Castelobruxo: Anos Dourados escrita por Carolina J Martins


Capítulo 4
Capítulo 4 - Uma Escola de Ouro


Notas iniciais do capítulo

Eu sei que faz tempo algum tempo que não posto, mas estou aqui! Bom, esse capítulo é um pouco mais longo do que os outros, para compensar que será o único da semana.

Ah, e eu quero agradecer aos comentários do último capítulo! Muito obrigada mesma, vocês me animaram de verdade! :D

E vou deixar uma imagem de como eu imagino mais ou menos os uniformes de Castelobruxo. Me perdoem se o desenho não estiver muito bom...



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Acontece que eles não tiveram que simplesmente pular. Eles foram divididos em pelo menos duas centenas de barcos de madeira para dez pessoas e arremessados lá de cima. O que não foi nenhum pouco menos apavorante.

            Cada canoa era dividida em quatro bancos. Os dois do meio acomodavam até três pessoas e os dois das pontas mais duas.

            Carmen Lúcia e Arlete se sentaram na parte do meio de uma das canoas, ao lado de um garoto do terceiro ano. Ali também já estavam sentados mais dois amigos do primeiro e um grupo animado do sétimo ano, conversavam aos sussurros. Todos já usavam o uniforme verde da escola.

            Arlete apenas sorria animada como se aquele fosse mais um dia em um parque de diversões; Carmen Lúcia estava nervosa, olhando para os lados o tempo todo, mas tentando ao máximo disfarçar. Sou uma loba, repetia para si mesma o tempo todo. Não tenho medo.

            Mas, a verdade era que morria de medo de altura. Gostava do chão, dos animais, da sensação da floresta quase entrando por suas veias. Já o céu era território estrangeiro.

            – Estou tão ansiosa para conhecer Castelobruxo… Como você acha que é? – Arlete perguntou, ignorando o nervosismo da outra.

            – Minha avó disse que fica do lado do El Dorado.

            – El Dorado? Como o El Dorado das lendas?

            Carmen Lúcia já abrira a boca para responder, porém a canoa tomou impulso justo nesse momento. De repente uma porta enorme se abriu a frente deles. E, no momento seguinte, todos os alunos em suas canoas estavam flutuando no ar.

            No começo, ela sentiu vontade de gritar. O vento batia em seu rosto, o ar zunia em seus ouvidos. Mas não demorou a perceber que o movimento das canoas era suave, quase como se houvesse um paraquedas a cima deles, impedindo-os de sofrer uma queda brusca.

            Respirou fundo.

            Arlete apenas ria a plenos pulmões, como se nunca tivesse feito nada mais divertido.

            – É o primeiro ano de vocês, certo? – falou um dos garotos do terceiro ano, nos quais nenhuma delas prestara muita atenção.

            Carmen Lúcia olhou para melhor para ele, concordando. Era um tipo estranho, com o rosto coberto por acnes e os cabelos espetados com o excesso de gel. E, por algum motivo, Carmen Lúcia logo descobriu que não conseguia olhar durante muito para tempo para seus olhos escuros cobertos pelos cabelos também escuros.

            – Vocês vão goxtar. – Ele disse, sorrindo de um jeito que fazia a loba dentro de Carmen Lúcia ter vontade de atacá-lo. – Não é, Bola?

            Bola, alguns quilos acima do peso como o apelido sugeria, olhou quando ouviu o amigo o chamando. Não parecia muito interessado na conversa, porém concordou.

            – Meu nome é Felipe. Esse é o Bola, e o outro é o Hugo – o primeiro garoto se pronunciou. – E vocês?

            Carmen Lúcia não respondeu imediatamente, ainda o analisando. Felipe tinha a pele queimada pelo sol igual à dela, porém o bronzeado dele devia ser resultado de vários dias na praia, a julgar pelo sotaque, enquanto o dela era em razão das longas corridas na Chapada das Mesas.

            – Eu sou Arlete. – A garota se apresentou, mexendo-se na canoa para que pudesse apertar a mão de Felipe.

            Carmen Lúcia se segurou firme em seu assento, mordendo o lábio inferior. Teve vontade de arremessar Arlete lá de cima por se mexer tanto.

            – E essa é a Carmen. – A outra continuou, quando percebeu que a nova amiga não pretendia se apresentar. – Ela é bem legal, mas um pouco tímida.

            – Ei!

            – Que foi? Eu acabei de falar que você é legal!

            Carmen apenas olhou para Arlete. Queria lhe transmitir de alguma forma a impressão que tivera de Felipe e dos dois amigos. Queria avisar Arlete de que achava melhor não se envolver com aqueles três, que alguma coisa parecia errada.

