Castelobruxo: Anos Dourados escrita por Carolina J Martins


Capítulo 3
Capítulo 3 - O Navio Sem Parada


Notas iniciais do capítulo

Bom, mais um capítulo :D Espero que gostem! Tenho a intenção de postar capítulos novos toda quinta e segunda-feira. Parece bom?



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Carmen Lúcia respirou fundo. Podia sentir o cheiro das plantas da Chapada das Mesas, ouvia um tamanduá-bandeira andando presunçosamente não muito distante. Liberdade, poder, harmonia. Estava perfeitamente conectada com a mata.

            Abriu os olhos de repente, virando-se para trás.

            – Vai dar tudo certo, pequena! – A vó Carminha falou, sorrindo animada.

            Mas Carmen Lúcia tinha suas dúvidas.

            Desde que descobrira que era uma bruxa, três semanas antes, as coisas estavam um pouco estranhas.

            Logo a notícia se espalhara, e todos da família ficaram sabendo. Muitos primos e tios vieram lhe perguntar como se sentia, como nunca soubera, se estava empolgada. Nicolas, Danilo e Heloísa ficaram em seu pé o tempo todo, perguntando se não podia fazer qualquer magia que fosse. Também haviam dito que isso justificava o porquê de seus sentidos e poderes serem mais fortes do que os deles.

            Depois, mesmo quando cada um já havia voltado para sua casa, ela ainda tivera que conviver com os pais, Emília e vó Carminha.

            Principalmente vó Carminha.

            A senhora estava radiante. Contava histórias o tempo todo sobre Castelobruxo, garantia-lhe que iria adorar tudo e que logo estariam praticando magia juntas. Mesmo sabendo que a avó tinha as melhores das intenções, ela não podia deixar de se sentir incomodada. Ainda estava se adaptando a ideia. Não sabia bem o que achava sobre sua parte bruxa.

            Sempre conhecera e amara a parte lobisomem, que lhe permitia ir além do que um brichote ou um bruxo poderiam ir. Porém a parte bruxa era novidade…

            Ela nem sabia que isso era possível. Contudo logo descobriu que não era única que compartilhava dos poderes. Mesmo que não fosse frequente, outros, quase todos já mortos, tiveram a sorte de nascer tanto com o sangue lobisomem quanto o bruxo. Vô Geraldo até falou sobre um sobrinho seu em quinto grau do clã Navarrus que tinha os mesmos poderes. 

            Mas Carmen Lúcia estava nervosa.

            – Tu tem tudo contigo? – o pai perguntou, dando alguns passos para frente como se fosse abraçar a menina, porém se conteve antes.

            – Claro que ela tem, Gabriel! Deixe a pequena em paz! Vai dar tudo certo – A mãe, bonita, alta e morena, ria do marido. – Castelobruxo é perfeitamente seguro, certo? – ela se voltou para a sogra.

            Vó Carminha balançou a cabeça.

            – Não existe lugar mais seguro para bruxos em idade escolar. Eles têm todos os animais e plantas imagináveis por lá, um campo esportivo enorme, dormitórios com capacidade para até duas mil pessoas…

            – Mas ela não comprou nada do material – O pai de Carmen Lúcia interrompeu, e sua esposa rolou os olhos. Já era pelo menos a terceira vez que ele voltava ao assunto só naquele dia.

            – Besteira. – Vó Carminha falou. – Ela compra tudo lá. O El Dorado é o melhor lugar pra se comprar qualquer coisa e é do lado de Castelobruxo. Aqui o lugar mais perto é a Galeria Subterrânea, na Bahia, mas não compensa. Muito longe, muito caro. El Dorado é melhor. – Sentenciou por fim.

            – E a varinha? Bruxos não tem que ter varinhas?

            – Bruxos do primeiro ano fazem suas varinhas. Cada varinha é diferente para seu cada bruxo. Já disse que está tudo bem, filho, não se preocupe!

            Carmen Lúcia não entendia ainda muito bem sobre o que vó Carminha estava falando e algumas vezes se irritava quando a família começava a falar como se ela não estivesse ali. Suspirou alto, tentando chamar atenção.

