Castelobruxo: Anos Dourados escrita por Carolina J Martins


Capítulo 8
Capítulo 8 - Clube Brichote




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            Foi em meados de abril que Arlete contou para Carmen Lúcia seu plano. No começo, ela achara que era loucura, mas agora já estava quase acostumada com a ideia.

            Por que, de verdade, o que poderia dar errado em criar um clube que se reunia secretamente para trazer wi-fi para dentro de Castelobruxo?

            Ou pelo menos foi a pergunta que Arlete fizera a Carmen Lúcia.

            E a coisa se complicava ainda mais porque não somente Arlete criara um clube clandestino, ela também convenceu pessoas a se juntarem a ela.

            Era por esse motivo que toda sexta à meia-noite, Arlete e seus quatro companheiros estranhos se reuniam no túnel subterrâneo que ligava as Pirâmides Leste e Oeste para discutir como fariam para abrir uma brecha na proteção de Castelobruxo.

            Carmen Lúcia não fazia ideia de como eles pretendiam fazer isso, mas já se tornara um hábito acordar no meio da noite com Arlete saindo do dormitório. No começo, ela se assustara, mas agora apenas continuava fingindo que estava dormindo e deixava que a amiga fosse ter com seus novos companheiros de clube.

            A lobisomem já falara que achava que tudo aquilo acabaria de um jeito ruim, mas nada tirara a ideia da cabeça de Arlete.

            “Ai, Carmen! Não estou fazendo nada de errado. Só quero wi-fi em Castelobruxo, é pedir demais? Quando regras estão erradas é nossa obrigação quebrá-las”.

            Mas Carmen Lúcia não sabia se valia tanto esforço apenas para ter um pouco de conexão. Principalmente agora, parada no meio da floresta amazônica, respirando o ar úmido e deixando que ele fluísse por seus pulmões.

            Liberdade, poder, harmonia.

            Estava perfeitamente conectada com cada ser vivente naquela região da floresta.

            Podia ouvir o cantar de mil pássaros que desconhecia, macacos que brincavam nas árvores, sapos minúsculos e insetos gigantes que pareciam contradizer a ordem natural das coisas. Não muito longe uma onça pintada terminava sua refeição.

            Carmen Lúcia inspirou profundamente de novo.

            Estava tão distante da Chapada das Mesas e ao mesmo tempo a sensação era inteiramente familiar.

            Ela permitiu que a transformação acontecesse gentilmente. Primeiro seus olhos se tornaram dourado, as orelhas se expandiram, o nariz se alongou. Um formigamento percorria todo seu corpo enquanto cada parte dele assumia uma forma distinta, pelos laranja e escuros cresciam por toda parte. Carmen Lúcia podia sentir as pernas, já naturalmente longas, queimando e esticando.

            Em alguns segundos estava olhando a floresta de cima. Não só isso, seus sentidos se tornavam mais aguçados e alertas sobre cada movimento. Perguntou-se o que os habitantes da floresta achariam da intrusa predadora.

            A criatura teria sorrido, se pudesse. Ao invés disso, colocou as patas dianteiras no chão, avançando por entre as árvores de um jeito que nenhum outro animal jamais fizera naquela área.

             Carmen Lúcia podia estar vivendo em Castelobruxo, enterrada até os ombros em assuntos bruxos, mas ainda assim iria encontrar Danilo em oito meses e precisava estar preparada para finalmente vencê-lo em uma corrida.

            Fazia algum tempo que não praticava, e alguns músculos não demoraram a reclamar do esforço. Mesmo assim, estar finalmente em movimento de novo era melhor do que ficar parada. Havia quase se esquecido de como aquela sensação era prazerosa…

            Ela continuou correndo, afastando-se cada vez mais de Castelobruxo e do El Dorado. Não sabia aonde ia, mas também não lhe importava. Sabia, contudo, que no final estaria de volta à escola. Então continuou correndo.

            Carmen Lúcia só não esperava que fosse ficar fora até tão tarde.

