fato era que, no dia seguinte, Carmen Lúcia, Fantasma e Vicente tomariam o Navio Sem Parada de volta para Carolina, para a Argentina e para a casa da mãe, respectivamente.

            Mas eles ainda tinham aquela noite para aproveitar antes de partirem. E, como sempre no fim de junho, os bruxos celebravam a festa do urutau. Vó Carminha lhe contara uma vez que aquela era uma espécie de versão bruxa da festa junina, porém muito mais animada. Os bruxos acendiam fogueiras e estouravam fogos coloridos no céu, dançavam e se fartavam de comer por quanto tempo a lua brilhasse. Tanto Castelobruxo quanto o El Dorado haviam organizado comemorações, uma nos jardins da escola e a outra na praça central da cidade. Todos haviam também apagado suas luzes em suas casas e as fogueiras eram as únicas que traziam claridade à noite.

            E, mesmo que ainda em seu dormitório, Carmen Lúcia podia sentir a euforia de todos que já participavam da festa.

            – Vai assim mesmo – Fantasma sugeriu, mesmo que a lobisomem ainda estivesse de uniforme. – Ninguém vai se importar.

            – Não, espera, já achei. – Ela mostrou um vestido vermelho que a avó havia lhe dado, mas que a menina nunca usara. – Perfeito. Só me deem um minuto pra eu me trocar.

            Ela pegou o vestido e foi em direção ao banheiro. Eram poucas as que ainda estavam no dormitório, mas os banheiros estavam cheios. Carmen Lúcia teve que esperar até que uma garota ruiva cheia de sardas desocupou um deles.

           Trocou-se o mais rápido que pôde, sabendo o quanto Arlete e Fantasma queriam descer logo para as comemorações.

         Olhou-se no espelho, sabendo que o cabelo parecia mais volumoso do que normalmente, mas resolveu não o pentear para não deixá-lo ainda mais armado. Arlete sempre dizia que achava o cabelo dela lindo e fácil de cuidar, mas, mesmo que normalmente fosse assim, Carmen Lúcia começara a se preocupar um pouco mais com a aparência nos últimos tempos.

            Ela pegou seu uniforme no chão e amarrou a bainha da varinha na cintura.

       Quando voltou para seu dormitório, sentindo-se bonita e confortável no vestido vermelho, ela encontrou Fantasma e Arlete, sentadas em suas respectivas camas.

            – Aí está você! Vamos logo! – Arlete exclamou, colocando-se em pé.

            Fantasma parecia um pouco desligada, olhando para Carmen Lúcia como se não a reconhecesse por um momento. Então balançou a cabeça e voltou à realidade.

            – Eu vou descer voando. Tenho que devolver a vassoura para o Pacho – Anunciou. – Ele disse que eu tinha que devolver logo… Encontro vocês lá embaixo.

            As outras duas balançaram a cabeça, enquanto esperavam Fantasma colocar a vassoura para fora e saltar pela janela novamente.

            – Vamos logo – Arlete repetiu. – Ou não vamos aproveitar nada.

            As duas desceram as escadas juntas, tomando o elevador mágico junto com uma garota mais velha que elas não conheciam.

            Elas encontraram Fantasma assim que chegaram ao gramado, onde tudo era colorido e festivo. A argentina teve que gritar para ser ouvida:

            – Eu vou devolver a vassoura. Vocês vão encontrar o Cente e o Douglas. Eles estão na fogueira do meio. – a garota indicou o lugar.

            Três fogueiras haviam sido acendidas em Castelobruxo, uma para cada pirâmide. Os Caiporas brilhavam em luzes vermelhas, pulando e aprontando por aí; as quatro mulas-sem-cabeça, que normalmente ficavam nos estábulos, levavam crianças menores para dar passeios; elas viram quando o que parecia uma bola de fogo se transformou em uma mulher de corpo esguio. As pessoas dançavam e comiam todo tipo de frutas e bebidas coloridas, várias luzes estavam penduradas nas árvores e era possível ver muitas barraquinhas onde se podia comprar comida.

            Três dos vários fantasmas que habitavam as pirâmides também estavam lá. Carmen Lúcia os conhecia só de vista: uma moça sombria, um velho vestido em roupas de época e a figura do que lembrava um jovem pescador.