            Se Arlete tivesse o sangue lobisomem seria tão mais fácil…

            – Você tem uma varinha e tudo? – Arlete perguntava. Por um momento Carmen Lúcia achava que devia ter se distraído, pois não percebera que a amiga ainda estava conversando com Felipe.

            – Sim. – Ele pegou a varinha. – Acácia, ônix e pelo de lobisomem.

            Foi só ao ouvir a palavra lobisomem que Carmen Lúcia se virou. A varinha de Felipe parecia um pouco com a de vó Carminha. Ambas eram feitas de madeira com uma pedra presa na ponta mais grossa, por onde se segurava a varinha. Porém o tipo de madeira e a pedra de Felipe eram diferentes dos de sua avó.

            Vó Carminha explicara um pouco sobre as varinhas para Carmen Lúcia depois de ela receber a carta de Castelobruxo. Cada bruxo era responsável por fazer sua própria varinha já que as combinações de madeira, pedra e núcleo eram tantas.

            Havia também uma bainha especial que era revestida por um tipo de feitiço que impedia as varinhas de fazerem magia por acidente quando guardadas. Da mesma forma que as combinações de madeira, pedra e núcleo, o tipo de bainha mudava. A varinha de vó Carminha era de figueira, pedra da lua e pelo de cavalo marinho; sua bainha mágica era feita de fibra de vitória-régia.

            – Tua varinha é feita de pelo de lobisomem? – Carmen Lúcia perguntou para Felipe, manifestando-se pela primeira vez.

            – Ah, isso te interessou então, Srta. Tímida? – Ele parecia satisfeito em ter a atenção de Carmen Lúcia. – Sim, pelo de lobisomem. Aqueles monstros terríveis.

            Carmen Lúcia começava a sentir vontade de atacá-lo de verdade.

            Arlete, porém, foi a única que entendeu o perigo. Olhou para frente, como que esperando que o grupo do sétimo ano percebesse o que estava acontecendo e interrompesse a possível briga. Quando não recebeu resposta, e já que estava sentada no meio dos dois, Arlete posicionou o corpo como um escudo.

            – E a bainha? – ela tentou mudar de assunto, olhando para Felipe e forçando um sorriso.

            Mas nem isso foi o suficiente. Carmen Lúcia insistiu duramente por sobre o ombro da amiga:

            – Atrus ou guará?

            – Hum…? – Felipe fez cara de pouco caso.

            A lobisomem não tinha certeza se ele estava se fazendo de desentendido de propósito ou se de fato desconhecia os termos. Ela estava prestes a explicar, quando as canoas finalmente encontraram água.

            – Olhem! – Arlete gritou, inclinando o corpo para frente e fazendo a canoa balançar. Carmen Lúcia se segurou firme ao banco.

            Depois de perceber que não estavam mais no ar, a lobisomem olhou para frente. Realmente era impressionante. Todas as canoas estavam em alta velocidade em um rio enorme de águas claras, cercado por mata densa dos dois lados. Nas margens ela ouvia o som de macacos e pássaros, os odores se misturavam, o sol beijava sua pele gentilmente. Nada de nuvens em lugar nenhum, o céu novamente acima de si.

            Respirou fundo, sorrindo. Estava em solo mais uma vez.

            Seus cabelos eram tocados gentilmente pelo vento.

            Fechou os olhos, aproveitando o momento.

            Só os abriu novamente quando ouviu um barulho vindo das águas. Era como se alguma coisa tivesse caído, então olhou para fora, assustada com a possibilidade de algum aluno ter se desiquilibrado.

            Mas nenhum caíra. Ao invés disso, as canoas eram rodeados por belas criaturas aquáticas.

            – São botos cor de rosa? – Arlete gritou, animada. Uma das garotas do sétimo ano olhou para trás e sorriu.

            – Pode apoxtar que sim. – Felipe disse, porém seu sorriso não parecia gentil como o da garota do sétimo ano. Estava mais para animalesco. Carmen Lúcia afastou o olhar – Mas vocêx terão uma surpresa.

            – Será que a gente pode adotar um boto? – Arlete continuou, sem dar grande importância às palavras de Felipe. – Na carta de Castelobruxo dizia que a gente podia trazer um animal de estimação.

            – Você pode tentar – Hugo riu, manifestando-se pela primeira vez. – Mas eles não vão gostar muito.

            – Não são… – Bola começou a falar, mas Hugo o interrompeu.

            – Deixe que descubram sozinhas.

            – Não, me diga agora! Fiquei curiosa – Arlete insistiu.

            Foi quando a garota que sorrira antes se virou. Olhou de Hugo para Arlete e Carmen Lúcia.

