Castelobruxo: Anos Dourados escrita por Carolina J Martins


Capítulo 17
Capítulo 5 - Magia e Tecnologia


Notas iniciais do capítulo

Eu queria pedir desculpas de verdade! Ano de vestibular é dureza, mas eu não desisti da fic!! E espero que não desistam de mim!! :D



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            A professora Ribeiros, uma mulher na meia idade de pele escura, cabelo raspado e voz de trovão, falava sobre Marte como se o planeta fosse sua grande paixão, não simplesmente um planeta. Ela era a professora favorita de Arlete dentre os que só tinham começado a dar aula no segundo ano e fazia Astronomia parecer bem mais fácil do que o professor Neto do ano anterior.

            A professora acabara de lhes passar alguns dados sobre o planeta vermelho e lhes pediu para, levando em consideração o que haviam aprendido, descobrissem a distancia de Marte ao Sol.

            Arlete sempre soube que era ruim em Astronomia, mas sentiu-se particularmente burra quando, não muito depois e antes mesmo que ela conseguisse entender o que deveria fazer, Vicente, na carteira a sua frente, levantou a mão.

            A garota estava quase xingando o amigo baixinho quando outra mão se levantou e bateu na já erguida de Vicente.

            Arlete levou um momento para entender o que acontecera; a classe toda ria. Dara, sentada na primeira fileira, virara para trás e dera um “toca aí” em Vicente. Ele parecia furioso, mas até Douglas achava graça. Arlete viu Dara dar de ombros e sussurrar algo como “Ah, ele levanta tanto a mão… Não queria deixar ele no vácuo sempre…” para Carmen.

            – Classe, classe! – A professora Ribeiros pediu. – Por favor! – Arlete reparou que ela tentava manter uma expressão séria, mas seus lábios estavam contraídos em um meio sorriso. – Vicente, você tinha a resposta?

            – Eu… Eu tenho. – ele disse, mexendo em seus pergaminhos, recompondo-se. – Aproximadamente 230 milhões de quilômetros.

            – Correto – A professora Ribeiros continuou, com um meio sorriso. – Excelente.

            A aula continuou normal depois disso. Eles ainda acompanharam a professora falando sobre Vênus e Mercúrio, para terminar passando alguns exercícios para eles fazerem de tarefa.

            Depois disso, Carmen, Dara e Arlete foram em direção à classe de Transfiguração, ministrada pela professora Flora, onde elas encontraram Fantasma, ainda de pé, conversando com seus colegas de dormitório. O menino arregalou os olhos assim que as viu.

            – Oi, garotas! – Fantasma acenou. – Tudo bem?

            Arlete percebeu logo que havia alguma coisa errada. Fantasma se afastou dos outros e aproximou-se das amigas, sorrindo nervosamente.

            – Quase – Dara respondeu, colocando seu material em cima de uma das carteiras. – Não aguento mais aula.

            Fantasma riu.

            – A gente ainda nem começou a ter aula direito hoje, Dara. – Carmen a recriminou. – Talvez, se você fosse dormir mais cedo, não teria tanto problema assim de manhã.

            Dara soltou um suspirou ao mesmo tempo em que se deixava cair na cadeira.

            A verdade era que Carmen e Dara vinham brigando muito na hora de acordar, já que essa última gostava de dormir até mais tarde, o que costumava atrasar as outras.

            Arlete estava tão concentrada na discussão das duas que nem percebeu que Fantasma havia tocado seu braço. Ele então a chamou em uma voz sussurrada.

            – Tudo bem? – Ela perguntou, olhando preocupada para sua expressão séria.

            Fantasma hesitou. A garota percebeu que ele evitava seus olhos.

            – Será que você pode… hum… passar no meu dormitório depois da aula?

            – O que aconteceu? – Arlete estava realmente preocupada agora, virando o corpo inteiro para ele e deixando a pequena discussão de Dara e Carmen de lado. – Alguém tá te machucando?

            – Não, não, não é isso – Fantasma continuou, balançando a cabeça – Eu só… Vou deixar a janela do meu dormitório aberta, ok? Eu preciso muito que você vá pra lá… Por favor.

            Arlete assentiu. Não sabia bem o que Fantasma queria, mas podia ver em seus olhos claros que era importante. Ele estava nervoso, mudando o peso de uma perna para a outra o tempo todo. A menina queria tocá-lo, falar que ficaria tudo bem, mesmo sem saber qual o problema, mas conteve-se.

            – Bom dia! – a professora Flora entrou na classe em seu passo rápido, fazendo com o que todos os alunos se sentassem. – Podemos começar?

            Arlete se sentou, mas mal prestou atenção nas próximas aulas, ainda pensando em Fantasma. O argentino lhe garantira que não era nada demais, mas ela continuava curiosa. Mais tarde, depois de almoçar, ela nem esperou as amigas para correr para a Sala de Esportes, onde pegou uma vassoura emprestada.