            – Nunca vi isso tão lotado! – Carmen Lúcia comentou, maravilhada.

            – O Doug disse que o El Dorado recebe muitos turistas para a festa do urutau. – Arlete disse, seus olhos brilhando para a empolgação da noite. – Você acha que aquela música foi inspirada na festa do urutau?

            Carmen Lúcia olhou para ela.

            – Que música?

            – Você sabe. Bailam corujas e pirilampos/ entre os sacis e as fadas/ E lá no fundo azul… Não? Jura?

            Mas a lobisomem nunca ouvira a música e achou que soava estranha, mas adequada. Sorriu para Arlete.

            – Lete, você fala umas coisas engraçadas.

            – Ei, não é culpa minha se vocês não tem cultura! – Ela suspirou. – Ainda vou ensinar umas músicas para vocês todos. Eu tava cantando Eduardo e Mônica e o Doug não conhecia. – Quando percebeu que Carmen Lúcia lhe lançou um olhar confuso, ela pareceu surpresa. – Você não conhece também? Meu Deus, não acredito! Legião Urbana! Eu definitivamente tenho que cantar mais para vocês! – Ela riu, enquanto as duas passavam perto de uma das barracas com um cheiro particularmente apetitoso.

            Carmen Lúcia lutava para se concentrar, com tantos estímulos para seus instintos vindos de todo o lado. Claro, estava tão contente quanto o resto das pessoas ao seu redor, mas também parecia que logo teria uma forte dor de cabeça. Era muita luz, muito som, muitos cheiros, muita gente.

            – Vamos encontrar o Douglas e o Cente logo.

            Elas os avistaram sentados em um banco perto da fogueira. O fogo não estava baixo, e Carmen Lúcia estranhou o quão perto eles estavam, imaginando se eles não estariam com muito calor.

            Mas, ao contrário do que seria esperado, quando elas se aproximaram, Carmen Lúcia percebeu que o fogo não era nada quente.

            Realmente, magia era uma coisa confusa.

            – Doug! Cente! – Arlete chamou, acenando. Os dois se viraram para ela, sorrindo.

            – Oi, meninas! – Douglas acenou de volta. – Estávamos começando a achar que vocês não viriam mais. O que aconteceu?

            – Por que esse fogo não é quente? – Carmen Lúcia perguntou de repente, imaginando o que aconteceria se o tocasse.

            Arlete, Douglas e Vicente se viraram para Carmen Lúcia ao mesmo tempo. Suas expressões deixavam clara a surpresa com a pergunta.

            – É fogo fictum. Não é de verdade. Só dá a luz – Vicente se apressou em explicar.

            – Estamos no Amazonas, Carmen – Douglas disse, rindo com deboche. – Aqui já é quente. Não precisa de mais calor.

            Carmen Lúcia fechou a cara.

            – Não mangue comigo. Vocês sempre souberam que eram bruxos! Eu to aprendendo agora.

            – Você viveu com uma bruxa a vida inteira – Vicente rebateu, já sabendo tudo sobre vó Carminha.

            Douglas riu mais alto.

            – Por isso eu sou amigo do Cente. Ele é inteligente. – ele ainda sorriu.

            – Pra compensar que você não é, certo? – Carmen Lúcia cruzou os braços, ainda chateada.

            Desta vez foi Arlete quem riu. A lobisomem se animou um pouco diante a cara fechada do garoto.

            – Eu não irritaria a Carmen se fosse você, Doug. Ela vai te atacar como um lobo!

            Douglas até tinha aberto a boca para responder, mas uma voz magicamente ampliada pediu a atenção de todos.

            – Boa noite, El Dorado! Boa noite, Castelobruxo! – Uma garota de traços indígenas estava em cima do palco que fora montado especialmente para a festa do urutau. Ela usava pintura facial preta e vermelha, e em mãos tinha uma guitarra rosa. Carmen Lúcia não a conhecia, mas vários dos alunos pareciam empolgados. Atrás dela, toda uma banda estava montada. – Vocês estão se divertindo? Vamos arrebentar esse lugar hoje! No bom seguinte, professora Jacinta, não se preocupe.

            – Quem é aquela? – Arlete perguntou.