            – Ah, pequena – Vó Carminha se virou. – Vai ficar tudo bem. Tu verá. Tu vai adorar Castelobruxo. E pode sempre mandar nos mandar uma harpia.

            A vó falou com naturalidade, mas “mandar uma harpia” ainda soava estranho aos ouvidos de Carmen Lúcia. Mesmo convivendo todos esses anos com a avó bruxa nunca pensara profundamente sobre o universo bruxo; nunca recebera harpias em sua casa.

            Isso até a avó tocar um apito silencioso pouco depois de contar a Carmen Lúcia que ela era uma bruxa, fazendo um pássaro gigante, uma harpia, pousar na janela. Em um primeiro momento, ela ficara assustada. Era um ser impressionante. Tinha a metade do tamanho da menina, penas brancas e escuras, e penachos arrepiados na cabeça. Depois de passado o choque, ela sentiu o lado lobisomem à tona e, em seu íntimo, quis atacar a ave.

            Não o fizera. Apenas ficou olhando assombrada enquanto vó Carminha marcava no pergaminho a opção de que Carmen Lúcia aceitava o convite à escola e que ficaria em seus dormitórios. Confiou tudo à ave, dizendo-lhe que entregasse a carta a Castelobruxo. Manteve consigo apenas a lista de materiais.

            Lista que agora estava dentro da mala que Carmen Lúcia segurava. Ela não sabia direito que tipo de loja vendia caldeirões de estanho ou livros como Biomagia Básica: A Vida em Diferentes Continente, mas talvez fosse engraçado descobrir.

            Não muito depois de vó Carminha ter enviado a carta de volta, outra harpia apareceu, trazendo mais uma carta. E o conteúdo dessa era ainda mais estranho. Pedia para que Carmen Lúcia se dirigisse ao ipê amarelo na Chapada das Mesas mais próximo à sua casa, de onde ela devia pegar o Navio Sem Parada, no dia trinta de janeiro, às cinco da tarde. Por mais curioso que afirmação soasse, já que não havia nem sinal de água por ali, vó Carminha insistiu que estava certo.

            “Tudo o que tu tem que fazer é passar pela árvore. Tu verá”.

            Mesmo agora, no meio da mata, segurando uma mala quase vazia, a menina não tinha certeza.

            – Quero ir com a Lulu. – Emília se pronunciou de repente, olhando para os pais e para a avó.

            – Ah, pequena, não pode. – Vó Carminha disse, sorrindo com afeição. – Castelobruxo é só para bruxos, e a Carmen é uma bruxa…

            – Quero ser bruxa também!

            – Talvez tu seja. – Vó Carminha parecia sonhadora, mas o pai logo foi a interrompendo.

            – Tu vai ficar com a gente, Lia. Ainda tem muito que aprender sobre os lobisomens guará, não precisa ser bruxa.

            Vendo a expressão infeliz da irmã, Carmen Lúcia se aproximou, pegando a mais nova no colo, abraçando-a com força.

            – Vai ficar tudo bem. Logo eu vou voltar, você vai ficar bem.

            Emília forçou um sorriso e Carmen Lúcia a colocou no chão.

Eu te amo.

A mais velha olhou para Emília. Certamente era sua voz, porém seus lábios não haviam se mexido. Era sua primeira transmissão mental.

Quis pegá-la de novo no colo de novo, parabenizá-la, dizer o quanto estava orgulhosa, porém, antes que tivesse tempo, vó Carminha gritou:

            – Agora! Ou vai perder o Navio!

            Carmen Lúcia se virou de repente, olhando para o ipê amarelo que emitia uma forte luz verde.

            Usou as costas da mão para proteger o rosto.

            – Agora! – Vó Carminha gritou de novo. – Não perca tempo! Atravesse a árvore!

            – Atravessar a árvore…? – a menina murmurou, confusa.

            – Sim! – Vó Carminha gritou de novo. – Antes que o brilho se apague. Vá!

