Castelobruxo: Anos Dourados escrita por Carolina J Martins


Capítulo 2
Capítulo 2 - Natureza Dupla


Notas iniciais do capítulo

Como prometido, taí o segundo capítulo :D



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Brigas entre lobisomens guará costumavam ser rápidas e sangrentas. Silas era filho de um dos tios-avôs de Carmen Lúcia, e Ítalo era seu sobrinho em primeiro grau. Em suas formas transformadas, eles rosnavam e latiam, atacando um ao outro, as mandíbulas procurando qualquer lugar exposto. Havia sangue também, e Carmen Lúcia podia sentir o cheiro. Porém, naquela mistura de mordida e garras, ela não tinha certeza sobre quem estava sangrando.

            Apesar de Silas ser seu primo, ele era tão mais velho, que Carmen Lúcia se acostumara a chamá-lo de tio. Ele também era mais experiente e devia ser mais forte, porém Ítalo, ainda na casa dos vinte, conseguia levar uma disputa justa. Talvez os anos cobrassem o preço do tio Silas, tornando-o mais cansado.

            Dos parentes que já estavam ali, ninguém de fato parecia tentado a parar a briga. Tia Lívia, uma das irmãs do avô de Carmen Lúcia, parecia apreensiva e sem fôlego depois de ter corrido para avisar os outros; os gêmeos Laura Regina e Antônio Carlos, não muito mais velhos do que Carmen Lúcia, pareciam divididos entre a empolgação e a preocupação; os primos Marcelino e Lair faziam apostas em voz baixa, e mesmo com a audição apurada, Carmen Lúcia não conseguia entender bem o que diziam; o primo Reinaldo segurava sua filhinha recém-nascida nos braços e tentava acalmá-la; a esposa brichote de Silas e a cunhada estavam lado a lado, ansiosas e segurando as mãos, querendo interromper o marido e o sobrinho, mas sem saber como.

            Quem interferiu, por fim, foi o pai de Carmen Lúcia. Ele se transformou também, saltando no meio dos dois, empurrando cada um para um lado.

            Tio Silas cambaleou; Ítalo caiu no chão.

            Emília apertou a mão de Carmen Lúcia.

            A menina olhou para a irmã. Percebeu que estava assustada. Tentou lhe transmitir calma através dos olhos e do sorriso.

            Vai ficar tudo bem, disse-lhe mentalmente. Papai já cuidou de coisas piores.

            Emília se tornou séria de repente, olhando para frente. Se a irmã não estava com medo, ela também não estaria.

            Carmen Lúcia também voltou a prestar atenção na briga assim que a voz do pai ladrou pelo ambiente.

            – Enlouqueceram? – ele voltara à forma humana, assim como tio Silas e Ítalo. – O que estão fazendo? Perderam a cabeça?

            O homem estava furioso, uma veia em seu pescoço saltando a olhos visíveis. Todos se calaram ao ouvi-lo. Tio Silas, a boca sangrando, abaixara a cabeça como uma criança que fora pega fazendo algo errado; mesmo Ítalo, agora já de pé, diminuíra sua pose arrogante ao mesmo tempo em que tentava estancar um sangramento no braço.

            Depois da morte do vó Elias pouco mais de três anos antes, o pai de Carmen Lúcia se tornara o novo líder do clã. Todos o respeitavam, ele resolvia a maioria dos problemas que eles tivessem sendo lobisomens (uma criança que se descuidara e fora vista, se algum deles começasse a atacar brichotes intencionalmente, a tarefa de manter a paz entre os clãs) e era sua a última palavra em qualquer discussão.

            – Ele estava perturbando minha esposa, Gabriel! – tio Silas se justificou, ainda parecendo perturbado, os dentes trincados. – Dizendo coisas horríveis sobre ela ser brichote, o pivete. Se o pai dele estivesse vivo…

            – Se sua esposa não tivesse… – Ítalo interrompeu, já de pé, marchando em direção ao tio, como se fosse acertá-lo de novo.

            – Parem! – o homem mais velho rosnou, mantendo tio Silas e Ítalo afastados. – Não quero ouvir mais uma palavra. Silas, tu é um adulto, tente manter a calma. – Então ele se dirigiu diretamente a Ítalo: – Tu se desculpe.