            – Ei, não seja chato com elas, Hugo. Não deixem meu irmãozinho chatear vocês. Os botos, na verdade…

            – Ah, Dri, não estrague a graça. – Um garoto ao dela a interrompeu. – Elas vão descobrir logo. E você verá seu namorado – Mas ele não pareceu nenhum pouco feliz em dizer a última frase.

            Por um momento, pareceu que Arlete ia protestar, mas logo descobriu algo mais interessante. Como se tivesse aparecido do nada, um tipo de plataforma ou ponte imensa ligava as duas margens do rio. Em cima dela, várias pessoas andavam em alvoroço; havia algumas barraquinhas armadas, como uma espécie de comércio, e tudo parecia tão colorido…

            – O que é isso? – Arlete perguntou, esquecendo totalmente os botos cor de rosa.

            Carmen Lúcia olhava também. Era mesmo impressionante. Ainda estava longe, então não podia vê-la direito, mas tinha certeza de que a ponte não estava ali segundos antes.

            – É a Ponte Iubárranga. – Felipe disse. – O melhor lugar pra comprar qualquer coisa que você quiser.

            – E a atendente da Lanchonete Jaci é bem gostosa, hein? – Hugo acrescentou, dando risada.

            Enquanto mais Carmen Lúcia ficava perto deles, mais tinha vontade de socar Felipe e Hugo. Ela queira tanto que Arlete percebesse que os amigos não eram boa companhia…

            Mas Arlete continuava sorrindo. E logo Carmen Lúcia percebeu que não era porque ela achava Felipe e Hugo legais e, sim, porque Arlete era gentil com todo mundo.

            Bola pigarreou, mexendo-se desconfortável.

            – Quê? – Hugo insistiu. – Você sabe que a Ritinha é gostosa.

            – A Rita te faria em pedaços se te ouvisse falar isso – Bola, nada satisfeito, continuou. – Ela é parte das Icamiabas. E muito mais velha do que você.

            Hugo estalou a língua, mas não insistiu.

            – De qualquer jeito, – Felipe interrompeu os dois, olhando de Bola para Hugo, e então para Arlete: – Eu poderia te mostrar a Ponte depois.

            – Nossa, seria ótimo. Eu não comprei nada do meu material… – Ela coçou a cabeça. – E os uniformes? Todos vocês estão usando, mas vi nenhum aluno do primeiro ano usando. E eu não me lembro de ter visto nada sobre uniformes na lista de materiais para comprar.

            Nisso Carmen Lúcia tinha que concordar com ela. Não comprara nada também, mas não havia se perguntado sobre os uniformes ainda.

            – Vocês vão ganhar os uniformes – Felipe foi rápido em dizer. – Não se preocupem com isso. Mas eu posso lhes mostrar onde comprar todo o resto.

            Felizmente, e antes que Carmen Lúcia pudesse demonstrar sua raiva, o El Dorado e Castelobruxo se tornaram visíveis. Suspiros de “uau” puderem ser ouvidos de todas as canoas. Mesmo os alunos mais velhos pareciam maravilhados, como se as construções tivessem se tornado mais impressionantes de um ano para o outro.

            Tudo refletia dourado. As casas quadras, a escola em formato de templo. Alguns bruxos sobrevoavam a cidade em vassouras em meio a pássaros exóticos; era possível ver as ruas movimentadas e algumas pessoas mais próximas à margem acenavam para os alunos.

            Agora mais perto, a Ponte Iubárranga parecia ainda mais agitada e viva. Várias barraquinhas vendiam todo tipo de coisa: desde roupas, itens de decoração, até doces. Havia também construções: com sua visão aguçada, Carmen Lúcia viu placas indicando papelarias, farmácias, restaurantes.

            E, o mais surpreendente era que tudo parecia feito de ouro.

            A canoas passou por baixo da ponte, com os botos ainda as acompanhando. Carmen Lúcia então avistou uma espécie de cais, onde as canoas começaram a parar e os alunos a descer.

            Uma mulher de meia-idade de pele escura segurava sua varinha enquanto uma pena flutuante escrevia em um pergaminho ao seu lado. Ela usava óculos de meia-lua, e conversava com os alunos do primeiro ano, separando-os dos demais. Um homem branco, baixo e completamente careca, porém com um grande bigode grisalho, acompanhava-a com sua barriga tão grande que por algumas vezes Carmen Lúcia temeu que ele empurrasse um aluno na água.

            – Aqueles são a Dona Jacinta e o Nestor. Ela é professora de magizoologia e vice-diretora. – Felipe apontou. – Ele é o professor de biomagia para o primeiro ano e herbologia para os outros.