            Tal como prometera, Fantasma havia deixado a janela de seu dormitório aberta. Arlete voou até lá e viu o amigo sentado em sua cama.

            – Oi! – ela exclamou, sorrindo.  – Posso entrar?

            – Pode. – Fantasma se aproximou da janela e ofereceu a mão para ajuda-la a entrar passar pela janela.

            Era impossível que garotos subissem pelo elevador dos dormitórios femininos e impossível que garotas subissem pelo dos dormitórios masculinos. Mas Fantasma, que vivera quase o ano anterior inteiro no dormitório errado, havia descoberto que era possível passar pela janela de qualquer dormitório, desde que com a permissão de seus donos.

            – O que era tão importante? – Arlete perguntou assim que seus pés tocaram o chão, os olhos brilhando de curiosidade.

            Fantasma, no entanto, dirigiu-lhe apenas um meio sorriso forçado.

            – Eu não queria incomodar – ele começou, virando de costas para ela e aproximando-se de sua cama. – Mas não sabia mais o que deveria fazer.

            Fantasma dormia na parte de baixo de uma das três beliches do dormitório. No ano deles, havia um número dramaticamente maior de garotos do que garotas. Então, ao contrário das garotas, divididas em dormitórios de três ou quarto, os garotos do segundo ano ficavam em dormitórios de cinco ou seis alunos. Fantasma dividia seu dormitório com Aurélio, Carvalho, Leon, Kaio e Sombrio. Todos os quais, ele jurava, eram legais com ele.

            – Eu não podia contar para nenhum dos garotos – Fantasma continuou. – A Carmen às vezes parece meio distante, e eu não conheço a Dara direito. – Ele então levantou o cobertor da cama e deixou a mancha marrom avermelhada à vista.

            Arlete demorou alguns momentos para entender. Estava tão acostumada com o fato de Fantasma ser um garoto que seu cérebro demorou a compreender a situação. Quando tudo fez sentido, ela fez uma careta.

            Era uma mancha pequena, mas Arlete tentou imaginar o que se passava pela cabeça de Fantasma. Ele ainda sofria preconceito por ser quem era, queria se dissociar de qualquer imagem feminina, estava até querendo mudar o nome e, então, aparecia a mancha.

            — A gente vai ter que se livrar do lençol. – Arlete disse, olhando diretamente para o amigo. – Você tem outro pra colocar no lugar? Eu posso levar esse embora pela janela. – Ela imaginou que seria difícil, mas não impossível.

            – Eu tava pensando em uma solução mais simples. – Fantasma confessou, passando a mão pela nuca. – E se a gente limpar isso? Eu só não sei como…

            – Ah, verdade, você tem razão. – Arlete pensou por mais um momento. A ideia dele fazia mais sentido. – Olha, pelo jeito brichote, é só passar sabonete e rezar pra sair, porque você deixou muito tempo, então… Mas aposto que tem algum outro jeito bruxo. – Ela olhou da mancha para Fantasma, sentindo-se mais segura. – Liga pro Cente. Ele deve saber. Só pede pra ele um feitiço de limpeza, não precisa falar por quê. O Cente sabe tudo. – Ela faz uma pequena pausa, observando que o rosto de Fantasma se contorcera numa expressão estranha. Mas continuou: – E você vai precisar de absorventes. Acho que tenho alguns no meu dormitório. Se você esperar um pouco…

            Por um momento, Arlete achou que Fantasma fosse falar alguma coisa, mas desistiu. Então ela pegou a vassoura, na dúvida se deveria ter esperado mais um pouco e insistido, mas no fim acabou saindo pela janela e voltando para o chão.

            Arlete estava cantarolando, contente, uma música dos Mamonas Assassinas quando viu Vicente passando na frente da Pirâmide Oeste.

            Achou que era muita coincidência, mas esticou a mão no ar, acenando para ele.

            – Cente! – Chamou, quando ele pareceu não reparar em sua presença. – Ei, Cente!

            O amigo parou ao ouvir seu nome, olhando curioso na direção de Arlete, que corria para alcançá-lo.

            – Ah, oi – Ele lhe dirigiu um meio sorriso que soou forçado.

            – Você sabe algum feitiço de limpeza? – A menina perguntou, recuperando o fôlego, a vassoura em uma das mãos.

            – Feitiço de limpeza? – ele franziu a testa – Por que você quer um feitiço de limpeza, Lete? O que foi que você fez?

            – Nada. – Ela continuou, casualmente. – É o Fantasma. Você conhece feitiços de limpeza, não conhece?

            – Conheço – Vicente ajeitou os óculos enquanto falava, cruzando os braços em seguida. – Uns dois ou três tipos diferentes, dependendo do que vocês querem limpar.