            Ítalo, porém, apenas deu um sorriso debochado, olhando para longe, como se não acreditasse no que estava acontecendo.

            Nesse momento o pai de Carmen Lúcia também perdera qualquer calma que ainda restasse. Puxou o garoto pela camisa, elevando ainda mais a voz, ameaçadoramente:

            – Faça o que eu digo, pivete! Não sei quem está pensando que é, mas fará o que eu digo. Eu estou sendo paciente, estou sendo generoso. Se coloque no seu lugar ou não fará mais parte desse clã. – Afastou-se então, a respiração alterada. Ítalo o encarou do alto da inimizade, porém não disse nada. – Peça desculpa!

            – Desculpa! – Ele gritou.

            – Não para mim. – O pai de Carmen Lúcia continuou. – Para ela.

            A pequena esposa de Silas parecia assustada. Não era muito bonita, já na metade dos seus cinquenta, com óculos fundos e cabelo sempre preso para trás. Todos estavam em silêncio.

            Ítalo, contrariado, limpou a garganta e abaixou a cabeça.

            – Me desculpe, tia. — Ele não parecia nada feliz. Na verdade, parecia a ponto de rosnar para a mulher. Mesmo assim, o pai de Carmen Lúcia pareceu satisfeito, ainda que na defensiva:

            – Ótimo. – Ele disse, sabendo que não conseguiria tirar mais do rapaz e sem querer prolongar o assunto. – Não há mais o que ver aqui.

            Aos poucos todos foram se dispersando. As conversas voltaram, alguns saíram da sala. Ítalo saiu sozinho, em direção à sala, de onde, Carmen Lúcia acreditava, ele rumaria ao seu próprio quarto.

            Heloísa olhou para a prima.

            – Bom, isso foi… – Ela olhou para baixo, procurando uma palavra. Parecia um pouco confusa.

            – Isso não foi bom para o Ítalo, isso eu sei. – Nicolas abaixou a voz. Carmen Lúcia se perguntou por que o primo sussurrava. Estavam em uma família de lobisomens, qualquer um podia ouvir o que ele estava dizendo. – Ele vem causando problema com os brichotes do clã faz um tempo…

            – Isso é ridículo – Heloísa continuou, fazendo uma careta. – Quase todo mundo aqui, se não todo mundo, tem sangue brichote. Se não casássemos com brichotes já teríamos desaparecido ou estaríamos praticando incesto!

            – O que é incesto? – Emília perguntou de repente, mostrando que estava prestando atenção na conversa.

            – O pai dele não morreu ano passado em um hospital brichote? – Nicolas ignorou a prima mais nova, sem saber como explicar a palavra. – Talvez seja por isso que ele está arrumando tanto problema com os brichotes.

            – Hen-hein – Heloísa ainda tinha aquela expressão de desprezo no rosto, como se não quisesse achar desculpas para o fato de Ítalo ser um idiota – Mas não foram os brichotes que mataram ele! Tio Aquiles já estava mal fazia tempo. Eles até tentaram levar ele para um hospital bruxo depois…

            – Mas o Ítalo queria levar o pai para o hospital bruxo desde o começo. O resto da família que não concordou. Ninguém achou que era tão grave. – Nicolas continuou defendendo sua ideia.

            – Ninguém achou que era tão grave – Heloísa repetiu, concordando. – Mesmo assim não foi culpa dos brichotes. Não foi culpa de ninguém. Ele tinha câncer.

            – Pode tentar dizer isso a Ítalo. – Nicolas apenas olhou para a irmã mais nova. Não ia discutir mais, sabia que não valia a pena insistir.

            Heloísa colocou Elias Neto no chão, parecendo finalmente sentir seu peso incomodando. Ela não olhou mais para Nicolas. E nenhum deles precisou dizer nada antes de todos começarem a andar de volta para a sala principal, como se a ideia tivesse sido transmitida por osmose.

            Carmen Lúcia ficou pensando no que Nicolas falara sobre Ítalo. Ela conseguia entender por que tio Aquiles não fora levado direto aos bruxos, já que os lobisomens preferiam manter distancia das outras criaturas mágicas. Não, os lobisomens costumavam preferir o isolamento e os bruxos gostavam de ditar as regras. Talvez, por isso, vó Carminha fosse a única bruxa que carregasse o sobrenome Acheu.