            Não demorou muito para que a canoa deles parasse também. Os alunos do sétimo ano descerem primeiro, e a irmã de Hugo acenou discretamente para eles antes de se afastar.

            Felipe desceu logo depois, estendendo a mão para ajudar Arlete. Porém, quando fez o mesmo com Carmen Lúcia, a garota recusou a ajuda.

            – Como você quiser… – ele ironizou enquanto Hugo e Bola saiam do banco de trás.

            – Um grande prazer conhecer vocês, garotas – Hugo disse, dando um sorriso debochado. – Vemos vocês por aí.

            – E não se esqueçam de nos avisar quanto forem comprar o material! – Felipe disse, enquanto os três se afastavam.

            Carmen Lúcia cruzara os braços. Como se ela fosse mesmo precisar da ajuda deles…

            Arlete continuava animada.

            – Caramba, olha que lugar bonito! – exclamou, olhando para cima, para onde estava Castelobruxo.

            Ela estava certa. Dali era possível ver as três pirâmides que combinam a escola: a do meio, grande, imponente e dourada; as outras duas seguindo retas por vários andares antes de um andar menor e com escadas externas que levavam até esse último andar.

            E havia mata por todo lado, fazendo o verde e o dourado se misturem de um jeito mágico.

            Era inegável que a quantidade de magia presente ali era imensa.

            – Ei! Garotas! Alunos do primeiro ano por aí!

            Carmen Lúcia e Arlete olharam ao mesmo tempo. Dona Jacinta acenava para elas. Já havia vários alunos do primeiro perto dela, a maioria parecendo fascinada e confusa em doses iguais. Ela acenou para Nestor, que usou de sua varinha para ampliar a voz.

            – Vocês aqui me sigam, por favor. A outra metade fique com a Jacinta. Venham, por favor…

            Todos os alunos mais próximos seguiram Nestor por uma escada em direção a escola; Arlete e Carmen Lúcia estavam prestar a fazer o mesmo, mas Dona Jacinta as impediu.

            – Vocês duas ficam comigo. Vou reunir a outra metade e vamos. – Ela olhou para as garota por cima dos óculos. – Nomes?

            – Arlete Guimarães.

            – Carmen Lúcia Acheu.

            – Acheu, você disse? – Dona Jacinta prestou mais atenção à garota, ajeitando os óculos no rosto. – A loba guará?

            A garota assentiu, sem saber bem se Dona Jacinta considerava isso bom ou ruim.

            – Sua avó escreveu para mim. Estava preocupada com você, mas eu acho que vai se sair perfeitamente bem, não é? – a mulher esboçou um sorriso sem dentes, o que não deixou Carmen Lúcia mais tranquila.

            Porém, diferente de quando estava perto de Felipe, o desconforto de Carmen Lúcia não derivava de sua impressão sobre Dona Jacinta, mas sim porque temeu desapontá-la. Olhando apenas para seu rosto e lendo suas emoções, Carmen Lúcia sabia que a mulher estava contente em tê-la como aluna e que esperava grandes feitos dela.

            – Eu sou a professora Jacinta Montenegro. Sou vice-diretora e professora de magizoologia. Infelizmente, esse ano não eu darei aula para o primeiro ano, mas você pode me procurar em minha sala se precisar de qualquer coisa, Carmen. – Ela olhou para Arlete, que também prestava atenção: – Na verdade, meu convite se estende a qualquer aluno com problemas. Minha sala sempre está aberta.

            Arlete sorriu, falando sobre o quanto estava feliz em estar ali.

            – Fico contente em ouvir isso. Espero que conserve essa energia para as aulas – Aumentou então a voz, para que todos pudessem a ouvir: – Alunos do primeiro ano, por aqui, por favor! Alunos do primeiro ano! Alumnos del primer año, por favor!

            E ela ainda disse alguma coisa em uma língua estrangeira que nem Arlete nem Carmen Lúcia conseguiu entender.

            Enquanto a professora reunia os alunos e sua caneta mágica anotava os nomes de todos, Carmen Lúcia olhou para o rio, vendo as canoas desocupadas tomando velocidade mais uma vez e disparando rio abaixo.

            – Pra onde você acha que as canoas vão? – ela perguntou para Arlete.

            Arlete franziu a testa, olhando na mesma direção que Carmen Lúcia.

            – Não tenho certeza… De volta para o Navio Sem Parada, talvez? – Ela apertou os olhos. – O que é aquilo?

            Nem bem Arlete terminara de falar e Carmen Lúcia percebeu que havia algo estranho. Seus olhos se transformaram em dourados, forçando a visão, temendo não estar vendo direito.