            – Tá brincando? – Douglas parecia chocado que Arlete não soubesse. – Aquela é a Rosalinda Nogueira, a vocalista do Anhangá. A família dela pertence às Icamiabas, e era para ela ser uma também, mas achou que isso não era para ela. Ao invés disso, abandonou Castelobruxo no sétimo ano e conheceu os outros membros da banda. Isso já faz uns dez anos. E eles ainda são o máximo!

            – Você é um fã, hein? – Carmen Lúcia perguntou, observando o entusiasmo com o qual Douglas falava.

            Vicente riu.

            – Só da Rosalinda. Ele acha que ela é linda. Duvido que ele consiga dizer o nome dos outros membros da banda.

            Com um meio sorriso de vitória, Douglas olhou para Vicente, falando:

            – O baixista é o Roberto Tatu, e a garota grande na guitarra chama Brenda.

            – Brenda do quê? – Vicente desafiou.

            – Ah…

            Mas Douglas foi salvo pela guitarra poderosa da mulher. Uma música mais leve do que Carmen Lúcia esperara começou a tocar, e logo a noite foi preenchida pela voz de Rosalinda:

            – Quando a lua é cheia e já tá escuro/ No meio da noite em que se dá pra cantar/ Não há mais tristezas, agora só sorrisos/ Se em mim confia, você vai participar.

            — Apropriado que ela cante essa música, não é? – Vicente começou, cutucando Carmen Lúcia de leve. – As Icamiabas tem uma relação especial com a lua, ainda mais hoje…

            – Espera – a lobisomem o interrompeu, sem prestar muita atenção em suas palavras.  – Eu conheço essa música. Rompa o silêncio e me acompanhe/ Na mata sombria ainda há tanto o que ver. Deve ser mangação… Vó Carminha cantava para mim quando eu não conseguia dormir! Sempre achei que ela estivesse inventando… Achei que era sobre lobisomens!

            – Essa música é bem bruxa, Carmen – Douglas riu. – E quem é que precisa de encantos e magias?/ Nessa noite linda, o sol não vai mais nascer.

            — Deve ser porque é uma música bruxa que eu não conheço… – Arlete avaliou, coçando a cabeça.

            – Ué, Lete! – Carmen Lúcia exclamou, rindo. – Pensei que você ia ensinar cultura pra gente!

            Foi nesse momento que a lobisomem sentiu o cheio de Fantasma se aproximando. Virou-se para trás, ainda rindo da expressão irritada de Arlete.

            – Deu certo? – perguntou.

            – Poxa, Carmen! – Fantasma reclamou, mas ela estava sorrindo. – Eu ia assustar vocês! Sua sem graça! Vocês viram que o Anhangá tá tocando?

            – Ah! Você conhece eles também? – Arlete perguntou, ainda mais decepcionada. – Achei que, por você ser nascida brichote, não iria conhecer eles…

            – Eu não conhecia – ela confessou. – Foi o Pacho que me falou. Bem legais eles, não é?

            Os cinco ainda ficaram mais um pouco perto daquela fogueira ouvindo o Anhangá tocar, até que Vicente sugeriu que eles fossem até a fogueira armada na praça principal do El Dorado.

            Douglas insistiu em ficar por pelo menos mais uma música, e Vicente olhou engraçado para ele, sabendo qual era a real razão para seus olhares se concentrarem tanto em Rosalinda.

            Foi enquanto a voz melodiosa da vocalista cantava Todos seus segredos/ Venha me contar/ Sempre tão azedos/ Fundo vão estar, que eles finalmente deixaram os terrenos de Castelobruxo em direção à praça principal do El Dorado.

            Foi estranho para Carmen Lúcia ver a Ponte Iubárranga sem luz, ainda mais quando normalmente a ponte ainda estaria lotada. Apenas duas ruas estavam iluminadas entre Castelobruxo e a praça principal e foi por onde eles seguiram.

            – Urutau é uma ave noturna – Vicente explicou quando Arlete perguntou. – No horoscopo tupi, junho é seu mês. E também é considerado o mês em que Jaci desceu a terra pela última vez, muito tempo atrás. Como os dois são relacionados à noite e à lua, comemoramos a festa do urutau em alguma noite no finzinho de junho.

            – Eu nunca vi um urutau – Arlete começou, pensativa.