              Sem perceber, a menina acabou ficando um pouco para trás, ainda com Emília segurando sua mão. A irmã a encarava fixamente, esperando que ela fizesse alguma coisa.

            Porém não foi Carmen Lúcia que fez primeiro. Foi Danilo, ao ficar um pouco para trás também.

            – Lúcia…

            Carmen Lúcia olhou na hora. Não estava acostumada com o clã a chamando de qualquer coisa que não Lulu. Se Danilo estava a chamando pelo nome inteiro e não era em tom de brincadeira, havia alguma coisa errada.

            Ela esperou que ele falasse.

            Danilo parecia um pouco constrangido, sem saber bem por onde começar.

            – Escute, eu conversei com o Nicolas, e ele me disse… Bom…

            A garota sorriu, achando graça da falta de jeito do primo.

            – Que foi? Ele te contou alguma coisa tão especial assim pra você ficar todo encabulado?

            – Eu não… Não estou… É complicado! – Danilo olhou para a prima, o rosto vermelho.

            Carmen Lúcia riu mais alto.

            – Hen-hein. – Nesse momento ela nem mesmo olhava para ele. Qualquer preocupação que tivera já extinta: – Não sei o que ele te falou, mas devia estar mangando com você. Você conhece o Nicolas.

            – Bom, não sei. – Danilo ainda olhava para Carmen Lúcia, ainda sério. – Dessa vez não pareceu. Ele disse uma coisa sobre você.

            Ela não pode evitar sentir alguma coisa estranha dentro de si. Olhou de novo para Danilo, dividida entre a confusão e a ansiedade.

            – O que ele disse? – De repente se lembrou de quando chegara à casa junto com o primo e de como todos os olhares se dirigiram a eles em preocupação.

            Danilo ainda parecia relutante em falar. Ele coçou a cabeça com uma das mãos.

            – Bom, ele…

            Mas o primo não pôde continuar. Nicolas e Heloísa, andando mais a frente, perceberam que os outros tinham ficado para trás.

            – Ei! Sobre o que estão conversando? – A prima perguntou, sorrindo. Carmen Lúcia olhou para ela, porém não disse nada.

            – Dani tá contando da coisa sobre a Lulu que o Nicolas disse. – Emília disse prontamente, parecendo feliz em saber uma resposta.

            Carmen Lúcia olhou para a irmã, repreendendo-a com o olhar; Nicolas fez o mesmo com Danilo.

            O que você disse a ela? A voz de Nicolas ecoou na cabeça de Carmen Lúcia.

            Você sabe que todos nós podemos te ouvir, certo? A garota transmitiu mentalmente.

            – Eu também sou do clã, Nicolas. – Ela disse, cruzando os braços, assumindo uma pose ofendida. – Eu também posso ouvir.

            O primo mais velho bateu na própria testa.

            – Me desculpe. Algumas vezes eu esqueço que todo mundo no clã pode ouvir as transmissões mentais. Estou acostumado com São Luís onde não tem nenhum lobisomem guará por perto…

            – Tem que tomar cuidado com isso, Nicolas – Carmen Lúcia sorriu para ele. – Os outros não vão ser tão compreensivos.

            – Me desculpe – ele repetiu. Olhou então diretamente para o irmão, colocando a pergunta em voz alta: – O que você disse a ela?

            – Nada demais… – Danilo encolheu os ombros. – Só disse que você tinha dito que tinha alguma coisa estranha com a Lulu…

            – Não é pra você contar, Danilo! – Nicolas o repreendeu.

            – Peraí! – Heloísa os interrompeu de repente. – Do que vocês estão falando?

            – Eu que pergunto. Tudo isso é sobre mim, não é? Eu devia saber! – Carmen Lúcia protestou. Olhava para os três primos mais velhos, porém se dirigia especialmente a Nicolas, que parecia mais informado sobre o assunto.

            Ninguém respondeu. Carmen Lúcia estava quase falando mais alguma coisa quando ouviu a porta principal da casa se abrindo.

            Achava que não havia ninguém faltando. Todos deviam estar dentro da casa. Mesmo assim, chegara alguém novo…

            De repente o recém-chegado se tornara mais interessando que o misterioso problema que envolvia ela mesma.

            A menina ficou na ponta dos pés, alerta como se tivesse identificado uma presa. Transformou o nariz em focinho, forçando os sentidos a se tornarem ainda mais aguçados.