            Mesmo confusa, Carmen Lúcia obedeceu. Apertou a alça da mala com força, arrastando-a e correndo em direção à árvore cujo brilho quase a cegava.

             Pulou em direção à luz verde, certa de que bateria no ipê, porém logo percebeu que passara direto e tudo ao seu redor era dominado por luz.

Então estava caindo.

            O chão acabou e o brilho foi diminuindo até que sumiu por completo. Segurou-se à mala, a única coisa sólida ao seu redor.

            O vento zunia em seus ouvidos, o céu passava rápido. Estava caindo…

            Por fim bateu com força em algo firme. Parou de gritar, mesmo sem perceber que estivera gritando. Olhou ao redor.

            Onde estava?

            Pelo menos sabia onde não estava. Definitivamente não estava mais no meio da floresta. O chão era feito de madeira, não havia paredes e o céu passava rápido acima de si.

            Estava em movimento.

            Levando-se, sentindo-se nauseada. O chão abaixo de si não era tão firme quanto pensara no começo, podia sentir tudo balançando.

            Foi quando percebeu que estava no teto de um navio. Uma pequena murada circulava área e havia um buraco no chão, de onde uma escada levava ao andar de baixo.

            Lutando para manter o equilíbrio, aproximou-se da beirada, tentando ver o que havia lá embaixo.

            Porém não foi muito longe. Ela ainda estava dando o primeiro passo quando uma garota caiu elegantemente ao seu lado.

            Diferente do que ela mesma devia ter feito, a desconhecida pousou tão suavemente no teto do navio que era como se fizesse isso por uma vida toda. Tinha o rosto redondo e os olhos puxados, de pele escura. Sorriu ao ver Carmen Lúcia. Devia ter pelo menos quinze anos.

            – Hola, ¿ que tal? ¿Estás perdida?

            A outra garota sorria, porém Carmen Lúcia não sabia bem o que fazer. Apenas continuou olhando para ela, estática.

            – Este debe ser su primer año. Me llamo Ana María. – Ela olhou para cima enquanto mais dois garotos caíam ao lado delas, parecendo satisfeitos de terem caído de pé. – Es mejor que entremos antes de que alguien vaya a caer sobre nuestras cabezas.

            Tudo o que Carmen Lúcia pode fazer foi assentir. A avó havia lhe dito que em Castelobruxo haviam alunos de toda a América do Sul, porém seus ouvidos estranhavam o espanhol de Ana María.

            Antes sem dizer uma palavra, Carmen Lúcia pegou sua mala e seguiu Ana María escada à baixo.

            A escada terminava em um corredor longo que se estendida para os dois lados, lotado de alunos. Eles andavam e conversavam, a maioria usando roupas comuns, porém alguns já usavam a blusa sem manga e a calça folgada verdes do uniforme.

            Ela também reparou na grande diversidade de pessoas ali presentes: loiros, morenos, negros, indígenas, pardos, asiáticos, ruivos, altos, baixos, falantes de espanhol, português e até algumas línguas que ela não conhecia.

            Mas eles tinham algo em comum: todos estavam contentes.

            Carmen Lúcia achou tudo impressionante.

            Era como se houvesse uma áurea tão positiva que deixava a menina animada. Não sabia se era magia ou porque ela, graças aos seus poderes lupinos, tinha a capacidade de ler as emoções alheias.

            Sorriu.

            – ¡Soso! ¡Lari! ¡Hola, estoy aqui! – Ana María acenou para duas garotas a distancia, ficando na ponta dos pés para vê-las melhor. Então se virou para Carmen Lúcia: – Tú te quedas aqui, ya vuelvo.

            E a outra foi em direção às amigas, deixando Carmen Lúcia para trás.

            Apesar de ter entendido que Ana María queria que ela ficasse onde estava, não foi o que fez. A mais velha parecia entretida com as amigas, e Carmen Lúcia resolveu explorar o navio.

            Começou a andar na direção oposta a de Ana María, arrastando a mala roxa atrás de si.