            – É uma ave mágica. Tem a habilidade de se transformar em tronco de árvore quando quer. Algumas vezes é avistado por brichotes também, mas eles…

            Vicente não chegou a completar sua frase. Carmen Lúcia, distraída com a explicação do amigo, não estava olhando para frente e, quando percebeu, havia trombado estrondosamente com alguém. Todos pararam para olhar.

            Era a professora Flora, parecendo avoada e exótica como sempre, com suas saias longas, sua pressão assustada e os vários colares. A lobisomem já estava pedindo desculpas quando os olhos azuis da professora se focaram nela.

            – Carmen! – Ela exclamou, as pupilas dilatadas como se tivesse visto um espírito. Sua boa formou um perfeito círculo e havia surpresa mistura com medo em sua face. Por um momento, a garota não soube bem o que fazer. Então a mulher apertou os olhos e sua expressão voltou ao normal. – Ah, Srta. Acheu. Aproveitando a noite?

            Apesar de ainda sem entender bem o que acontecera, Carmen Lúcia balançou a cabeça.

            – A lua crescente está bem bonita hoje… – A professora emendou, sem olhar diretamente para a garota. – Bom, vejo vocês crianças por aí. Vou dar uma passadinha nas fogueiras de Castelobruxo.

            E ela sorriu com gentileza, antes de seguir no caminho oposto ao dos alunos.

            – O que foi que aconteceu? – Fantasma perguntou, os sobrancelhas arqueadas.

            – Às vezes eu acho que essa mulher é um gênio – Douglas disse, acompanhando a professora com o olhar – Às vezes acho que tem alguma coisa errada com ela.

            Carmen Lúcia piscou.

            – Vamos continuar. Quero ver se a praça principal está tão animada quanto o El Dorado.

            – Difícil – Douglas emendou, sorrindo. – Em Castelobruxo eles tem o Anhangá!

            Eles continuaram avançando. A rua estava principalmente preenchida por alunos que moravam no El Dorado, que pareciam divididos entre ficar com a família e os colegas da escola. Mesmo assim, ainda havia algumas barracas de comida montadas, certamente de quem não conseguira lugar nem em Castelobruxo nem na praça principal.

            Douglas até comprou um suco de açaí com araçá-boi para Arlete, quando ela disse que esse parecia gostoso.

            Depois, não demorou muito para avistarem a multidão reunida na praça circular em volta de uma fogueira enorme e que também não emitia calor. A diferença da praça principal e Castelobruxo eram que a maioria dos que estavam ali eram mais velhos. Mesmo assim, também havia barracas, criaturas mágicas e pessoas rindo e se divertindo por toda lado.

            Um calor reconfortante preenchia as entranhas de Carmen Lúcia.

            – Ei, Doug – Vicente chamou. – Aqueles não são seus pais?

            Na direção que o garoto apontava, um casal conversava e bebia alguma coisa que Carmen Lúcia não conseguia identificar. Ela era alta e cheinha, de óculos sobre os olhos claros e rosto redondo. Seus cabelos pretos estavam presos em um coque alto e seus lábios estavam abertos em um sorriso. Já o homem era mais magro e ainda mais alto, e logo ficava óbvio para quem Douglas puxara. Os dois tinham o mesmo tipo de nariz, a mesma cor de cabelos e até as orelhas um pouco projetadas.

            – Tia Diana! Tio Samuel! – Vicente gritou, e Douglas quase puxou em cima dele.

            – Não! Deixa eles pra lá! Vicente, não!

            Mas o amigo não se importou com os protestou do outro. Ele continuou gritando e se aproximando, na esperança de se fazer notar.

            – Tia Diana! – chamou mais uma vez e a mulher finalmente olhou para eles.

            – Vicente, querido! – a mulher se aproximou, beijando o rosto dele. – Aproveitando a festa? Cadê o Doug? – Ela levantou o olhar, procurando o filho.

            Douglas, um pouco constrangido, vinha não muito atrás de Vicente. Carmen Lúcia, Arlete e Fantasma o seguiam, achando graça da situação.

            – Oi, mãe – Douglas forçou um sorriso para ela. A mulher o beijou também. Seu pai, não muito atrás, despenteou seus cabelos.