            Mas estava. Ali, bem diante de seus olhos, os botos cor de rosa de antes estavam se transformando em humanos: três garotos e uma garota de várias idades, a maioria com o uniforme de Castelobruxo, correndo para se enturmar com os outros.

            O único deles que não usava o uniforme parou próximo aos outros alunos do primeiro ano.

            – Não acredito que eu vi isso! Vem – Arlete chamou. – Vamos falar com ele.

            E, antes que Carmen Lúcia pudesse protestar, a garota a puxou para perto do estranho.

            Esse, pelo menos, parecia legal. Ele era mais alto do que as duas, de cabelos castanhos batendo nos ombros e olhos cinzentos. Seu nariz era arrebitado e suas orelhas levemente projetadas. Ele sorria de canto de boca, como se não pudesse evitar, e trocava o peso do corpo de um pé para o outro, como se não pudesse ficar parado.

            – Oi, – Arlete cumprimento, sorrindo também. – Tudo bem?

            Ele demorou um momento para perceber que falavam com ele. Porém Arlete logo tratou de fazer as apresentações, indicando Carmen Lúcia também.

            – Meu nome é Douglas. – Ele olhou dos rostos de Arlete para Carmen Lúcia, e pareceu desapontado: – Dorado. Douglas Dorado.

            Se sua intenção era ser reconhecido, falhou. Não fez a menor diferença para nenhuma das duas.

            – Como é que você faz pra se transformar em um boto? – Arlete continuou.

            Carmen Lúcia cutucou Arlete discretamente. Quis lhe dizer que não era muito educado perguntar como alguém conseguia se transformar, mas não sabia como. Pelo menos, se a pergunta tivesse sido dirigida a ela, ela se sentiria um pouco desconfortável.

            – Hum… – De repente Douglas pareceu um pouco confuso. Ele piscou várias vezes e, ao invés de responder a pergunta de Arlete, fez outra pergunta: – De onde vocês são?

            Apesar de a pergunta soar mais como “De que planeta vocês são?”, Arlete a respondeu casualmente:

            – Eu sou do Paraná; a Carmen é nordestina. – Ela o encarou. Como Douglas não demostrou reação, Arlete acrescentou: – Meus pais são brichotes, quando recebi a carta…

            – Ah! Isso explica muito. – Ele a interrompeu, sorrindo como se o mundo tivesse voltado a fazer sentido.

            Nesse momento, Carmen Lúcia não se controlou. Arlete podia ser legal com todo mundo, mas ela não era.

            – Algum problema com isso? – perguntou, empinando o queixo para parecer mais alta.

            Douglas levantou as mãos, afastando um passo.

            – Calma! Não, sem problema. É só que eu sou um Dorado, a maioria dos bruxos conhece os Dorado.

            – Que tem de tão especial na sua preciosa família? – Carmen Lúcia continuou. Sentiu a mão de Arlete em seu ombro.

            – Me desculpe – a mais baixa forçou um riso. – Minha amiga está um pouco nervosa…

            – Ah, não se preocupe. – Ele sorriu. Mas, diferente do de Arlete, seu sorriso era sincero. Como se estivesse apenas aproveitando o momento: – Nós estamos no El Dorado, certo? Digamos que os Dorado foram a primeira família a morar aqui. Ninguém sabe direito se foi a cidade que recebeu o nome primeiro ou nossa família. E, encaixando sua pergunta – Douglas acrescentou, olhando para Arlete: – Esse é um dos motivos para eu conseguir me transformar em boto. Os Dorado são a única família de metamorfomagos da América do Sul. Claro, nem todos são metamorfomagos, mas a maioria é.

            – Entendi – Arlete olhava para Douglas como que encantada – Quer dizer que consegue se transformar no que quiser?

            – Basicamente.

            – Igual à Carmen.

            – Igual à…? Espera, o quê?

            Douglas parecia sinceramente confuso. Olhava de uma para a outra, esperando uma resposta que fizesse sentido. Carmen Lúcia sorriu, achando graça na confusão do outro.

            Arlete não se deixou abalar:

            – É. Ela é uma lobisomem. Faz pra ele ver.

            Normalmente Carmen Lúcia não gostava muito de ficar exibindo seus poderes, porém não hesitou desta vez. Alongou o nariz em um focinho.

            Arlete parecia impressionada; Douglas fez uma expressão engraçada, como se estivesse impressionado também, mas fingindo que não.

            Sem dizer nada, ele olhou bem para Carmen Lúcia por um momento antes de transformar o nariz também.

            Foi a vez de Carmen Lúcia ficar surpresa. Por uma vida inteira se orgulhara dos poderes lupinos, acreditando que era um poder restrito ao nascimento; e ali estava um desconhecido fazendo seu nariz ficar exatamente igual ao focinho dela.