            Ainda no corredor, um grupo animado de garotas mais velhas conversavam e riam enquanto eram fitadas por dois garotos altos; uma ruiva gordinha abraçada com um menino de cabelo afro falava alto sobre suas férias enquanto andavam; um garoto de óculos ria de uma piada contada por um indígena que falava uma língua estranha; duas meninas admiravam as luzes que um garoto soltava com sua varinha.

            Por todos os lados havia pessoas, e todos pareciam felizes com seus amigos. Por um momento Carmen Lúcia se sentiu um pouco deslocada.

            Viu uma placa verde no teto: Por favor, acomode sua bagagem antes de circular pelo Navio Sem Parada.

            Carmen Lúcia achou estranho. Não sabia a menor ideia de onde devia colocar sua mala, nenhum lugar parece apropriado.

            O nome do navio também era estranho. Ela já o vira na carta que recebera de Castelobruxo, mas então achara que talvez fosse só um nome. Cair em cima do navio sem que esse, de fato, parasse, levou-a a questionar se aquela não era uma verdade.

            Foi quando reparou na  porta de madeira em uma das paredes. Devia ter imaginado que teria. O navio inteiro não podia se resumir àquele corredor.

            Talvez fosse ali onde devia acomodar a bagagem, já que ninguém que pudesse ver carregava qualquer mala.

            Testou a porta e entrou.

            Agora estava em uma sala gigante, com duas janelas de vidro. Havia umas cinquenta cadeiras de acolchoado verde em fileiras, onde pelo menos vinte alunos se sentavam, a maioria conversando, alguns olhando pela janela ou mexendo em suas varinhas.

            Carmen Lúcia olhou para todos, sem saber bem se devia sequer se sentar. Era quase como olhar para um mundo atrás de um vidro, sem realmente fazer parte de nada daquilo.

            Era uma lobisomem. Convivia com lobisomens. Sabia que os bruxos estavam alegres, porém ela não fazia parte dessa alegria.

            E ela provavelmente teria ficado ali parada por mais vários momentos, sem saber bem o que fazer, se não fosse pelo susto que levou logo em seguida.

            – Oi! Você deve ter acabado de chegar, certo? Me desculpe, eu te assustei? Meu nome é Arlete.

            Carmen Lúcia estava um pouco confusa. Não entendia como não percebera a garota se aproximando por trás. Olhou-a melhor. A desconhecida era um pouco mais baixa que ela, dona de cabelos castanho-claros bagunçados que iam até os ombros. Seus olhos eram de um castanho comum e usava uma calça jeans e uma blusa cinzenta nada especiais. Em uma das mãos estava uma revista.

            Parecia estar no primeiro ano, assim como Carmen Lúcia.

E sorria animada, estendendo-lhe uma mão.

            A lobisomem lhe deu a mão, perguntando-se mentalmente que tipo de nome era Arlete.

            – Eu sou Carmen Lúcia. Prazer. – Forçou um sorriso também, vendo o quanto a menina parecia feliz. – Como sabe que eu acabei de chegar?

            – Sabe, você ainda está com sua mala…

            – Eu não sei bem o que fazer com ela, na verdade – a lobisomem confessou, desviando o olhar.

            – Ah, isso é fácil. – Arlete pareceu satisfeita em saber a resposta, dando um pulo animado. – Vem comigo.

            Carmen Lúcia a seguiu para fora da sala, de volta ao corredor longo. Não sabia bem aonde iam, caminhando lado a lado, mas Arlete parecia animada enquanto falava sem parar:

            – Sabe, esse é meu primeiro ano – ela confirmou as suspeitas iniciais de Carmen Lúcia: – Meus pais são humanos comuns, ou, como vocês chamam, brichotes. Claro que foi uma grande surpresa quando recebi a carta. Um funcionário público bruxo foi explicar tudo para os meus pais. Estou muito animada, sabe? Esse negócio de fazer magia parece incrível!

            Mesmo que Arlete não tivesse dito que estava animada, Carmen Lúcia poderia ter adivinhado sem nem precisar ler suas emoções. A mais baixa irradiava alegria.