            – Oh, e vocês devem ser as amigas de quem o Douglas e o Vicente falaram. – a mãe de Douglas se virou para as garotas depois de ter abraçado o filho. – Muito prazer. Meu nome é Veridiana. Mas podem me chamar só de Diana.

            Carmen Lúcia achou o nome curioso. Seria um costume dos bruxos usar nomes diferentes?

            – E eu sou o Samuel. Dorado. – O pai de Douglas se apresentou pausadamente. – Um prazer conhecer vocês também.

            – Mãe, pai. Essas são a Arlete, a Fantasma e a Carmen – Ele indicou  cada uma delas, mesmo parecendo um pouco contrariado em estar tão perto da família.

            Carmen Lúcia sabia que Douglas admiravam muito os pais, mas podia imaginar que devia parecer um pouco constrangedor. Ele não queria parecer o “filhinho de papai”, como outros alunos o chamavam às vezes.

            Mesmo assim, a cena era no mínimo cômica. Carmen Lúcia sabia que Vicente adorava os pais de Douglas e conversava com eles naturalmente, enquanto Douglas parecia empenhado em sair daqui o mais rápido possível.

            Também não era difícil entender porque Vicente gostava também dos Dorado. O casal era absolutamente amigável e não demorou muito para a dona Diana puxar conversa com Arlete.

            – Os sucos daqui realmente são fantásticos – A mulher dizia. – Eu não conhecia a maioria dessas frutas antes de vir estudar em Castelobruxo, mas depois…

            Foi nesse momento que uma garota de brilhantes cabelos coloridos se aproximou. Ela tocou o braço do senhor Samuel.

            – Pai, pode me dar mais moedas? – Só então ela olhou para o resto, acenando discretamente. – Oi.

            Carmen Lúcia a conhecia. Vira a garota mais velha algumas vezes por Castelobruxo e se lembrava de vê-la se transformar de um boto para ser humano logo no primeiro dia de aula. Ela era irmã de Douglas, mas não parecia muito com ele. Seus olhos eram mais escuros, suas bochechas mais altas. E era a primeira vez que Carmen Lúcia a via com o cabelo daquela cor.

            – Cabelo novo, Nessa? – Vicente perguntou, enquanto o senhor Samuel pegava mais moedas.

            – Gostou? – Nessa perguntou, mexendo nos longos cachos e sorrindo. Os fios estavam tingidos em vários tons de rosa, azul, verde, roxo e amarelo. – Pra combinar com a minha pedra! – Ela exibiu sua varinha, com uma opala presa na ponta. – Achei que ficou bem original.

            – Pois eu achei que ficou bem bonito mesmo – o senhor Samuel disse, também com um sorriso nos lábios. Então fechou os olhos e fez seus cabelos mudarem de cor também – Que tal?

            – Pai! – A garota olhou feio para o homem, que apenas riu mais alto.

            – Meninas – Douglas chamei, enquanto dona Diana repreendia o marido carinhosamente. – Essa é a minha irmã, Vanessa. Ela decidiu  colocar um arco-íris no cabelo.

            – Minha mãe disse que ficou bonito! – a garota exclamou, irritada, mostrando que tinha ouvido.

            – Então vai mostrar pra ela.

            – Eu vou mesmo. – e, enquanto recebia as moedas do pai (cujo cabelo já voltara a ser castanho), Nessa se afastou irritada.

            Douglas apenas ria.

            – Doug! – dona Diana o olhou feio. – Não provoque sua irmã!

            – Ah, mãe. Não se preocupe. O amor continua igual – ele sorriu aquele seu sorriso debochado, enquanto a mãe lhe dirigia um último olhar e voltava a falar com Arlete.

            – Ei – Carmen Lúcia chamou Douglas. – Vocês não são irmãos? Quem é a mãe pra quem a Nessa foi mostrar o cabelo?

            – Ah, isso! É que ela é filha do primeiro casamento do meu pai. Ele se divorciou da primeira esposa. A Nessa e o Gus são meus irmãos só por parte de pai. Eles não moram comigo.

            – Entendi… – Carmen Lúcia passou a mão em seus cabelos. – Eu não sabia.