            – Que foi? – Danilo perguntou, percebendo o estado de alerta da prima.

            Carmen Lúcia não respondeu. Ao invés disso olhou para Emília, sorrindo:

            – Vó Lúcia e vô Geraldo chegaram.

            Emília sorriu de volta, mexendo o nariz em um esforço para transformá-lo também. Percebendo que ainda tinha um focinho, Carmen Lúcia rapidamente o voltou ao estado natural.

            Nicolas e Heloísa também haviam transformados os narizes e pareciam empenhados em farejar o ar. Nicolas desistiu primeiro:

            – Não sei como consegue identificar o cheiro de qualquer coisa. Tem tanta gente e tantos cheiros aqui que eu nem sei o que vem de onde…

            O focinho de Heloísa voltou a se encurtar.

            – Você tá inventando. Não tô sentindo o cheiro de nada.

            Carmen Lúcia fechou a cara, ofendida.

            – Não é culpa minha se vocês estão perdendo os instintos vivendo na cidade grande.

            – Hen-hein. – Danilo fez um gesto de impaciência com a mão. – Deve ter alguma explicação lógica para seus instintos estarem tão mais aguçados que os nossos. Na Chapada das Mesas você se curou tão rápido… Parecia até… – o garoto olhou para o irmão mais velho, os olhos arregalados: – Magia.

            Porém Carmen Lúcia já não estava mais prestando atenção. Podia cheirar vó Lúcia e vô Geraldo cada vez mais próximos, e nem mesmo a descrença de Heloísa, ou a surpresa de Danilo podiam abalar sua alegria.

            Ainda segurando a mão de Emília, Carmen Lúcia atravessou a sala correndo, adentrando no hall de entrada e se deparando com vó Lúcia e vô Geraldo parados enquanto mexiam em suas malas, tentando arrumar alguma coisa que caíra.

            – Vó! – Emília gritou antes de se soltar da mão da irmã e correr em direção à mulher de cintura avantajada.

            Vó Lúcia olhou de repente, parecendo surpresa em ver Emília.

            – Lia! – Ela se abaixou para abraçar a neta mais nova. Então olhou para frente: – Lucinha! Como tem passado?

            Fazia algum tempo desde que Carmen Lúcia e Emília tinham visto vó Lúcia e vó Geraldo. Não era comum que aparecessem para as reuniões do clã, mesmo que o nome de solteira da vó Lúcia fosse Acheu também. Na verdade, vó Lúcia era prima do vô Elias, o que fazia dos pais de Carmen Lúcia primos em algum grau. Mas vó Lúcia casara com vô Geraldo e ela agora fazia parte do clã dos Navarrus e não dos Acheu.

            Não que isso a impedisse de aparecer nas reuniões do clã dos Acheu, porém não havia mais a necessidade.

            Afinal, o principal motivo que levava os clãs a se reunirem anualmente eram os muiraquitãs, os colares feitos de pedras enfeitiçadas. Normalmente um membro era responsável por conseguir o bastante para todos e distribui-los durante as reuniões. No caso do clã dos Acheu, essa era a responsabilidade do tio Cláudio, o pai de Nicolas, Danilo e Heloísa.

            O que levava os muiraquitãs a serem tão importantes era a magia contida neles. Diziam as histórias que os primeiros lobisomens guará haviam feito um pacto com a própria lua, Jaci, que lhes garantira seus poderes e habilidade especiais. Durante as luas crescente e minguante, os poderes se mantinham estáveis e fácies de controlar, extinguindo-se completamente na lua nova.

O problema, porém, era a lua cheia.

Durante essa época, o poder lunar era tamanho que fazia os lobisomens perderem o controle durante as transformações, regredindo ao estado de aninais inconscientes e ferozes. Não conseguiam reconhecer ninguém, não tinham qualquer poder sobre suas ações: eles atacavam qualquer um ou qualquer coisa no seu caminho.

Os muiraquitãs, quando usados durante as luas cheias, inibiam o poder da lua sobre os lobisomens. O problema era que os muiraquitãs não eram objetos fácies de conseguir.

            Para começar, poucos bruxos conheciam o segredo de sua magia. O modo de enfeitiçar um muiraquitã era passado de pais para filhos, o que restringia o número de bruxos capazes de produzir um. E cada clã lobisomem mantinha negócios com uma família bruxa diferente.