            Talvez por causa das árvores tão altas e da baixa luminosidade que atingia o solo, talvez porque estava desacostumada com a forma que a floresta amazônica funcionava, mas quando Carmen Lúcia finalmente voltou para Castelobruxo, já anoitecia. As três pirâmides de ouro brilhavam mesmo com o sol se pondo e os Caiporas povoavam o gramado da escola, alguns usando de suas habilidades de teletransporte para brincar com os alunos que ainda estavam na parte de fora.

            Um deles pousou no ombro de Carmen Lúcia.

            Ela sorriu.

            – Oi.

            – Oi. Oi. Oi. Oi, oi – O serzinho repetiu, os olhos vermelhos ardendo em curiosidade.

            Agora com o Feitiço Tradutor, Carmen Lúcia conseguia entender o que os Caiporas falam, mas não fazia a menor diferença. Na maioria das vezes eles só repetindo incansavelmente a única palavra que lhes fora dito.

            Ela não conseguia entender porque Douglas, e até mesmo Vicente, às vezes pareciam um pouco apreensivos perto deles.

            E, justamente quando viu Douglas se aproximando, o Caipora desapareceu em luz vermelha.

            – Ei – o garoto a chamou. – Carmen!

            Ele se aproximava com aquele sorriso displicente, as mãos balançando casualmente ao lado do corpo. Mesmo assim, Carmen Lúcia sabia que algo estava o incomodando.

            – Tudo bem? – perguntou, quando ele estava próximo o bastante.

            – Sim… – Ele olhou melhor para ela enquanto os dois começavam a voltar para as pirâmides. – Tá tudo bem com você?

            Carmen Lúcia franziu a testa.

            – Por que está perguntando?

            – Ah, não sei. Vocês garotas estão muito estranhas hoje. A Fantasma está na Biblioteca Oeste e não quer sair de lá; Arlete estava falando comigo até agora pouco, mas de repente ficou toda nervosa e foi embora; e você está sumida o dia inteiro. Estão fazendo algum tipo de plano maluco contra nós?

            –  Quer dizer você e o Vicente? Acha que estamos planejando alguma coisa contra vocês dois?

            – Bom, talvez o Cente esteja envolvido também. Eu não sei. Ele também foi direto da escola para casa e disse que não podia sair hoje porque ia estudar…

            – Claro que o Vicente vai estudar! Temos nossas primeiras provas semanas que vem, Doug. Cente não é inteligente porque ele nasceu assim. A Fantasma também. Deve estar estudando. Nós devíamos estudar também.

            – E a Arlete? – ele ainda parecia um pouco ressabiado, como se não tivesse certeza se devia confiar em Carmen Lúcia. – Arlete não ia estudar.

            Carmen Lúcia quase ria de toda aquela preocupação desnecessária.

            – Que dia é hoje?

            – Hum… Sexta. – Douglas olhou para ela, sem conseguir entender. – Por quê?

            – Bom… – Ela sorria agora, sabendo o quão estranha seria a frase que estava prestes a dizer. – A Arlete meio que organizou um clube secreto para colocar wi-fi em Castelobruxo.

            – Ela… Sério, o que tem de errado com essa garota? – Ele parecia surpreso, mas surpreso de um jeito bom. Douglas passou uma das mãos pelos cabelos enquanto sorria. – É sério isso?

            – Hen-hein – Carmen Lúcia sorria também. Arlete às vezes fazia coisas que ninguém entendia direito, mas, agora que parara para pensar, era engraçado. – E você achando que íamos mangar com você… Sinceramente, Doug.

            – É, você tem razão…

            – Como está Ágata? – perguntou, referindo-se à maritaca nova do amigo.

            Douglas sorriu.      

            – Ela é o máximo. Já fica no meu ombro… – Ele olhou para cima, vendo que o sol sumia. – Acho melhor ir pra casa. Minha mãe vai ficar preocupada se eu não parecer logo. Tchau, Carmen. – Ele acenou enquanto se afastava, um sorriso sincero em seus lábios.