            Eles ainda ficaram perto do senhor Samuel e da dona Diana por algum tempo, até que os pais de Douglas perceberam o quanto o filho estava se sentindo incomodado. Então eles se afastaram, e os amigos ainda andaram um pouco pela praça, conversando e rindo, até que deu meia noite e eles se sentaram no chão para ver os fogos coloridos no céu. A festa ainda continuou por uma hora ou duas, mas Carmen Lúcia, Fantasma e Arlete voltaram para a Pirâmide Leste já que pelo menos as duas primeiras teriam que acordar cedo no outro dia para pegar o Navio Sem Parada.

            Fantasma novamente hesitou antes de entrar no elevador. Ela vinha fazendo isso com uma frequência cada vez maior e isso preocupava Carmen Lúcia, mas ela podia sentir os sentimentos de Fantasma e sabia que era algo absolutamente privado. E, já que não sabia como tocar no assunto, a lobisomem achava melhor não dizer nada.

            Mas as três subiram até seu dormitório, colocaram seus pijamas e, depois de Arlete ter reclamado mais um pouco sobre elas irem embora, as três caíram em sono profundo, perdidas em sonhos sobre aquela noite mágica.

 

            Carmen Lúcia demorou mais do que de costume para acordar na manhã seguinte. Na verdade, ela, que normalmente acordava antes das amigas, só levantou com as conversas de Fantasma e Arlete.

            – Se presta atención! Va a derribar la maleta!

            – Calma, Fantasma! Você já vai me largar aqui e ainda fica reclamando, credo.

            A lobisomem abriu os olhos justo nesse momento. Sentou-se rapidamente na cama, esfregando os olhos.

            – Bom dia! – ela exclamou.

            – Buenos días. Su maleta estás lista? – Fantasma perguntou logo.

            – Hen-hein. Só tenho que escovar os dentes e trocar de roupa… – Carmen Lúcia disso, ao mesmo tempo em que alcançava sua varinha e fazia rapidamente o Feitiço Tradutor.

            – Então vai rápido. – a voz de Fantasma disse, já em português. – A maioria das garotas já foi tocar café da manhã. A gente não pode se atrasar ou perde o Navio.

            – Hen-hein. Tô indo.

            Carmen Lúcia se levantou e foi rapidamente se arrumar. Logo depois as três saíram do dormitório, a lobisomem e Fantasma já deixando suas malas junto com as outras na Sala Comunal Leste. Elas tomaram café da manhã e Araci Rudá lhes desejou boas férias e se despediu dos alunos que iriam partir. Antes que pudessem se levantar, porém, Eleonora pediu para todas as garotas que iriam embora pegarem suas malas e a encontrarem na frente da Pirâmide Leste.

            Até aquele momento, Carmen Lúcia não considerara como eles iriam voltar para o Navio Sem Parada. Ela atravessara um ipê da primeira vez, mas duvidava de que havia ipês o suficiente para todos os alunos de Castelobruxo.

            Arlete resolveu as acompanhar, mesmo que não fosse tomar o Navio. Disse que assim poderia se despedir direito delas e que não havia porque ficar sozinha no dormitório.

            As outras concordaram.

            – Vão me mandar várias harpias, não vão? – Arlete pediu. – Eu vou ficar tediosamente sozinha aqui…

            – Arlete, para de reclamar. – Carmen Lúcia lhe dirigiu um olhar meio travesso, sabendo que a amiga estava exagerando para que elas se sentissem culpadas. – Você vai ter bastante tempo para o Clube Brichote, e o Douglas vai ficar aqui. Você vai ter muita coisa pra fazer. Nem vai sentir nossa falta.

            – E vamos mandar harpias também. – Fantasma garantiu, sorrindo também. – Todos os dias, se quiser.

            Arlete pareceu um pouco mais animada, dando um sorriso de todos os dentes.

            – Ai, gente. Vou mesmo sentir falta de vocês…

            Ela abriu os braços para o que pareceu um abraço, mas nesse momento Eleonora pediu a atenção de todas, o que fez com que Arlete desistisse do abraço. Por fim, as três e todas as outras garotas que também estavam ali seguiram a vice-presidente para dentro da floresta, em direção ao que ela chamou de Árvore Estação.

            – O que é essa Árvore Estação? – Arlete perguntou enquanto elas andavam por uma trilha.

            – Não sei. – Carmen Lúcia respondeu. – Não era você a entendida no Navio Sem Parada?