            – Ah, um tecido. Você podia subir pra ajudar ele… – Arlete mordeu a língua, pensando no que estava dizendo. Não estava sendo muito inteligente. Fantasma deixara claro que queria descrição e ali estava ela tagarelando sobre o assunto com Vicente. – Quer saber? Você tá com tempo? Eu preciso ir para o meu dormitório pegar uma coisa, mas a gente podia falar com o Fantasma pelos espelhos.

            – Bom, na verdade, eu estava indo pra casa justamente porque meu pai disse que a versão nova dos espelhos ia ficar pronta depois do almoço… – Vicente encarou os pés, meio constrangido.

            – Ai, que legal! – Arlete sorriu, pegando seu braço e o virando para que a acompanhasse em direção à Pirâmide Leste. – Seu pai fez uma versão nova do espelho mágico?

            – É… Ele tá querendo começar a vender, sabe? – Vicente disse com um sorriso forçado. – Já que vocês gostaram tanto. Só vai testar mais essa versão e, quem sabe, ano que vem todo mundo vai usar os espelhos do meu pai. – A ideia pareceu animá-lo.

            – Nossa, isso seria muito legal – Arlete continuou com sinceridade – Se só com a gente já é muito útil, imagina quando todo mundo tiver conexão!

            – É melhor do que isso – Vicente disse, agora cheio de orgulho – Em teoria, essa versão nova pode se conectar com os celulares brichotes. A gente ainda não conseguiu testar porque aqui no Eldorado a barreira de proteção impede a entrada de tecnologia brichote, mas tem até um navegador de internet e tudo… Só não sei qual foi o nome que meu pai escolheu no fim. Ele tinha ficado em dúvida entre alguns.

            – O espelho novo se conecta com os celulares brichotes? – Arlete repetiu. Ela parara de ouvir aí. Nada teria sido capaz de deixá-la mais animada. Ela achou que seria capaz de abraçar Vicente se ficasse um pouco mais animada.

            A notícia era ótima e empolgante. Finalmente seria capaz de conversar com sua família em Paranaguá de verdade! Ela quase enlouquecera quando ficara sabendo que não havia wi-fi em Castelobruxo no ano anterior porque isso significava ficar ainda mais distante de sua família, ser incapaz de conversar com sua mãe e tentar fazer as pazes. Ela lembrava de ter ouvido sua mãe lhe falar, quando era mais nova, que lugares chiques tinham Wi-Fi, e Castelobruxo era um lugar chique, então devia ter Wi-Fi, mas não tinha.

            A menina até tentara enviar uma carta para a família uma vez, mesmo sabendo que a mãe não gostava de magia. Não recebeu nenhuma resposta, então tentou de novo. Da segunda vez recebera uma resposta que deixava bem claro que ela não devia tentar mandar harpias de novo, pois estava assustando os vizinhos. Arlete só voltara a enviar cartas para a casa naquele ano e a resposta não fora muito diferente.

            Então desistira de falar com eles. Não queria deixar os pais bravos.

            Mas, agora, saber que seria capaz de falar com os pais de um jeito que mesclara magia e tecnologia brichote, de um jeito que eles não ficariam bravos… A menina não conseguia parar de sorrir.

            – Talvez meu pai consiga achar um jeito de conectar os espelhos com os celulares brichotes mesmo com a barreira… – Vicente estava mais animado, vendo a reação de Arlete. – Por enquanto a conexão só é possível fora do Eldorado.

            – Você acha que eu conseguiria sair do Eldorado? – ela perguntou, ainda contente. – Quero dizer, não sempre, só nos fins de semana…

            – Se você tiver um responsável pra te levar. A Araci nunca deixaria você sair da barreira de proteção sozinha. Enquanto está em Castelobruxo é responsabilidade deles.

            Arlete fez um muxoxo de decepção. Não adiantava de nada ter um aparelho mágico assim se não podia usá-lo. Pensou por um momento. O pai de Vicente era um inventor e já criara o espelho quando parecia improvável. Talvez ele conseguisse “enganar” a barreira.

            Sorriu, incapaz de conter a alegria e pegando subitamente no braço de Vicente. Ele lhe uma olhada estranha, que Arlete preferiu ignorar.

             – Mas seu pai vai conseguir, com certeza! Ah, vai ser muito legal conhecer ele hoje.

            – Conhecer, o quê… – Vicente parou surpreso por um momento então a clareza pareceu chegar a seu rosto: – Ah! Você vai comigo buscar os espelhos?

            – Claro. – Arlete imaginou que, para uma pessoa tão inteligente, aquela fora uma pergunta bem burra. – Achou que eu não iria?

            – Você não precisa vir comigo…

            – Não vai ser incomodo nenhum! – Ela insistiu: – Só me deixe pegar uma coisa no meu dormitório e entregar pro Fantasma. Quem sabe ele também possa vir com a gente… – Ela pensou por um momento: – Onde está o Doug, por falar nisso?