            – Tchau. – Carmen Lúcia também acenou para ele. – Ei! – Ela chamou antes que ele estivesse longe demais. Douglas parou. – Você vai no jogo amanhã?

            – Tá brincando? Claro que vou! É trancabola, Carmen! Não perderia por nada!

            Carmen Lúcia sorriu.

            – Te vejo lá, então.

            – Até. – Ele acenou mais uma vez enquanto se distanciava de vez.

            A lobisomem ficou olhando enquanto o garoto se afastava. Por fim, virou-se e resolveu entrar na Pirâmide Leste para ver o que Arlete estava aprontando dessa vez.

            A Sala Comunal Leste estava lotada como sempre. Ela podia ver Ana María conversando com um garoto que era quase duas vezes seu tamanho; dois garotos de peles escuras estavam sentados no sofá jogando cartas com uma garota ruiva que rias às gargalhadas; ela também podia ver Felipe, Hugo e Bola conversando e sorrindo, mas, como eles não a viram, preferiu os ignorar.

            Ao invés disso, Carmen Lúcia caminhou até Fantasma, ainda estudando sem parar, mesmo na sala bagunçada.

            – Tudo bem? – Começou casualmente.

            – Carmen? Oi… Eu… – ela forçou um sorriso, mas parecia mal reconhecê-la, tão cansada estava. Seus cílios longos batiam enquanto ela piscava várias vezes. – Estou bem, estou…

            – Fantasma? Tem certeza de que está tudo bem mesmo? Você não parece bem… Tá um pouco pálida.

            A garota emitiu um som que Carmen Lúcia identificou como uma tentativa de riso.

            – Eu sou pálida. Por isso me chamam de Fantasma.

            – O Doug me disse que você estava na Biblioteca Oeste. Porque veio estudar aqui?

            – Muito barulho.

            Carmen Lúcia olhou ao redor. Não conseguia imaginar como a Biblioteca Oeste devia estar se a Sala Comunal Leste era mais silenciosa.

            – Certo… – Ela disse, descrente. Talvez estudar tanto estivesse fritando os miolos de Fantasma. – Eu vou subir. Vem comigo?

            – O q… Não, não. – Pela primeira vez Fantasma não parecia tão cansada. Havia algo em sua voz em que soava estranho, desesperado até. – Eu tenho que terminar de estudar Biomagia. Você sabe como o Nestor é…

            Carmen Lúcia arqueou as sobrancelhas, olhando os livros de História da Magia abertos na mesa de Fantasma.

            Apesar de achar tudo aquilo muito estranho, resolveu não insistir no assunto. Fantasma não estava nada disposta a conversar, então Carmen Lúcia respeitou a privacidade da argentina.

            – Te vejo depois então – Carmen Lúcia forçou um sorriso. – Tem certeza de que está bem mesmo?

            – Um pouco cansada, mas bem. – Ela esfregou os olhos, encarando Carmen Lúcia uma última vez. – Já vou subir. Pode ir na frente.

            Enquanto se virava e ia em direção ao elevador, Carmen Lúcia imaginou que talvez Douglas estivesse certo. Fantasma estava agindo estranho.

            Talvez ele estivesse certo e as amigas estivessem enlouquecendo.

            Ela apertou o botão um do elevador, esperando enquanto ele subia rápido demais. Carmen Lúcia ainda não estava acostumada completamente com o movimento do elevador, mas pelo menos não ficava mais enjoada.

            Arlete estava sentada em um dos sofás, olhando atentamente alguns pergaminhos.

            – Lete!

            Ela olhou para cima, um pouco assustada. Respirou fundo quando percebeu que era apenas Carmen Lúcia.

            – Você me assustou!

            – O que você está fazendo? – Perguntou enquanto se sentava perto da amiga, achando estranho o conteúdo dos pergaminhos.

            Arlete sorriu.

            – São nossos planos de como colocar internet em Castelobruxo.