            – Ah, não tinha nada disso naquele folheto. Onde está o Cente quando se precisa dele?

            – Estou aqui.

            A voz fez as três garotas virarem para trás. Elas definitivamente não esperam que Vicente e Douglas realmente estivessem se aproximando também.

            – Oi. – Vicente as cumprimentou quando finalmente conseguiu as alcançar. – Não conseguem mais ficar longe de mim?

            – Pelo menos dessa vez não está atrasado, não é? – Carmen Lúcia brincou. – Vai conseguir pegar o Navio Sem Parada!

            – A mãe dele o mataria se ele se atrasasse de novo. – Douglas disse. – Daí eu passei na casa dele mais cedo pra garantir que ele não ia se atrasar.

            – Eu disse que não precisava. Mas o Doug acha que eu sou um bebê… – Vicente olhou para o amigo, parecendo um pouco irritado.

            – Seja sincero, você tá feliz em me ter aqui. – Douglas abriu um daqueles sorrisos debochados que fez Vicente rolar os olhos.

            – Não importa. – Arlete entrou na conversa. – Cente, já está aqui, você sabe o que é a tal Árvore Estação?

            – Bom, é meio que literalmente o que diz o que nome… – ele começou a explicar, usando a mão que não segurava sua mala para coçar a cabeça.

            Mas Vicente não precisou terminar a explicação. Alguém andando mais na frente soltou uma exclamação que fez todos olharem. A frente deles, quase tão alta que não se podia ver a copa, estava uma árvore que como Carmen Lúcia nunca vira igual. Suas raízes eram maiores do que um adulto e era tão espessa que nem dez pessoas juntas seriam capazes de abraçá-la. Não só isso, havia escadas que guiavam a pontos mais altos da árvore.

            – Uau – Fantasma murmurou.

            – É uma samaúma gigante. – Vicente continuou. – É a única árvore grande o bastante para permitir que todos os alunos embarquem de uma vez.

              – Eu andei várias vezes pela floresta. – Carmen Lúcia disse. – Como eu nunca senti uma árvore deste tamanho?

            – Ela é mágica – Douglas explicou. – Fica protegida por magia durante o ano inteiro. Só aparece para nós quando é hora de pegar o Navio Sem Parada.

            Alguns funcionários da escola ajudavam os alunos a se posicionarem para quando o Navio passasse. Logo Carmen Lúcia, Fantasma e Vicente teriam que tomar seus lugares também então eles perceberam que realmente era hora de dizer adeus para Arlete e Douglas.

            A mais baixa abraçou Carmen Lúcia e Fantasma ao mesmo tempo.

            – Eu realmente realmente vou sentir falta de vocês… – Ela murmurou antes de se afastar. – Não se esqueçam de descansar bastante, hein? Quando voltarem, vamos dar um jeito de colocar wi-fi na escola!

            Fantasma rolou os olhos, Carmen Lúcia suspirou. Já haviam falado tantas vezes para Arlete que achavam aquele plano maluco…

            – Lete – Vicente chamou. – Eu quase me esqueci… Acho que você não vai ter que se preocupar com wi-fi em Castelobruxo. – O garoto mexia em sua mala, procurando alguma coisa. – Aqui.

             E ele puxou um espelho pequeno, desses que algumas mulheres carregam na bolsa. No começou, nenhum deles entendeu porque Vicente parecia tão feliz. Então ele entregou o espelho a Arlete e pegou outros na mala, entregando um para cada um dos amigos e ficando com um para si.

            – Que isso? – Fantasma perguntou, mas Vicente não a respondeu diretamente.

            – O espelho é ativado com magia – ele explicou, pegando sua própria varinha e dizendo: – Japo Moné.

            A superfície do espelho se cobriu de cores brilhantes. Verde, vermelho, azul e amarelo piscaram várias vezes até que tudo se fixou na cor branca.

            – Não sei se já falei – Vicente começou, olhando do espelho para os amigos. – Mas meu pai é um inventor.

            – Acho que se esqueceu de mencionar esse detalhe… – Fantasma tinha as sobrancelhas tão altas na testa, que mais um pouco e elas iriam fugir. Sua expressão era da mais completa surpresa.