            – Doug – Vicente ajeitou os óculos: – Ele está no campo esportivo com a Carmen e a Dandara. Eles estão fazendo os sorteios para ver quem vai jogar com quem nos Campeonatos.

            Arlete percebeu que Vicente falou de Dara com certa cautela. Talvez ainda estivesse brava pelo “toca aqui” na aula de Astronomia. Ele não havia percebido que fora só uma brincadeira?

            – Ah. Você queria um feitiço pra limpeza, não é? – Vicente perguntou, mexendo nos óculos de novo. – De que tipo mesmo?

            – Para tecidos. – Ela puxou seu próprio espelho do bolso e murmurou o nome de Fantasma. – Aqui, converse com o Cente – Ela disse quando o amigo apareceu no reflexo. – Já estou voltando, mas o Cente conhece feitiços de limpeza, ele vai te ajudar.

            Nesse ponto eles haviam alcançado a Pirâmide Leste, e Arlete deixou Cente com conversando com Fantasma enquanto subia para seu dormitório e pegava alguns absorventes, enfiando-os bem fundo nos bolsos da calça do uniforme para que ninguém pudesse vê-los. Depois ela e Cente voltaram para a Pirâmide Oeste, onde ela pediu que ele esperasse de novo e prometeu descer logo com Fantasma para acompanhá-los.

            – Toc, toc – A menina disse, olhando para Fantasma através da janela aberta. – Posso entrar de novo?

            – Claro. – Ele lhe ofereceu a mão para que ela se apoiasse. – Olha, deu certo! Falei com o Cente e consegui limpar minha cama!

            – Magia é demais, né? – Arlete olhou bem para a cama enquanto colocava os pés no chão – Se eu soubesse desse feitiço em casa, teria economizado muito tempo. O que você falou pro Vicente?

            – Eu? Falei que tinha derrubado meu trabalho de poções na cama. – Ele parecia satisfeito.

            – Trabalho de poções? – Arlete franziu a testa, pensando. – Caramba, é verdade! Eu tenho que fazer também ou a Marga vai me matar…

            Arlete então lembrou porque estava ali e entregou os absorventes para Fantasma. Ele pareceu um pouco confuso no começo, mas então enfiou a maioria no espaço entre o colchão e a cama e combinou com Arlete de encontrá-la fora da Pirâmide dali alguns minutos.    

            Ela desceu pela janela, voltando para ficar com Vicente, e eles conversaram um pouco até que Fantasma apareceu também, com Lechu no ombro.

            – Tudo bem se eu levar o Lechu? – Fantasma perguntou, acenando para os amigos. – Achei que ele tava se sentindo um pouco solitário.

            – Não sei qual o gosto de vocês por répteis – Vicente falou, apesar de sorrir para a visão do bicho no ombro de Fantasma. – Você tem uma iguana, ela tem uma cobra…

            – Ah, os répteis são os melhores, não é? – Arlete sorria também.

            – Claro que sim! O Lechu é muito bonzinho. Às vezes eu deito na cama e ele passeando pelas minhas pernas. É muito engraçado.

            – Time Réptil arrasa! – Arlete levantou a mão e bateu na de Fantasma enquanto os três começavam a caminhar em direção à casa de Vicente. – Eu só tenho um problema com a minha cobra. Ela não gosta de nenhum nome que eu sugiro pra ela.

            – Que tal Arco-Íris? Ou só Íris? – Vicente sugeriu. – Ela é uma jiboia, não é? Jiboia significa literalmente cobra arco-íris em tupi.

            – Posso sugerir pra ela depois…

            – Ela é marrom, não é? – Fantasma sugeriu também: – Tenta um nome relacionado à cor dela. Igual foi o Lechu.

            – Eu ainda não entendi o nome do Lechu. – Vicente confessou.

            – Ah, é porque ele é verde como alface, entendeu?

            Arlete riu diante da cara confusa de Vicente e explicou que a referencia só fazia sentido em espanhol. Ela ficou feliz em, por uma vez, ser ela a explicar alguma coisa para Cente.

            O caminho entre Castelobruxo até a casa de Vicente passou depressa enquanto eles conversaram e atravessam as ruas feitas de ouro. Arlete ainda estava com a vassoura que pegara na escola em mãos, mas eles acharam melhor não arriscarem montarem os três de uma vez só nela.

            A casa de Vicente parecia muito com todos os outros prédios do Eldorado: velha, quadrada e dourada. Mesmo assim, antes de entrar, Arlete se perguntou se a casa dele seria uma surpresa como a de Douglas fora: comum por fora, maravilhosa por dentro.

            – Não se importem com a bagunça, ok? – Vicente avisou antes de pegar uma chave no bolso para abrir a porta.