            Carmen Lúcia leu algumas as frases desconexas abrir a barreira com uma flecha, captar um sinal na parte externa e trazê-lo para dentro, magnetismo. Ela não achava que nenhuma dessas ideias ia dar muito certo.

            – Arlete, acho mesmo que você devia desistir disso. A professora Jacinta já disse que é contra as regras e você está deixando tudo muito à vista…

            – É aí que está a genialidade disso! Estou fazendo tudo bem no nariz dela! Jacinta nunca vai suspeitar de nada. E, se suspeitar, já vai ser tarde demais, porque já vamos ter conseguido trazer internet para Castelobruxo!

            Arlete sorria, mas Carmen Lúcia estava preocupada. No começo achara engraçada toda a dedicação da amiga, mas agora começava a pensar se aquele excesso de confiança de Arlete não era prejudicial. Afinal, ela não só estava quebrando uma regra da escola diretamente, como também não se importava nenhum muito em esconder isso.

            – Onde você tava o dia inteiro? – Arlete perguntou, sem tirar os olhos de uma das folhas.

            – Eu fui correr. Fazia algum tempo que eu não corria… – Ela se espreguiçou. – Estou bem cansada, na verdade. Que horas são?

            – Quase sete.

            – Você vem jantar? – Carmen Lúcia começou a se levantar, quase sentindo o gosto da comida na boca.

            Arlete suspirou, juntando seus pergaminhos.

            – Acho que sim. Eu não consigo ter nenhuma ideia mesmo… É que hoje temos uma reunião e eu queria levar uma ideia nova… – Arlete suspirou de novo, passando a mão pelos cabelos curtos. – Eu sei que uma ideia boa vai parecer mais cedo ou mais tarde, mas eu queria que aparecesse logo. Vamos.

            As duas desceram pelo elevador, encontrando Fantasma quase adormecida sobre seus livros na Sala Comunal, essa já bem mais vazia enquanto as pessoas começavam a ir jantar. Foi preciso algum esforço para trazê-la à vida real, mas no fim as três foram para o Salão Principal, onde se deliciaram mais uma vez com a comida excelente e a torta de abacaxi deliciosa de Castelobruxo.

            E Fantasma e Arlete pareceram quase normais.

            Quando voltaram para os dormitórios, viram os Caiporas as seguindo. Carmen Lúcia imaginou, não pela primeira vez, o que aconteceria se fosse pega por um deles depois do toque de recolher.

            Antes, porém, que pudessem pegar o elevador até seu andar, Fantasma disse que precisava pegar seus livros e pediu para as outras irem à frente. Carmen Lúcia sentiu o quanto Fantasma estava nervosa, e relutou um pouco em concordar, mas acabou vencida pelo cansaço. No fim, ela e Arlete subiram na frente, e Carmen Lúcia aproveitou que a outra amiga estava concentrada em seus planos mirabolantes para tomar um banho.

            – Cadê a Fantasma? – a lobisomem perguntou, entrando no dormitório ainda secando os cabelos, estranhando que a amiga ainda não tivesse subido.

            – Não sei… – Arlete confessou, tirando o rosto de seus pergaminhos pela primeira vez. Ela segurava uma pena, que bateu em seu rosto quando se levantou. – Você acha que ela está fazendo alguma coisa sem nos contar?

            A curiosidade brilhava nos olhos de Arlete. Carmen Lúcia se perguntou se a amiga achava que Fantasma tinha um plano ainda mais maluco que o dela.

            Ao contrário disso, Carmen Lúcia estava preocupada com Fantasma. A argentina parecera ainda mais distante e mais enigmática do que normalmente. Temia que alguma coisa séria estivesse acontecendo, mas também não queria invadir a privacidade dela.

            – Não sei. – Ela se sentou em sua própria cama, olhando no relógio da parede. – Mas se ela não aparecer até umas dez horas, vou atrás dela.

            Carmen Lúcia realmente pretendia fazer isso, mas estava tão cansada que deitou em sua cama e não percebeu enquanto o sono a levava gentilmente para sonhos distantes. Ela sonhou com Carolina, com os primos e a Chapada das Mesas; com as histórias da vó Carminha e o riso da irmã. Tudo tão distante de Castelobruxo…

            Só acordou com a movimentação exagerada de Arlete.