             Transformou as orelhas também.

            – Legal. –Douglas cruzou os braços, sorrindo. Ele inclinou a cabeça para ver as orelhas de Carmen Lúcia melhor.

            Quando voltou a ficar ereto, suas orelhas eram iguais as dela.

            Ambos sorriam. Carmen Lúcia estava prestes a transformar os olhos também, quando Dona Jacinta se aproximou, fazendo com que eles voltassem as formas naturais.

            – Crianças, por favor, não desperdicem seus talentos… E, Dorado, preciso do seu primeiro nome.

            – Douglas – o garoto olhou para Arlete e Carmen Lúcia, como se dissesse “Não disse que os Dorado eram famosos?”.

            Carmen Lúcia rolou os olhos.

            – Alunos do primeiro ano! – Dona Jacinta exclamou, chamando a atenção de todos. – Por favor, me sigam. Vou lhes guiar para Castelobruxo!

            Ela ainda repetiu a mesma frase em espanhol e em outra língua desconhecida. E, quando ela e sua caneta voadora começaram a andar, todos a seguiram.

            – Você mora aqui no El Dorado? – Arlete perguntou para Douglas, agora que a disputa estava encerrada.

            – Moro. – Mas ele parecia muito concentrado em Arlete. Olhava ao redor, procurando alguma coisa. – Ei, vocês não estão vendo um cara negro, cabelo espetado, de óculos, mais baixo que eu…

            – Não. – Carmen Lúcia respondeu, olhando ao redor.

            – Ah, mas eu tenho certeza de que a gente vai achar ele… É seu amigo? – Arlete acresceu.

            – É… – Douglas continuava olhando. – Ele já devia estar aqui…

            Eles subiram as escadas, indo parar direto em frente à escola. Castelobruxo era mesmo impressionante…

            – Uau… – Arlete suspirou.

            – Se isso te impressiona, espere até ver as criaturas mágicas ou os jogos de trancabola. – Douglas comentou, sorrindo enquanto olhava para o mesmo lugar que a garota.

            Os alunos mais velhos entravam pela porta principal, porém Dona Jacinta liderou os primeiranistas por uma porta lateral. Eles caíram em um corredor longo, porém logo entraram em sala com porta de madeira.

            Foi necessário se acotovelar para conseguirem entrar. Todos estavam tão animados que deixavam a leitura de emoções de Carmen Lúcia sensível. E, apesar de contente também, ela sentia a loba se tornando irritadiça.

            – Alunos do primeiro ano, um momento de sua atenção! – a voz de Dona Jacinta magicamente ampliada ecoou pela sala lotada. A maioria estava conversando, mas todos se calaram rapidamente. – Meu nome é Jacinta Montenegro, e eu sou a vice-diretora de Castelobruxo. Nós aqui de Castelobruxo desejamos que todos tenham ótimos anos na escola e esperamos poder ajudar em qualquer coisa. Mas, antes de vocês irem para o Salão Principal desfrutar do jantar com os outros alunos, eu gostaria de dar os avisos iniciais.

            “Como todos já devem ter notado, Castelobruxo é uma escola multilinguística. Nós recebemos alunos falantes de português, espanhol, francês, holandês, inglês, guarani, quíchua, aimará, bororo, araucano, mapudungun, italiano, alemão e diversas outras línguas e idiomas. Para resolver o conflito, existe um feitiço especial que é sugerido que todos os alunos façam de manhã. Vocês aprenderão mais durante as aulas de Feitiços depois de terem feito suas varinhas. Dentro da Pirâmide Principal, como a maioria deve ter notado, o feitiço é renovado todos os dias pela nossa diretora, Araci Rudá, o que nos permite entender a todos. Porém na parte de fora e nos dormitórios é necessário que vocês mesmos façam o feitiço.”

            “O que nos leva a fabricação das varinhas. Vocês terão aula de Duelos e Varinhas no primeiro dia de aula, não se preocupem, e então o professor Sergio será capaz de explicar melhor do que eu.”

            “Suas malas serão entregues em seus dormitórios junto com seu cronograma de aulas logo depois do jantar. Para os que optaram por não ficar nos dormitórios, uma harpia irá entregar seu cronograma pela manhã.”

            “Vocês também devem estar se perguntando sobre seus uniformes. Por favor, não se assustem, pois assim que entrarmos no Salão Principal suas roupas serão substituídas pelos uniformes verdes. Vocês encontrarão outros dois conjuntos em suas malas junto com a roupa que estão vestindo agora. Se desejarem, também poderão comprar mais falando diretamente comigo no intervalo das aulas.”

            “Alguma pergunta?”