            Os Acheu, por exemplo, tinham uma parceria centenária com a família bruxa da Ilha dos Lençóis, e a pedra que eles usavam era a água marinha. Carmen Lúcia sabia que a pedra usada pelos Navarrus, que se concentravam no pantanal, era a brasilianita, de cores que variavam entre o verde e o amarelo. E, no Amazonas, haviam as destemidas bruxas Icamiabas, que faziam muiraquitãs de jade.

Outro problema dos muiraquitãs era que seu feitiço não era permanente. Em cada pedrinha havia magia o suficiente apenas para treze luas cheias. Passado um ano, era necessário repetir todo o processo.

            Danilo uma vez confidencializou que acreditava que os bruxos tinham poderes para fazer um muiraquitã que durasse para sempre, porém preferiam fazer os que duravam pouco, para não perderem o comércio com os lobisomens.

            – Mainha sabe que a senhora veio? – Carmen Lúcia perguntou para a avó, depois de abraçá-la também.

            – Talvez eu tenha mencionado alguma coisa… – Vó Lúcia, porém, parecia um pouco distraída, olhando para Emília e sorrindo para a mais nova.

            Vó Geraldo riu.

            – Ela me disse que ligou pra sua mãe, mas duvido que tenha. – O senhor olhava diretamente para Carmen Lúcia, ainda achando graça da esposa.

            Carmen Lúcia admirava o relacionamento do vó Geraldo e da vó Lúcia tanto quanto admirava a magia da vó Carmen. Os dois pareciam ter nascido para ficarem juntos e, mesmo depois de todos aqueles anos, ainda soavam como um casal de namorados.

            Vó Lúcia se virou para o marido, dividida entre um sorriso e um olhar severo.

            – Não fale isso pra pequena, Geraldo! O que ela vai achar de mim?

            – Nada que já não ache, minha lua.

            A senhora colocou a mão livre na cintura, a outra ainda segurando sua mala.

            – O que vocês estão fazendo aqui? – Emília fez a pergunta que estivera na mente de Carmen Lúcia esse tempo todo.

            Vó Lúcia e vô Geraldo se viraram ao mesmo tempo para a neta mais nova.

            O homem abriu a boca para responder, mas vó Lúcia foi mais rápida:

            – Sentimos saudades, pequena. Então viemos visitar!

            Emília sorriu com todos os dentes. Parecia verdadeiramente animada em ter os avós em casa.

            Carmen Lúcia também estava contente, é claro, mesmo que alguma coisa lhe dissesse para manter um pé atrás. Porém era uma voz tão fraca que a menina logo a ignorou.

            Assim ela acompanhou os avós e a irmã para dentro da casa, sorrindo e ouvindo enquanto lhe era dito que havia crescido.

            Logo que alcançaram a sala, viram a mãe de Carmen Lúcia indo em direção a eles depressa.

            Ela parecia assombrada, os olhos escuros arregalados. Sorriu quando avistou os pais ao lado das filhas.

            De repente a mulher já estava junto a eles, perguntando como os senhores estavam, oferecendo-se para pegar as malas deles, abraçando-os. Perguntou também por seus irmãos, que haviam ficado no pantanal. Vó Lúcia e vô Geraldo responderam todas as perguntas alegremente, acrescentando algumas eles também.

Carmen Lúcia ouvira por uma vida inteira que os lobisomens guará, tal como o animal do qual assumia parte da forma, eram solitários e não mantinham muitos vínculos familiares. Ouvira que as reuniões anuais aconteciam por pura necessidade e não por um sentimento fraterno.

A relação de sua mãe com os pais era uma das provas de que isso era mentira.

            Um pouco distantes, parados atrás do sofá, estavam Heloísa, Danilo, Nicolas e Elias Neto. A prima sorriu quando Carmen Lúcia olhou para eles; Danilo acenou. Talvez a relação da mãe e vô Geraldo e vó Lúcia não fosse a única prova.

            Sorriu de volta para os primos, prestando pouca atenção na conversa dos adultos ao seu lado.

            Considerou pedir licença e se juntar a eles, talvez levando Emília consigo, porém, nesse momento, vó Carminha apareceu na porta da cozinha. Ela parecia ainda menor e mais enrugada quando comparada à vó Lúcia.