            – Quê…?

            – Shh! – Ela pediu, segurando seus pergaminhos. – É meia-noite, to indo para a reunião.

            – Meia-noite? – Carmen Lúcia se levantou rapidamente. – Fantasma voltou?

            Mas ela não precisou de uma resposta verbal para saber. A cama da argentina estava tão intocada quanto algumas horas antes.

            Mesmo com a luz apagada, Carmen Lúcia podia ver que Arlete franzira a testa.

            – Você acha que aconteceu alguma coisa?

            – Não sei. – Alguma coisa vinha lhe dizendo que Fantasma parecia estranha o dia inteiro. Agora temia ter ignorado tudo isso e alguma coisa ter acontecido com ela. – Mas vamos descobrir. – disse enquanto se punha de pé. – Vamos.

            – Carmen! – Arlete abafou um grito atrás dela. – Não faça barulho, vai acordar todo mundo!

            Mas Carmen Lúcia já descia as escadas e não parou para esperar a outra.

            – Carmen! Carmen! – Arlete correu atrás dela nas pontas dos pés, segurando seus pergaminhos. – Você vai acordar todo mundo!

            – Hen-hein. – Ela só parou quando já estava dentro do elevador com Arlete parada ao seu lado. – Tô mais preocupada com a Fantasma do que com as outras meninas dormindo.

            – Você acha que alguma coisa aconteceu com ela? – Arlete perguntou, um tom mais baixo. Ela cobriu a boca de repente – Talvez ela tenha saído das Pirâmides e os Caiporas pegaram ela!

            Carmen Lúcia olhou para uma Arlete sinceramente assustada. Normalmente acharia que ela estava exagerando, mas agora já não tinha certeza de nada.

            Respirou fundo.

            – Espero que não.

            O elevador parou com um solavanco e pareceu demorar mais do que o normal para se abrir. Uma garota estava parada de costas na Sala Comunal Leste, agora apenas iluminada pela luz do elevador. Carmen Lúcia ia sair do elevador, mas a imagem da desconhecia a fez hesitar.

            Arlete, porém, parecia à vontade.

            – Soso! – Ela chamou, sorrindo para a garota mais velha.

            Soso tinha mexas azuis por todo o cabelo curto e era essa a característica nela que mais chama a atenção. Sua pele era tão escura quanto seus olhos mergulhados em abismos profundos e cobertos por óculos fundos. E Carmen Lúcia tinha a impressão de que já ouvira o nome antes…

            – Carmen, essa é a Soso. Soso, essa é a Carmen. – Arlete apresentou as duas.

            – Amiga nova, hã? – Soso não era muito mais alta do que Carmen Lúcia. E ela estava sorrindo até que olhou melhor para Carmen Lúcia. – Aê, você não é aquela novinha que a Ana queria tanto no time, max que não apareceu para as audiçõex?

            Foi quando Carmen Lúcia lembrou onde já ouvira Soso antes. Soso era a amiga com quem Ana María se encontrara no Navio Sem Parada.

            – Eu não sou muito boa em voar… – Carmen Lúcia se sentiu de repente um pouco constrangida. Evitara Ana María desde que não fora para as audições e agora simplesmente encontrara uma amiga dela.

            – A Ana ficou bem chateada… – Mas Soso deve ter percebido que Carmen Lúcia estava desconfortável, então mudou de assunto: – Veio para o Clube Brichote?

            – Na verdade… – Arlete começou a falar, mas Carmen Lúcia a interrompeu:

            – Sim! – Ela olhou duramente para Arlete. Esperava que ela entendesse que o que qualquer que fosse o segredo de Fantasma, não cabia a elas contar para outras pessoas.

            – Legal – Soso sorriu, cruzando os braços. – Eu achei a ideia bem experta. Meus paix são brichotex e eles sempre reclamam quando eu mando harpias… Vamox? Os garotos devem estar experando.