            – Sim, parece incrível mesmo… – Carmen Lúcia admitiu, deixando um sorriso sincero escapar.

            – E seus pais? – Arlete continuou – São bruxos?

            – Não, não. – Fez uma pausa, sem saber se devia contar a verdade sobre seus pais. No mundo bruxo, os lobisomens já não eram lá muito bem vistos, por preferirem o isolamento; contar isso para uma filha de brichotes talvez fosse assustador. Por fim, resolveu arriscar: – Eles são lobisomens guará.

            – Lobisomens? – as sobrancelhas de Arlete se juntaram no rosto. – Tipo aqueles que se transformam nas luas-cheias e mordem pessoas por aí? Você também é lobisomem? Eu achei que você parecia legal!

            – Sim e não – Carmen Lúcia riu. – Sim, eu sou uma lobisomem. Mas somos lobisomens guará. Você está nos confundido com os atrus. Eles se transformam nas luas-cheias e mordem pessoas. Não é legal ser um lobisomem atrus, você perde a consciência e mata qualquer um que vir. Os guarás nascem assim. Não se pode transmitir a condição.

            – Ah… – Arlete não estava totalmente convencida. Parara de sorrir e parecia pensativa. – E vocês fazem o que então?

            – Podemos mudar algumas partes do nosso corpo para parecemos com lobos guará.

            – A qualquer momento?

            – Sim.           

            – Você poderia fazer agora? – Agora Arlete parecia mais animada, os olhos castanhos quase brilhando.

            Carmen Lúcia fechou os olhos, considerando qual parte deveria transformar. Então olhou para Arlete, transformando as orelhas.

            Afastou o cabelo, mostrando à outra.

            – Uau! – Ela estava surpresa e animada. Tão animada que Carmen Lúcia temeu que ela fosse começar a bater palmas. – Incrível!

            A lobisomem riu, transformando as orelhas de volta ao estado normal.

            – Posso transformar o resto do corpo também – continuou. – Mas eu ficaria enorme. Melhor não assustar ninguém.

            – Isso é tão completamente legal! – Virou-se então para Carmen Lúcia, agora mais séria, porém ainda sorrindo: – Você acha que vamos aprender a nos transformar assim em Castelobruxo?

            Ela não respondeu. Nunca pensara sobre isso. Seria possível que alguma magia fosse capaz de transformar um bruxo em lobisomem?

            Então se lembrou de vó Carminha. Se fosse possível, ela já teria se transformado, certo?

            Não tinha certeza.

            Mas não precisou responder. Arlete parara no fim do corredor, apontando para a parede amarelada.

            – Chegamos.

            Porém era apenas uma parede. Não havia nada de especial.

            Carmen Lúcia fez uma careta. Se ao menos houvesse outras malas ali…

            Olhou então para Arlete, imaginando se tinha entendido certo.

            – Na… parede?

            Arlete riu. Carmen Lúcia não ria. Seria aquela uma brincadeira?

            – Eu também achei estranho quando cheguei. Mas não pode esquecer que tudo aqui é mágico. Coloque a mala encostada na parede.

            Ainda um pouco descrente, Carmen Lúcia fez o que Arlete dissera.

            No começo não aconteceu nada, porém, alguns segundos depois, diante dos olhos das garotas, a mala simplesmente desapareceu em fumaça e pó verde-brilhantes.

            Carmen Lúcia olhou boquiaberta para Arlete.

            Ela riu.

            – Que foi? Muito legal, não? – Ela olhou para frente rapidamente antes de se dirigir a Carmen Lúcia de novo: – Eu li que é usada a mesma magia que a do pó de flu. – E, enquanto elas faziam o caminho inverso pelo corredor, Arlete continuou: – O pó de flu é mais usado nos países do Norte onde todas as casas têm lareiras. Aqui no Brasil quase ninguém tem… Mas deve ser bem legal também! Você entra na lareira e sai em outro lugar, tipo o Papai Noel!