            – O jantar tá pronto! Venham todos! – a varinha estava apontada diretamente para a garganta, fazendo sua voz se ampliar magicamente. Carmen Lúcia sabia que, mesmo estando longe, toda a casa podia escutá-la.

            O que queria dizer que logo seus familiares todos estariam se cotovelando para conseguir o melhor lugar.

            – Vamos, Lia! – Carmen Lúcia olhou para a irmã mais nova – Vamos logo.

            Emília sorriu, disparando na frente. A mais velha ainda dirigiu um olhar rápido à mãe, que lhe indicou com a cabeça que fosse à frente.

            Então Carmen Lúcia se dirigiu à sala de refeições, juntando-se novamente aos primos e atravessando a sala onde tio Silas e Ítalo haviam brigado antes.

            A sala de refeições era enorme. A magia da vó Carminha era mesmo impressionante. Normalmente aquela era uma sala comum, com uma mesa com lugares para os cinco membros da família que moravam na casa, porém no momento havia uma mesa comprida o bastante para, no mínimo, cinquenta pessoas.

            Os primos foram os primeiros a se sentar, Carmen Lúcia se sentando no meio de Emília e Danilo, porém os lugares foram sendo ocupados rapidamente: a tia-avó Lívia se sentou perto da irmã Priscila e o cunhado Sebastião; os irmãos Silvano e Valdir estavam de frente para os gêmeos Laura Regina e Antônio Carlos; tia Milena se sentava com a esposa e duas filhas; Laís e o marido trocavam olhares apaixonados.

            Não demorou muito para a sala se encher de conversas e risadas. Uma ou duas frases transmitidas mentalmente também foram captadas por Carmen Lúcia, mas não foram de grande importância.

            – Seu nariz estava certo de novo – Danilo comentou em certo momento. – Eram mesmo seus avós.

            – Não foi grande coisa – Carmen Lúcia garantiu. – Vocês estão perdendo os poderes, estou dizendo.

            – Ainda sou mais rápido – o primo provocou.

            Carmen Lúcia riu, virando-se para ele e dando-lhe um empurrão de leve. Ele teria revidado, mas nesse momento os pais da garota e os tios Cláudio e Gisele se sentaram na ponta da mesa comprida, acompanhados por vô Geraldo e vó Lúcia.

            Todos eles vinham conversando alto.

            E não fugiu aos olhos de Carmen Lúcia que o tio Cláudio trazia uma maleta de couro consigo.

            – São os muiraquitãs! – Heloísa, do outro lado de Emília, exclamou em empolgação.

            – Eu vou receber um muiraquirã esse ano? – a mais nova perguntou.

            A mais velha sorriu gentilmente para a irmã, sem corrigi-la.

            – Só depois que seus poderes se estabilizarem. Antes disso a lua cheia não te afeta, pequena, não precisa de um muiraquitã.

            Emília pareceu chateada. Se Carmen Lúcia iria receber um, ela também queria; porém não fez caso.

            Depois que todos os lugares já estavam ocupados, vó Carminha se sentou com um suspiro. Claro que sua magia a ajudara a preparar o jantar, mas ainda assim era muita coisa para ser feita. Agitou a varinha no ar, murmurando algo.

            E várias travessas vieram voando da cozinha, junto com os pratos e talheres.

            A comida se espalhou pela mesa, dividindo-se para que estivesse ao alcance de todos.

            Entre os pratos estavam carne com um molho de tomate, uma enorme torta de caranguejo e muita macaxeira frita; Carmen Lúcia se serviu de tudo, devorando a comida.

            Ninguém conversava. O único som ouvido era o dos talheres trabalhando rapidamente e das pessoas mastigando.

            A família sempre fizera daquele um momento solene. Todas as atenções estavam voltadas para comer tudo o que conseguissem. Carmen Lúcia não tinha certeza de como era nas outras famílias, porém achava que era diferente.

            Foi só quando já terminara de apreciar a deliciosa torta de caranguejo, e enquanto mais um movimento da varinha da vó Carminha retirava os pratos e fazia frutas aparecerem, que o tio Cláudio se manifestou:

            – Membros do clã Acheu! – Todos prestavam atenção. – Acredito que falo no nome do meu irmão – ele indicou o pai de Carmen Lúcia em sinal de respeito pelo seu posto de líder, o mais velho sorriu e assentiu, – e de toda da família quando digo que esse foi mais ano de prosperidade e que o próximo ano será ainda melhor. Mas ao motivo que nos trouxe aqui. Os muiraquitãs.