            Soso se virou de costas, indo em direção ao alçapão. Carmen Lúcia dirigiu um olhar rápido para Arlete. Não acreditava que estava entrando nessa confusão de trazer wi-fi para Castelobruxo.

            E elas nem haviam encontrado Fantasma.

            Soso, na frente, abriu a porta do alçapão, deixando a escada dourada em espiral à vista. Lá em baixo, ao contrário da Sala Comunal, estava iluminado de algum jeito mágico, já que não era possível ver de onde vinha a luz. Soso desceu primeiro, olhando rapidamente para trás para ver se Carmen Lúcia e Arlete a acompanhavam.

            – Eu não tô gostando disso. – Carmen Lúcia sussurrou para Arlete.

            Mas a amiga estava radiante.

            – Não se preocupe. Vai dar tudo certo.

            As duas desceram as escadas também e se encontraram em um túnel maior do que Carmen Lúcia imaginara que seria. Era grande o bastante para acomodar um sofá com sobra. O chão era dourado, a parede e o teto brancos. Tudo era bastante claro, como se fosse dia, mas não o bastante para machucar os olhos. Carmen Lúcia se perguntou por que nunca havia passado por ali.

            No meio do corredor estavam três garotos, nenhum deles mais velho do que Soso. Um deles era alto e careca, de pele tão pálida quanto Fantasma, mas olhos escuros como os de Soso; o mais baixo deles devia estar no primeiro ano também e tinha grandes olhos chorosos. Talvez Carmen Lúcia estivesse em alguma aula com ele, mas não conseguia se lembrar de qual. O terceiro garoto… Bom, era Bola.

            – Oi, garotos! Eu trouxe a minha amiga Carmen. – Arlete exclamou contente. – Se apresentem pra ela.

            – Oi – O garoto mais alto disse, forçando um sorriso. – Meu nome é Érico.

            – Eu sou o Aurélio. Nós temos Voo e Poções juntos.

            – Você já me conhece. – Bola disse, parecendo um pouco sem graça. – Oi, Carmen.

            Carmen Lúcia forçou um sorriso para Bola, ainda sem entender bem o que ele fazia ali.

            Depois das devidas formalidade, Arlete, Aurélio, Soso e Bola sentaram no chão. Carmen Lúcia e Érico ficaram de pé, encostados em paredes opostas; a diferença entre eles era que, enquanto o garoto mais velho parecia perfeitamente à vontade, Carmen Lúcia não sabia bem o que estava fazendo ali.

            – Bom, começa agora nossa quinta reunião do Clube Brichote. – Arlete anunciou em faz formal. – Soso, se importa em tomar nota?

            A mais velha assentiu enquanto Arlete lhe entregava os pergaminhos e uma pena. Soso pegou sua varinha, fazendo com que os pergaminhos começassem a flutuar e a pena começou a escrever sozinha.

            – A ideia de usar magnetismo poderia ser boa, mas eu acho que pode ser muito complicado – Arlete começou a falar. – E a gente nem tem uma base sólida que confirme que vai funcionar. Érico, você ficou de ver se existe algum antecedente na biblioteca. Conseguiu?

            – Não existe nada. A ideia de magnetismo é um tiro no escuro. – Érico confirmou, balançando a cabeça, sem olhar diretamente para Arlete – Mas eu falei com a Flora. Ela disse que quando ela estava em Castelobruxo, uma amiga dela quase quebrou a barreira. Ela disse que é uma sorte que não tenha quebrado, ou não estaríamos mais aqui, mas eu discordo dela. Essa barreira não está fazendo nenhum bem ficando onde está.

            – E você acha que pode descobrir mais sobre como essa amiga da Flora quase quebrou a barreira? – Arlete perguntou, os olhos brilhando em empolgação.

            Érico assentiu, seus olhos escuros fitando Arlete.

            Carmen Lúcia não sabia bem o porquê, mas Érico deixava a loba dentro dela nervosa.