            Ele não estava errado sobre a bagunça. De fato, havia todo tipo de coisa misturada e espalhada pela sala principal, que parecia, em formato, muito com a sala de Douglas, porém menos decorada. Arlete imaginou que parecia óbvio que não havia nenhuma mulher na casa. Mesmo sabendo que nem todos concordariam, ela achava que, se houvesse uma presença mais feminina ali, ela seria capaz de ver mais cores e arrumação.

            – Meu Deus, o que é tudo isso? – a menina perguntou, olhando para as caixas empilhadas, os livros espalhados, as calças e camisas jogadas no chão, as peças que desconhecia. O pai de Vicente era inventor, como conseguia se encontrar no meio de tanta baderna?

            – Bom – Vicente passou a mão pela nuca, visivelmente constrangido. – É minha casa. Eu não tava esperando que vocês viessem, para ser sincero – mas ele logo mudou de assunto: – Vou achar meu pai, esperem aqui.

            Ele se afastou, deixando Arlete e Fantasma sozinhos. Ela reparou que o amigo usou a varinha para colocar algumas coisas no lugar discretamente enquanto entrava por uma porta que devia levar aos quartos.

            Arlete olhou para Fantasma. Ele agora segurava Lechu nas mãos, concentrado em não deixar a iguana cair no chão.

            – Tudo bem? – Ela perguntou, querendo puxar um assunto.

            Fantasma balançou a cabeça, sem levantar os olhos.

            Vendo que não conseguiria uma conversa com Fantasma, ela olhou melhor a sala, balançando-se nas pontas dos pés e nos calcanhares. A verdade era que estava um pouco decepcionada. Esperara uma sala prateada cheia de tecnologia, não aquela bagunçada e comum.

            Era ali que o gênio que o pai de Vicente provara ser trabalhava? Ou ele teria um lugar especial onde trabalhava em suas invenções?

            Contudo, numa segunda olhada, alguns objetos chamaram mais a atenção de Arlete do que antes: havia um papel branco com um círculo preto no centro jogado no chão; um frasquinho de poções que mudava de cor sem parar; uma almofada que parecia roncar; uma caixa rosa que emitia um som suave, como o de um sino. Talvez ali nem tudo fosse só caos. Talvez algumas coisas fossem emocionantes.

             Foi o aro de óculos jogado sobre o amparador perto deles que mais lhe chamou a atenção.

            – Olha isso! – Ela exclamou para Fantasma, dando alguns passos na direção do aro quadrado para pegá-lo nas mãos: – É igualzinho o do Cente! – Arlete sorria, achando graça enquanto mostrava o objeto para o argentino: – Só que sem as lentes…

            De repente um grande estrondo fez Arlete se virar, assustada. Era a porta e uma voz masculina chamou:

            – Vicente, você está aí? Eu acabei de ter a ideia mais brilhante e preciso desenhar a base em um daqueles pa…

            Por um momento, Arlete achou que o homem de traços indígenas era baixo demais, até que olhou para suas pernas e percebeu que estava em uma cadeira de rodas. Ele fitava a ela e a Fantasma, completamente confuso. Talvez tivesse errado a casa? Quem eram aqueles dois?

            – Sr. Pitangui – Arlete se apressou em falar, quebrando o silêncio constrangedor; sorrindo. – É um prazer finalmente conhecê-lo! – ela olhava com entusiasmo para o pai de Vicente, evitando desviar o olhar para suas pernas. Não sabia que o pai de Vicente era cadeirante, mas não queria ser mal-educada – Meu nome é Arlete, e esse é o Fantasma. Somos amigos do seu filho.

            – Entendo – a expressão do homem finalmente relaxou e ele abriu um sorriso bondoso. – Alberto Antônio. Um prazer – ele esticou a mão para cumprimentar Arlete e depois Fantasma. Foi quando o homem reparou nos aros dos óculos que ela tinha em mãos – O que é isso? Essa coisa velha te impressionou? – ele continuou, sem pausa: – Você vai adorar isso então.

            Alberto Antônio de repente pareceu mais animado, deslizando pela sala com sua cadeira e aproximando-se de uma estante.

            Por um momento, Arlete viu que ele levantara a mão para uma prateleira alta e achou que precisaria ajuda-lo. Mas então a cadeira se elevou quase como um guindaste, permitindo que ele alcançasse um livro que nem ela ou Fantasma teriam alcançado. Arlete observou tudo admirada.

            – Aqui. – O pai de Vicente entregou o livro para Arlete, sorrindo. – É uma das minhas novas invenções.

            Ela tomou o livro em mãos, voltando o aro para o lugar onde estava antes. Confusa, ela abriu a primeira página. Talvez ele soltasse faíscas, talvez se transformasse em outra coisa. Afinal, estavam falando de magia. E ela sabia que livros não eram uma invenção recente. Eles existiam há tanto tempo…

            Mas aquele não era nada especial. Nem mesmo havia nenhuma história aqui. Suas páginas estavam completamente em branco.