            Carmen Lúcia sorriu ante a observação. Arlete parecia tão animada, e ela se sentia confortável a ouvindo falar de magia…

            – Espera. – Foi quando o lobisomem percebeu algo que a intrigou: – Se disse que seus pais são brichotes, como é que sabe de todas essas coisas?

            – Eu li sobre tudo isso. – Arlete disse, mostrando-lhe a revista que estava segurando: – Fatos e Curiosidades sobre o Navio sem Parar. Já devo ter lido tudo pelo menos duas vezes… Sabe, você acabou de chegar, mas eu sou do Sul, estou aqui praticamente desde o começo da viagem. Eu até tentei me enturmar, mas a maioria já tem seus grupos de amigos… Eu conversei com uma garota argentina do primeiro ano, mas eu perdi ela no segundo andar e a gente não se encontrou mais…

            – Isso tem mais um de andar? – Carmen Lúcia perguntou, interrompendo Arlete.

            – Claro que sim! – A outra sorria. – Esse é andar mais tranquilo. Devia ver a área do restaurante na hora do almoço…

            Carmen Lúcia não disse nada, mas sua expressão deve ter entregado sua surpresa, pois Arlete riu:

            – Não se espante tanto. Castelobruxo tem capacidade para mais de dois mil alunos, claro que tem mais gente lá pra baixo… Quer que eu te mostre tudo?

            Carmen Lúcia balançou a cabeça, concordando. Agora, sem a mala roxa, sentia-se mais livre e inclinada a andar pelo navio.

            Arlete a guiou até o outro lado do daquele corredor, onde havia outra escada.

            O andar de baixo era ainda maior e estava ainda mais lotado. Abria-se em uma sala grande com passagem para uma área exterior. Carmen Lúcia sugeriu que elas fossem lá, e foi o que fizeram.

            As duas, ainda conversando sobre as dimensões do Navio Sem Parada, pararam perto do parapeito.

            – Bem bonito aqui, não? – Arlete perguntou, olhando para cima. – Eu li que tem uma espécie de bolha protetora envolta do navio, mas não dá pra ver…

            Enquanto Arlete falava, Carmen Lúcia se encostou ao parapeito, olhando para baixo e para as águas, perguntando-se qual rio o navio percorria.

            Para sua surpresa, porém, havia apenas uma água rala lá embaixo, acompanhada por nuvens escuras e, mais embaixo, uma mata densa se estendia.

            – Esse navio tá voando? – ela perguntou assombrada, sentindo as náuseas voltando.

            Talvez tenha dito um pouco alto demais, pois enquanto Arlete parecia um pouco assustada com a declaração repentina, um garoto perto delas lhe dirigiu um olhar estranho.

            – Sim, estamos – Arlete disse depois de passado o susto momentâneo: – Às vezes eu esqueço que você só embarcou agora! Estamos navegando no Rio Voador. Bem sugestivo o nome, não? – e ela soltou uma risada.

            Carmen Lúcia pensou sobre isso. Estava no Rio Voador, dentro de um navio com o nome de sem parada…

            – O navio nunca para mesmo? – perguntou de repente, enquanto a outra inda ria.

            – Não – Arlete foi rápida em responder. – Não para. A ida é mais devagar do que a volta, porque vamos contra a correnteza. O rio começa no norte e vai para o sul. Quando chega no fim ou no começo, o navio simplesmente inverte e continua viagem.

            – E combustível? – Porém, assim que perguntou, Carmen Lúcia soube que era uma pergunta idiota.

            Arlete sorriu de canto de boca.

            – Tem que se acostumar com a ideia da magia, Carmen! Você é uma bruxa! O navio é movido à magia, é claro!

            Ela sorriu também, sabendo que era tolice.

            – Você tem razão. – Usou uma das mãos para coçar a cabeça – É tudo tão novo…

            Arlete riu.

            – Você pelo menos sabia que existia magia. Pra mim foi tudo novo. Minha mãe… – Porém, ao começar a falar da mãe, o sorriso sumiu do rosto de Arlete e sua voz falhou. Carmen Lúcia ficou um pouco preocupada. A garota parecera tão animada até então.