            Carmen Lúcia não esperava que houvesse qualquer uma. Nas poucas aulas que ela frequentara em Carolina, pelo menos, nunca havia nenhum pergunta. Era quase um consenso geral entre os alunos que era desnecessário estender qualquer assunto com um professor.

            Mas uma mão cortou o ar ao seu lado. Arlete olhava decidida para Dona Jacinta.

            – Sim – A professora apontou para a garota, olhando por sobre os óculos com satisfação.

            – Qual a senha do Wi-Fi?

            Arlete nem hesitou. O silêncio se manteve por alguns segundos.

            Dona Jacinta pareceu não saber como reagir por um momento.

            Alguém soltou uma risada no fundo da classe.

            – Aparelhos brichotes não funcionam em Castelobruxo – Dona Jacinta disse, com um sorriso gentil. – Sinto muito, querida.

            Foi só então que Arlete pareceu completamente indignada. Ela olhou para Carmen Lúcia, em total estado do choque.

            – Dá pra acreditar? – ela cochichou. – Como é que eles vivem sem internet?

            – Como brichotes vivem sem magia? – Douglas cochichou de volta enquanto Carmen Lúcia sorria e apontava para Dona Jacinta, chamando a atenção dos dois para a professora.

            – Se não há mais perguntas, é melhor irmos para o Salão Principal. Vocês devem estar com fome.

            Dona Jacinta saiu primeiro, novamente com os vários alunos atrás de si. Eles caminharam conversando aos sussurros até o Salão Principal.

            Mais tarde, sempre que Carmen Lúcia se lembrasse da sensação de entrar pela primeira vez no Salão Principal, ela se sentiria arrepiada. Era tudo tão bonito, tão incrível…

            Havia seis mesas longas, onde a maioria dos alunos já estava sentada enquanto a outra metade conversava e passeava pelo salão. Uma sétima mesa se encontrava no fundo, onde os professores estavam sentados. Tudo era feito por variações de dourado e havia luz por todo lado. Em cada canto da sala uma árvore diferente crescia: uma delas era enorme e verde e continuava mesmo depois do teto; outra estava cheia de frutos azuis que Carmen Lúcia nunca vira antes; na terceira, cresciam flores de todas as cores possíveis, tornando-a um grande arco-íris; e a última servia de lar para harpias imensas, aves menores, preguiças, micos, e outra dezena de seres de todos os tipos.

            Talvez, porém, o teto fosse o mais impressionante. Em um formato curvo, era composto por uma mistura de esculturas e mosaicos de ouro e desenhos de anjos e figuras imponentes.

            Carmen Lúcia estava tão concentrada em absorver tudo daquele enorme e magnifico salão que nem lembrou que Dona Jacinta lhes avisara que assim que entrassem no Salão Principal suas roupas mudariam.

            De repente sentiu seu corpo inteiro ficando quente. Olhou para baixo e viu que era envolta em fumaça verde.

            E então estava usando o uniforme completo: a camiseta sem manga, a calça larga, a bota marrom.

            Carmen Lúcia não sabia que o uniforme era tão confortável até estar o usando. Imaginou que sua transformação seria ainda mais fácil usando aquelas roupas.

            Olhou para Arlete.

            – Estamos parecendo Peter Pan! – Ela exclamou contente.

            – Quem? – Douglas perguntou, também usando o uniforme.

            Carmen Lúcia apenas riu enquanto Arlete tentava explicar quem era Peter Pan.

            – Não faz sentido. Como ele iria voar sem uma vassoura?

            A lobisomem, porém, não prestou atenção. Ainda estava encantada observando o salão. Era tão mais bonito do que as descrições da avó… Não era de se admirar que vó Carminha sempre lhe dissera que passara os melhores anos de sua vida ali.

            Se tudo fosse tão maravilhoso quanto aquele salão…

            – Alunos – A voz de Dona Jacinta soou. Carmen Lúcia nem percebera que já se dirigira ao tablado perto da mesa dos professores. – Escolham seus lugares, por favor. O jantar será servido.

            – Carmen, vem logo! – Arlete acenou, chamando a atenção da amiga. – Achei um lugar para nós três.

            Ela não sabia dizer bem porque Arlete estava incluindo Douglas também. Afinal, Douglas morava no El Dorado, devia ter seus próprios amigos, mas pareceu tão natural que ele andasse com elas que Carmen Lúcia não protestou.

            – Eu vou sentar do outro lado – Douglas sugeriu enquanto sumia de vista, contornando a mesa.

            Arlete olhou para Carmen Lúcia enquanto as duas se sentavam.

            – Dá pra acreditar que estamos aqui? Olha só tudo isso… – Ela olhou para cima, olhou para as árvores, para os alunos. – Só tem um problema. Por que não tem Wi-Fi?