            – Bom, meu pai é um inventor – Vicente continuou, sorrindo. – Quando a Arlete surgiu com a ideia de colocar wi-fi em Castelobruxo eu conversei com ele… Acontece que ele é um bruxo e nunca tinha ouvido falar em wi-fi. Ele ficou bem interessado. Expliquei tudo o que eu sabia, e ele fez isso. – Ele indicou o espelho em suas mãos. – Claro, esses são só protótipos, mas já são alguma coisa. – Ele deu de ombros, olhando para Arlete logo em seguida. – Não vai precisar se preocupar com wi-fi ou tecnologia brichote. Esse aparelho funciona totalmente com magia. É bem legal. Dá pra usar o espelho pra pesquisar palavras-chaves em algum livro, ou usar como mapa, ou tirar fotos, ou mandar mensagens, ou conversar por vídeo com alguém. – Ele aproximou seu espelhinho do rosto, falando o nome de Arlete.

            O espelho da garota começou a vibrar em sua mão. Ela olhou chocada para ele. Fantasma se aproximou pra ver melhor.

            – Só precisa apertar a tela. – Vicente instruiu.

            Arlete fez como lhe fora dito e a imagem em tempo real de Vicente apareceu no aparelho.

            – Legal… – Fantasma parecia absolutamente maravilhada. Carmen Lúcia quase riu.

            – Claro, ainda tá faltando muita coisa. Não tem uma conexão direta com o resto do mundo ainda nem jogos… – Vicente parecia um pouco constrangido, como se não quisesse mostrar algo incompleto. Como se a invenção de seu pai não fosse boa o bastante. – Mas já que nós vamos ficar separados por um tempo… Achei…

            Nesse momento Arlete abraçou Vicente. Ele claramente não estava esperando por isso e pareceu surpreso.

            – Obrigada, obrigada, obrigada! Isso é incrível! – A menina sorria de orelha a orelha.

            – Eu falei que ela ia gostar! – Douglas se manifestou, colocando a mão no ombro do amigo quando Arlete se afastou. – Você é muito modesto, Cente!

            Vicente agora estava corado. Ele pareceu não saber bem como reagir.

            – Ah, não, nada… Na verdade, foi meu pai quem fez o espelho… Eu só… – ele então deixou um sorriso aparecer. – Mas ficou bacana mesmo, não é?

            – Ficou incrível, Cente! – Carmen Lúcia o elogiou.

            Porém, nesse momento, uma voz magicamente ampliada chamou os alunos em direção à Árvore Estação, avisando que logo o Navio Sem Parada iria passar.

            Os cinco terminaram de se despedir, garantindo uns aos outros que conversariam o máximo que pudessem pelos espelhos. E, quando Carmen Lúcia finalmente atravessou a árvore e caiu novamente de joelhos no teto do Navio Sem Parada, não pareceu que ela estaria assim tão distante dos amigos e de Castelobruxo.

            A lobisomem ainda conversou com Fantasma e Vicente durante a viagem, mas ela foi a primeira deles a desembarcar. Quando ouviu seu nome sendo chamado nos autofalantes, ela se dirigiu ao andar de baixo e montou em uma das canoas, que aterrissou bem na lagoa onde ela e o primo Danilo costumavam mergulhar.

            Rever a família foi ótimo. Ela abraçou os pais e beijou a avó, pegou a irmã no colo e lhes contou tudo sobre Castelobruxo. Também se sentiu uma irmã totalmente orgulhosa quando Emília lhe mostrou como suas habilidades estavam começando a se desenvolver.

            O único problema, porém, de estar em casa, era que ela percebeu o clima estranho que havia entre seus pais. Emília lhe disse que isso já viu acontecendo durante todo o tempo em que Carmen Lúcia estivera fora e perguntou se o casal voltaria a ser unido como era antes. A mais velha não sabia, mas procurou acalmar a irmã com histórias sobre Castelobruxo. E, em alguns momentos, ela quase desejou estar de volta ao invés de ficar em casa.


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Notas finais do capítulo

Aparentemente eu não tive sorte :O Mais de uma semana depois do que eu achei que ia conseguir postar, aqui estou eu! E eu quero agradecer as lindas Charlotte Maddison e Mademoiselle Lords por não me deixarem desistir :D Muito obrigada mesmo pelos comentários maravilhosos!



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