            – Ahum… – A menina não tinha certeza se havia entendido direito.

            – Parece um simples livro, não é? – O homem parecia mais animado a cada página que Arlete passava. – Impressionante, não é?

            Ela já estava confusa, e um por um momento sentiu-se burra também. Será que não suficientemente inteligente para entender o que deixava Alberto Antônio tão feliz?

            – É só um livro…? – Fantasma perguntou, aproximando-se. E Arlete se sentiu um pouco melhor em saber que ela não era a única não estava entendendo. – Ou…

            – Me devolva, por favor – ele pediu, pegando o livro e colocando uma mão em cada uma das capas. Então Alberto Antônio fechou os olhos, ficou alguns segundos em silêncio e devolveu o livro para Arlete, parecendo orgulhoso.

            A menina olhou o livro de novo, percebendo que a capa havia mudado de cor e que um título havia aparecido Onde está Sumé?.

            – Viu? – O homem sorria enquanto Arlete, absolutamente impressionada, folheava o livro e encontrava textos e imagens coloridas. Fantasma, por sobre seu ombro, também parecia maravilhado. Alberto Antônio continuou: – Em teoria, ele devia ser capaz de se transformar em qualquer livro que você quiser. Seria uma revolução no que nós conhecemos como bibliotecas. Apenas alguns poucos livros seriam o bastante para abastecer Castelobruxo inteiro.

            Arlete achou a invenção genial. Fantasma olhava para as páginas, boquiaberto. Por que eles não tinham um daqueles? Assim não teriam que carregar tantos livros e materiais entre uma aula e outra.

            Mas não demorou muito para surgir uma resposta. O livro soltou uma fumaça espessa que fez os três tossirem e que tomou conta de toda a sala.

            – O que foi isso? – a menina perguntou, usando a mão para tentar espantar a fumaça.

            – Um dos defeitos do livro. – O pai de Vicente foi rápido em responder. – Não importa o que eu faça não consigo resolver isso. O livro não consegue segurar as informações por muito tempo e, quando se sobrecarrega, solta essa fumaça. Além disso, só consigo fazer com que apareçam assuntos indígenas. Realmente não sei qual o problema…

            – Caramba, o que vocês fizeram? – uma voz, um pouco distante, perguntou, do meio da fumaça. – Não consigo achar meu pai em lugar nenhum. Vocês mexeram no… Pai, oi!

            – Eu tive o prazer de conhecer seus amigos, filho – O pai de Vicente falou, em uma voz calma, com um sorriso tranquilo. – Estava mostrando o livrangui pra eles.

            – Pai, eu… – Vicente colocou a mão na nuca, abaixando a cabeça e parecendo pensar com cuidado no que diria.

            – Me desculpa, mas o… o quê? – Arlete continuou, perguntando-se se entendera certo.

            – Livrangui. – O pai de Vicente repetiu. – Livro com Pitangui. – Ele esclareceu. – Mas suponho que vocês estejam aqui para pegar o espe… espelhangui, certo?

            – É, pai. – Vicente continuou, ficando vermelho de repente – Só não…

            – Eu vou pegar pra vocês – o homem continuou, como se Vicente não tivesse dito nada, afastando-se com um sorriso no rosto. – Eles são prontos.

            Arlete olhou para Vicente, que fechara os olhos, o rosto se contorcendo em uma expressão estranha.

            – Eu disse que vocês não precisavam vir… – ele murmurou.

            – Qual o problema? – Arlete perguntou, confusa. Cente parecia subitamente chateado.

            – Meu pai tem umas ideias de nome um pouco… – ele continuou, em uma voz mais baixa. – Estranhas. Me desculpem.

            – Não sei por que está se desculpando – Fantasma disse, entrando no meio da conversa. – Seu pai é muito legal.

            – É, ele tem razão! – Arlete acrescentou. – Não sei por que não fala mais do seu pai. Ele conversou um pouco com a gente e parece que tem umas invenções bem legais. O livro… livrangui é genial!

            – Não precisam mentir. – Cente disse, visivelmente constrangido – Meu pai é muita coisas, mas não sabe dar bons nomes para as coisas e dificilmente vai até o fim com o que começou. Foi assim com a minha mãe.

            Sentindo o quanto Vicente estava chateado, mesmo sem entender direito sobre o que ele falava, Arlete sentiu vontade de abraçá-lo. Às vezes podia ser irritante como Vicente sabia de tudo, mas ela sabia que no fundo ele tinha um bom coração. Porém, antes que pudesse fazer qualquer coisa, seu pai voltou com seis caixas empilhadas no colo.

            – Aqui estão. – Ele disse, entregando duas a cada um dos amigos. – Bom, na versão original dos espelhanguis, vocês podiam bater fotos, conversar com vídeo e mensagem, acessar um mapa, procurar palavras-chaves e… acho que é isso. Na versão nova, vocês podem fazer tudo isso, mas eu acrescentei novas funções. Deixem-me demonstrar.