            – Bola – Arlete chamou, olhando diretamente para ele. – Conseguiu descobrir até onde a barreira vai exatamente?

            – Sim. – Ele respondeu, mexendo-se para achar uma posição mais confortável no chão. – A barreira é irregular. Eu marquei os pontos mais importantes com pedras e na Biblioteca Central tem um mapa mostrando melhor, mas o Andrés não me deixou pegar…

            A Biblioteca Central ficava na Pirâmide Principal e era onde estavam todos os livros sobre qualquer assunto que não biomagia. Andrés era o bibliotecário colombiano responsável por aquela parte.

            Arlete, Soso, Aurélio, Bola e Érico ainda conversaram mais um pouco enquanto Carmen Lúcia ouvia a discussão calada. Até que, por fim, Soso disse que precisava dormir porque jogaria trancabola no dia seguinte. Arlete declarou que a reunião da semana havia acabado e todos voltaram para seus dormitórios.

            Carmen Lúcia e Arlete acompanharam Soso pela Sala Comunal Leste até o elevador. Elas se despediram dela no andar cinco e continuaram até o número um.

            Já exausta e deitada em sua cama, Carmen Lúcia nem lembrou que não sabiam onde Fantasma estava.

 

            A garota negra passou tão rápido em sua vassoura que Carmen Lúcia sentiu o pescoço estalando quando se virou para acompanhá-la. Os gritos eram ensurdecedores em seus ouvidos. Douglas estava tão animado que por um momento Carmen Lúcia temeu que ele fosse perder o equilíbrio e cair lá de cima da arquibancada.

            – E Maria do Socorro faz um passe extraordinário para Cristiane. Essas garotas das Araras Azuis estão com tudo hoje! É melhor os Aranhas tomarem cuidado, ou a posição deles no Campeonato de Trancabola será prejudicada, mesmo com os pontos da vitória sobre os Galos do Sul. – A voz do comentarista da partida, Rique Domingues, ressoava por todo o campo.

            De fato, Soso fizera um passe tão bonito que fizera mesmo Douglas, torcendo para os Aranhas, vibrar.

            – Elas vão ganhar! – Arlete gritou, apertando o braço de Carmen Lúcia e sorrindo. – Elas vão ganhar, Carmen! Fantasma!

            Fantasma estava parada ao lado delas, parecendo um pouco cansada e carregando olheiras que apenas eram mais aparentes graças à sua pele clara. Carmen Lúcia e Arlete haviam a encontrado dormindo no Salão Comunal Leste de manhã. Aparentemente ela acabara adormecendo sobre os livros enquanto estudava.

            Apesar de não ter questionado Fantasma, Carmen Lúcia não conseguia se lembrar de tê-la vista no Salão Comunal quando descera para o Clube Brichote de Arlete.

            – Ela não vai conseguir! – Vicente gritou do nada.

            Carmen Lúcia voltou sua atenção para o jogo. Ana María segurava a bola e estava perto de marcar, mas faltavam poucos segundos para acabar sexto tempo…

            A lobisomem precisara de semanas para aprender todas as regras de trancabola e algumas vezes ainda as confundia com as regras de suspenobol e quadribol. Mas, depois de Douglas ter repetido várias vezes, ela aprendeu que cada partida de trancabola era divida em pelo menos cinco tempos que terminavam ao fim de vinte minutos ou se alguém marcasse um ponto. Algumas vezes um sétimo tempo era adicionado, se houvesse empate. Se, em vinte minutos, nenhum time marcasse um ponto, a bola explodia, eliminando o jogador que a segurava. Por isso, todos haviam se calado para assistir Ana María. Se ela conseguisse acertar o caldeirão preso a um dos três arcos, ela marcaria um ponto, empatando o jogo e ganhando mais um tempo; se não conseguisse, o jogo estaria terminado e as Araras Azuis teriam poucas chances de continuar no Campeonato de Trancabola.

            – Vai, Ana! – Arlete gritou – Vai, vai, vai!