            Tio Cláudio ainda pronunciou algumas palavras sobre responsabilidade, as quais Carmen Lúcia não prestou muita atenção, antes de finalmente passar os muiraquitãs para que fossem distribuídos. Heloísa soltou um gemido de animação quando receber o seu.

            A própria Carmen Lúcia, porém, pegou o seu e passou os outros para Danilo rapidamente. Só depois observou a pedra melhor. Parecia apenas uma água marinha bruta presa como um pingente em um colar de linha trançada. Nada demais.

            Era impressionante o poder que uma simples pedra podia carregar.

            Apertou o muiraquitã, trazendo-o próxima ao peito. Não podia perdê-lo.

            Aquele já era o terceiro muiraquitã que ganhava, porém, ainda se sentia nervosa cada vez que recebia um.

            E se o perdesse? E se se transformasse em uma terrível fera? Diziam que se um lobisomem se transformasse três meses durante a lua-cheia não era mais capaz de voltar ao estado humano…

            Ela também reparou que nem vó Lúcia nem vô Geraldo pegou um para si. Perguntou-se de novo qual seria o real motivo para eles estarem ali.

            Depois de terminada a sobremesa, todos se levantaram da mesa, as conversas e risadas de volta. A maioria já parecia pronta para se recolher a seus quartos, guardar os muiraquitãs e descansar um pouco antes de finalmente irem dormir.

            Carmen Lúcia estava prestes a fazer a mesma coisa, desejando boa noite a Danilo, Elias Neto e Nicolas e seguindo Heloísa e Emília para o quarto que elas estavam dividindo, quando vó Carminha pediu que ela esperasse.

            – Podem ir na frente – Ela disse para a irmã e a prima. – Eu alcanço vocês depois.

            Heloísa apenas assentiu, ainda parecendo animada com seu novo muiraquitã; Emília lhe lançou um olhar meio chateado, mas seguiu a prima.

            – Eu vou lavar a louça, tu fica comigo? – vó Carminha disse, sorrindo.

            Carmen Lúcia sorriu, assentindo. Não lhe passou despercebido o fato de que já era a segunda vez que a senhora lhe chamava para a cozinha, mesmo que normalmente sua magia desse conta de tudo.

            Sabia que na verdade aquela era uma desculpa para conseguir ficar sozinha com a neta; o motivo, porém, Carmen Lúcia desconhecia.

            A menina e a avó foram até a cozinha, cada uma em uma pia, ensaboando e enxaguando a louça. Carmen Lúcia, que já entendera que a avó queria privacidade, esperou até que não ouvir mais barulhos do resto da família antes de perguntar se a senhora não podia limpar tudo com magia.

            Vó Carminha olhou para a neta, os olhos brilhando.

            – Eu poderia… E você logo poderá também.

            Por um momento Carmen Lúcia não entendeu. Olhou para a avó, imaginando que ela estava confundindo as coisas. Era uma loba, não uma bruxa.

            – Essa carta chegou hoje de manhã, pequena. – A avó colocou a mão no bolso onde guardava a varinha, estendendo-lhe um papel amarelado. – Seus pais acharam melhor que eu falasse contigo.

            Carmen Lúcia limpou as mãos na roupa antes de pegar o envelope. Logo percebeu que parecia feito de pergaminho, com um lacre verde desenhando um C floreado. Virou o envelope, vendo seu nome completo e o endereço.

            Olhou para a avó, sem saber como reagir.

            – É de Castelobruxo. E Castelobruxo nunca se engana – Ela estava tão animada que seus olhos pareciam sorrir também. – Tu é uma bruxa, pequena.

            Automaticamente uma das mãos de Carmen Lúcia voou para o bolso onde estava o muiraquitã. Uma de suas mãos segurava a carta; a outra, o colar.

            Apertou ambos com força.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! :D Espero não demorar muito com o próximo capítulo...
Qualquer teoria sobre o Ítalo ou a vó Lúcia e o vó Geraldo?
Não esqueçam de comentar!



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