            Ele então abriu uma das caixinhas que Vicente segurava e puxou um espelhinho retangular, diferente dos redondos com os quais Arlete estava acostumada. Alberto Antônio então pegou sua varinha e tocou a frente do espelho, fazendo um movimento de torção com a mão e então apontando a varinha para frente.

            Acompanhando o movimento da varinha, luzes brilhantes saíram do espelho para a vida real, formando vários círculos com desenhos: uma carta, uma câmera, um livro, uma luneta…

            Fantasma e Arlete ficaram absolutamente maravilhados. Claro, eram familiarizados com a magia, mas aquela parecia um tipo totalmente diferente de magia.

            – Bom, vocês ainda tem a opção de usar o espelhangui dentro do espelho mesmo, mas achei que assim também seria legal. Na versão aberta, vocês têm que usar a varinha pra acessar as funções. Assim – Alberto Antônio tocou um dos círculos, abrindo uma lista com cinco números de três dígitos: – Quando vocês escolherem um espelho como de vocês, esses números vão mudar para o nome de vocês, então será como na primeira versão dos espelhanguis: vocês só tem que falar os nomes uns dos outros para poderem conversar.

            Ele torceu a varinha de novo, fazendo com que os círculos com os desenhos voltassem a aparecer.

            – Agora você pode programar o espelhangui para lhes avisar de compromissos, identificar se existem outros espelhanguis perto de vocês, ver a previsão do tempo… – Alberto Antônio foi apontando para os símbolos do relógio, de um espelhangui, de uma nuvem. – Além disso, a versão nova pode ter seu conteúdo interno atualizado sem que seja necessário fazer outro espelhangui. Fantástico, não é?

            Arlete teve que concordar. O único problema aparente do espelhangui era que ele era incapaz de furar a barreira mágica da escola e permitir a entrada da internet. O sorriso da garota morreu quando ela pensou nisso. Mas os outros estavam tão concentrados no pai de Vicente que nem perceberam.

            – Bom, obrigado, pai – Cente disse quando o homem lhe devolveu o espelhangui. – Vou levar os espelhos pros outros. – Ele se virou para os amigos: – Vamos voltar pra Castelobruxo?

            E assim os três fizeram. Não conversaram muito no caminho, já que normalmente teria sido Arlete que preencheria o silêncio, mas de repente se lembrara de sua família em Paranaguá e ficara difícil se concentrara em qualquer outra coisa.

            Como será que o pai estava? Será que a mãe estava conseguindo cuidar da casa e dos dois irmãos sem Arlete? Arthur já teria conseguido dormir em fazer xixi durante a noite? Quem levaria Matheus para passar as tardes com os amigos?

            Será que sentiam sua falta?

            Eles estavam passando na frente da Pirâmide Oeste em direção ao campo esportivo, onde os outros estariam, quando uma voz soou mais alta do que as dos outros alunos:

            – Ei, não é aquela a garotinha do dormitório masculino?

            O reflexo imediato de Arlete foi olhar para Fantasma. Ele continuou andando, como se nada tivesse acontecido, mas ela podia ver que seu olhar se tornara baixo e que seu punho se cerrara.

            Se tivesse ficado por aí, não seria um problema tão grande. Fantasma parecia chateado, e Arlete queria abraçá-lo, mas não havia maiores danos.

            – Você! É, você, estou falando com você! – A voz continuou, até que provou ser a voz de Felipe, aproximava-se junto com Hugo.

            Arlete não via nem Felipe nem Hugo havia mais de um ano. A última vez que haviam conversado, na verdade, fora poucos dias depois de ter chegado em Castelobruxo para seu primeiro ano. Ela lembrava, porém, que Carmen havia lhe dito que não eram boas pessoas. Agora a lobisomem provava ter razão.

            – Ei, seu irmão nos contou tudo sobre você – Hugo continuou, em tom de deboche: – Sobre a aberração que você: uma garota dormindo no dormitório masculino, uma garota de barba!           

            – Ou então um cara sem pau, não é? – Felipe acrescentou, rindo.

            Hugo o acompanhou na risada, o que apenas fez Arlete ficar mais nervosa.

            – Por que não vão tomar conta da vida de vocês? – ela explodiu, talvez um pouco alto demais e chamando atenção de alguns alunos ao seu redor.

            Felipe riu de novo.

            – Se não é a garota Arlete. Ainda quer que eu te leve até a Ponte Iubárranga?

            – Só parar com essa bobagem toda já seria o bastante. – Ela disse, tentando de algum jeito, levantar o queixo e parecer mais alta quanto comparada com os garotos enormes a sua frente – Deixem Fantasma em paz.