            – Ana María desvia dos irmãos Marques e continuava avançando. – A voz de Rique Domingues soar por sobre os gritos da plateia. – Quinze segundos para o fim do tempo. Ela arremessa a bola por cima da goleira Andrina…

            Carmen Lúcia transformou os olhos, querendo enxergar melhor. Parecia que a bola estava em câmera lenta, rodando uma, duas vezes no ar. Andrina esticou a mão e seus dedos bateram na bola, desviando seu trajeto. Mas, por uma feliz coincidência, isso apenas fez com que o gol fosse marcado no arco de baixo.

            – E Ana María marca! Três a três! O jogo está empatado!

            Arlete abraçou Fantasma com um braço e Carmen Lúcia com o outro; Vicente gritou; Douglas parecia impressionado, mas não muito feliz, já que estava torcendo para os Aranhas.

            Mesmo que ainda tivesse um tempo, Carmen Lúcia, Arlete e Vicente já comemoravam como se fosse vencedores. Fantasma deu um tapa no braço de Douglas.

            – As Araras não são tão ruins, hãn? – ela provocou.

            Mas Douglas apenas lhes dirigiu um sorriso de superioridade, como se soubesse mais que todos eles.

            – Ainda não acabou. – ele disse. – As Araras Azuis estão surpreendendo, mas ainda acho que os Aranhas vão levar a melhor. Eles tiveram uma classificação boa ano passado.

            As Araras Azuis se abraçavam em campo. Carmen Lúcia lembrou que Ana María lhe dissera que fazia muito tempo que não ganhavam nada e ali estava uma chance real de ganhar uma partida.

            O jogo recomeçou. A plateia gritava enlouquecida. Algumas vezes Carmen Lúcia achava engraçado como os bruxos eram tão completamente apaixonados por trancabola. Quadribol podia ter os maiores eventos internacionais e suspenobol podia ser o único inteiramente brasileiro; mas trancabola era a verdadeira febre em Castelobruxo.

            – Pedro Soares tem a bola. Ele passa por Maria do Socorro… e por Amanda Trindade. Pedro Soares tenta passar a bola para Helena Matheus, mas Larissa consegue entrar na frente. As Araras Azuis tem a posse de bola novamente!

             Carmen Lúcia vibrou junto com Arlete e Vicente. Fantasma sorria de canto de boca, bocejando vez ou outra. Douglas ainda torcia pelos Aranhas.

            – Vocês vão ver, vocês vão ver – Ele murmurava, acompanhando o jogo com seriedade.

            Infelizmente, Douglas estava certo. Ele e os torcedores dos Aranhas gritaram quando a bola explodiu no rosto de Cristiane. Isso marcava mais um ponto para os Aranhas e garantia sua vitória. Arlete parecia indignada. Olhava de Carmen Lúcia para Fantasma, sem completar nenhuma frase:

            – Eu… Não… Injustiça!

            Douglas riu, aproximando-se e colocando a mão no ombro de uma emburrada Arlete.

            – Eu disse, não disse?

            – Espere o próximo ano – Vicente disse. – Elas são um time iniciante. Aposto todas as minhas fichas que elas vão ganhar.

            – Não seja um mal perdedor, Cente! – Douglas continuou. – Venham. Vou pagar um refrigerante para cada um vocês.

            E, mesmo ainda um pouco chateados pela derrota das Araras Azuis, eles seguiram Douglas para a Ponte Iubárranga, onde a bela e loira atendente da Lanchonete Jaci lhes serviu bebidas mágicas e refrescantes de todos os tipos.

            E, no fim, até que foi divertido.


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Notas finais do capítulo

Er.. Oi. (Você aparece aqui depois de dezessete dias e tudo o que diz é "Oi"?) Eu tenho até vergonha de voltar depois de demorar tanto... Prometo que vou tentar postar com mais frequência, se eu tiver sorte consigo postar o próximo capítulo até sexta. E juro que vou responder seus comentários também. Me perdoem. Espero que não abandonem essa pobre autora demorada... :O



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