            – Tudo bem? – Se sentiu na obrigação de perguntar.

            Porém Arlete apenas suspirou, apoiando-se no parapeito e olhando para algum lugar ao longe.

            – Nada. – Disse por fim, voltando a olhar para Carmen Lúcia. Ela resolveu não insistir. Mal conhecia Arlete ainda… – Quer conhecer o restaurante?

            Ela balançou a cabeça, deixando que uma mais vez animada Arlete a levasse para o andar de baixo, onde ela lhe apresentou uma nova sala grande, desta vez cheia de mesas e com comida servida no centro.

            Havia todo tipo de comida. Desde maravilhosos morangos, maças da cor de sangue e peras suculentas, passando por bolachas salgadas e pães de todos os formatos até chocolates e doces que davam água na boca só de olhar.

            – Você devia ter visto isso na hora do almoço – Arlete comentara – Nunca comi tão bem na vida. Espero que a comida em Castelobruxo seja tão boa quanto aqui.

            E Carmen Lúcia pudera comprovar que a comida era tão gostosa quanto era bonita. Ela própria se serviu de frutas e pães enquanto Arlete optara por chocolate derretido com morango.

            Elas ainda conversaram um pouco, Carmen Lúcia contando sobre a família lobisomem, as transformações nas diferentes luas e o efeito dos muiraquitãs; Arlete lhe contou segredos e curiosidades sobre o Navio Sem Parada e sobre sua vida brichote no Paraná. Porém não passou despercebido à Carmen Lúcia que Arlete não voltara a falar dos pais.

            Não sabia bem qual era a relação da nova amiga com os pais, mas suponha que não devia ser muito agradável, ou a falante Arlete não teria restringido tanto o assunto.

            Mais ou menos duas horas depois, uma voz magicamente ampliada avisou todos os alunos de que eles estavam navegando por cima de Castelobruxo e que chegara a hora de descer.

            – E nossas malas? – Carmen Lúcia perguntou para Arlete.

            – Não tenho certeza… Acho que elas serão magicamente transportadas para os nossos dormitórios. Não se preocupe. Se tivéssemos que pegar as malas alguém teria avisado ou eu teria lido.

            Não convenceu muito Carmen Lúcia, porém ela resolveu não discutir. Até então Arlete se provara certa em tudo o que falara.

            A lobisomem já estava preparada para o empurra-empurra de todos tentando sair o mais rápido possível quando se lembrou de que o navio nunca parava.

            – Espera – Falou, olhando para Arlete confusa: – O navio não vai parar para descermos.

            – Não – Arlete confirmou.

            – E não tem árvores a bordo.

            – Não.

            – Então como vamos descer? Encostando na parede?

            Arlete riu alto. Carmen Lúcia não pretendera ser tão engraçada.

            – Tô falando sério! – Ela insistiu, um pouco chateada.

            – Eu sei! Por isso é engraçado. Mas é criativo, é verdade. Não. Só tem um jeito de desembarcar do navio. Nós vamos pular.

            – Pular? – Carmen Lúcia repetiu, esperando ter ouvido errado.

            Porém Arlete apenas balançou a cabeça, sem prestar muita atenção. Ela e o resto dos alunos já se dirigiam ao andar inferior.

            Carmen Lúcia os seguiu sem prazer, sem saber bem o que pensar. No intimo estavam os sentimentos de medo e descrença. Seria forçada a pular de um navio voador para dentro de uma escola de magia? E pensar que, naquela manhã, ela ainda estava em casa, protegida de monstros imaginários por suas cobertas…


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Notas finais do capítulo

Espero que não tenha ficado confuso... Finalmente a Carmen Lúcia está indo para Castelobruxo e conheceu a Arlete! Me contem o que acharam da Arlete e sua misteriosa relação com os pais brichotes...
E, por favor, comentem. Nem que seja pra falar que não gostaram ou sugerir alguma mudança! Sem seus comentários sou só uma idiota escrevendo para as paredes...
Obrigada e até a próxima! :D



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