            Carmen Lúcia não conseguiu disfarçar o riso.

            – Teremos tanta magia para fazer que vamos nos esquecer de Wi-Fi, Arlete.

            – Tsc. Talvez você esteja certa… É só que não dá pra acreditar que eles tenham simplesmente ignorado uma invenção são fantástica quanto a internet!

            Douglas finalmente apareceu na frente delas, sentando-se. Todos os alunos já faziam o mesmo e as conversas começavam a diminuir.

            – Silêncio, por favor – Dona Jacinta pediu de novo, o que finalmente fez todos se calar. – Bem-vindos, alunos, a mais um ano em Castelobruxo, a escola de magia da América do Sul. Nossa diretora, Araci Rudá, gostaria de dizer algumas palavras.

            A diretora estava sentada bem no meio da mesa dos professores. Dona de traços indígenas e cabelos brancos escorridos, ela parecia ainda mais enrugada e pequena que vó Carminha. Além disso, seus olhos eram completamente brancos: a diretora de cega.

            Parecia que Araci Rudá já vivera mil anos e centenas de vidas.

            – Muito obrigada, professora Jacinta, pelas palavras encantadoras – Sua voz era rouca e profunda, como se estivesse assim pela falta de uso. Ela se levantou com certa dificuldade. – É um prazer recebê-los em Castelobruxo novamente. Aos alunos antigos, espero que esse ano se prove melhor do que o anterior; aos novos rostos, minhas sinceras esperanças de que encontrem aqui amigos para a vida todos e momentos dos quais poderão lembrar para a vida toda. Bem-vindos! – Ela falou mais alto, esticando as mãos e fazendo todas as mesas se encherem de comida.

            Carmen Lúcia olhou para toda a comida servida. Havia ainda mais variações do que a comida do Navio Sem Parada. Serviu-se do melhor arroz e feijão que já comera, acompanhados de escondidinho de franjo e um peixe delicioso.

            Ela ainda estava comendo quando reparou nas pequenas criaturas peludas andando no meio das mesas.

            – Que são eles? – perguntou para ninguém em particular.

            – Não tenho certeza… – Arlete então olhou para Douglas, que engoliu a comida que tinha na boca:

            – São Caiporas. Eles protegem a escola e aparecem mais durante a noite. São inofensivos a menos que se sintam ameaçados.

            Carmen Lúcia continuou olhando para as criaturas. Era difícil acreditar que seres são pequenos quanto aqueles, com o corpo cheio de pelos marrons grossos e curtos e de cabelo vermelho espetado, fossem capaz de fazer grande estrago. Eles davam cambalhotas no ar, rindo e puxando a roupa de um aluno ou outro.

            – Sei que eles parecem pequenos – Douglas disse, como se tivesse lido a mente dela. – Mas você não vai saber o quanto são poderosos até ter enfrentado um.

            A lobisomem achou engraçado o jeito que o outro falava. Parecia até que ele já enfrentara um deles…

            Ela não disse nada, porém. Com o tempo descobriria mais sobre Douglas.

            – Vocês não viram aquele meu amigo, não? – ele perguntou, esticando o pescoço para olhar por sobre as cabeças dos outros. – Ele não devia estar tão atrasado…

            As garotas negaram. Arlete ainda emendou uma pergunta sobre o amigo de Douglas, parecendo se preocupar também, porém Carmen Lúcia estava mais concentrada em devorar sua comida.

            E, enquanto comia, percebeu um sentimento estranho. Era a primeira vez que se sentia segura sobre Castelobruxo; a primeira vez que sentia como se realmente pertencesse ao lugar.

            Sorriu. Talvez vó Carminha estivesse certa.

            E ainda havia tanto a descobrir sobre a escola…


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Notas finais do capítulo

Na verdade, eu não sei se os metamorfomagos podem se transformar assim no que eles quiserem, já que J.K. nunca abordou o assunto muito profundamente, então não sei bem os limites do poder. Em a Ordem da Fênix, Tonks transformar o nariz em um que "parece um focinho de porco". No filme, porém, ela transformar o nariz em um focinho de porco e em um bico de pato. Assim, eu vou pelo lado que a metamorfomagia permite ao bruxo modificar o corpo à vontade, e não que ele pode apenas modificar sua idade, sexo e as cores de cabelo e pele.
Também é bom destacar a diferença entre um metamorfomago e um animago. Os metamorfomagos nascem com essa habilidade e é impossível se aprender. Já para se tornar um animago é um processo muito mais complexo e o bruxo pode assumir a forma de um único animal.

Espero que tenham gostado e vejo vocês nos comentários! ;)



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