            – Ah! – Felipe continuou. – Vocês são amigax? Ah, claro! Era com você que ela dividia dormitório antes? O que foi que você fez pra ela querer ir correndo para os masculinos?

            Hugo riu, dando alguns passos para frente, ficando mais próximo de Arlete:

            – Tinha mais uma, não tinha? – Ele perguntou, olhando para trás.

            Felipe balançou a cabeça.

            – A Srta. Tímida.

            – Menina-homem, Srta. Tímida e o Filho do Louco de Pedra – Hugo enumerou, indicando Vicente por último. Arlete olhou rapidamente para os dois amigos parados atrás de si. Apertou as caixas dos espelhanguis, com raiva. – Enquanto você podia ter escolhido andar com gente, você resolveu colecionar aberrações, Arlete? Uma pena… Você parecia ser uma boa garota!

            Arlete gostaria de ter tido uma resposta na ponta da língua para revidar. Gostaria de poder dizer que qualquer coisa inteligente, que faria os espectadores que começaram a se reunir ao redor deles achar que ela já tinha aquela discussão ganha.

            Mas ela não conseguiu achar as palavras. Ao invés disso, ficou parada, enquanto Hugo se aproximava em passos desleixados, como se planejasse alguma coisa. Ele era mais velho, mais alto e mais forte que ela. E tudo o que Arlete pôde fazer foi manter-se firmemente parada, sabendo que Vicente e Fantasma estavam bem atrás dela.

            Pelo menos a atenção parecia mais voltada para Arlete do que para eles.

            – O que é isso? – Hugo perguntou, ao mesmo tempo em que avançava em direção à Arlete, rápido e certeiro, tomando uma das caixas dos espelhanguis de sua mão.

            – Me devolve! – Ela gritou, tentando pegar a caixa de volta, mas Hugo girara e agora protegia a caixa com o corpo, voltando para perto de Felipe em passos largos e entregando a caixa para que o amigo pudesse ver melhor.

            Vicente se aproximou de Arlete, a mão quase esticada, como se pudesse pegar a caixa dali. Mas havia pouco e menos ainda que pudesse fazer enquanto Felipe pegava o espelhangui em mãos e o observava melhor.

            – O que é isso? – ele perguntou, sem cuidado nenhum com o objeto. – Um espelho?

            – Que bom que é espelho o bastante pelo menos para perceber isso! – Vicente gritou. Arlete olhou para ele, um pouco assustada, nunca vira o amigo mais nervoso. – Agora, se puder nos devolver ele… – ele estendeu a mão.

            – É assim tão importante pra você? – Felipe perguntou, agora com um sorriso cruel no rosto coberto por acnes. – Sinto muito pelo mau jeito então!

            E, sem hesitar, ele jogou o espelhangui no chão e pisou em cima.

            O som do vidro quebrando pode ser ouvido menos de longe.

            – Não! – Vicente gritou, dando alguns passos para frente, os olhos arregalados, completamente chocado.

            Arlete também não podia acreditar. Ela havia aprendido que Felipe e Hugo eram babacas, mas chegar a tanto… Vicente e o Sr. Pitangui haviam se esforçado tanto para construir aqueles espelhos e agora Felipe havia quebrado um deles…

            A menina puxou sua varinha no segundo em que percebeu que Vicente puxava a sua.

            – Ow! – Hugo gritou, interrompendo sua risada. – Cuidado com isso. Não nos obrigue a tomar medidas sérias.

            Arlete não sabia bem o que Vicente pretendia, mas ela estava longo atrás dele e lhe daria cobertura. Fantasma, atrás dela, permanecia calado, mas, sem olhar, ela sentiu uma movimentação e percebeu que talvez ele tivesse puxado sua varinha também.

            Talvez eles tivessem partido para uma briga séria, e Arlete temia que ela e seus amigos não iriam levar a melhor. Não eles nunca chegaram às vias de fato. Isso porque, após alguns segundos de silêncio, ela viu um monstro gigante chegando por trás de Hugo e Felipe.

            Ela não sabia bem o que era, mas tinha rosto e focinho parecido com um lobo-guará e era pelo menos duas vezes maior do que os garotos mais velhos. A criatura voltou uma espécie de latido alto, que fez os fez olhar para trás e então começar a correr em direção à Pirâmide Oeste quando a fera começou a rosnar.

            –  Você viu aquilo?

            – Monstro!

            – Meu Deus, olha aquela coisa!

            – O que diabos é isso?

            Arlete mal podia acreditar, mas, ao lado da criatura, estavam Dara e Douglas, ambos vestidos em uniformes esportivos. A menina sorriu para os amigos recém-chegados.

            – Essa é uma lobisomem, e ela é minha amiga – a voz de Dara foi mais alta no meio dos cochichos e gritos dos alunos ao redor deles: – Então é melhor que vocês caiam fora, babacas – ela disse para Felipe e Hugo, que, apavorados, apenas trocaram olhares atônicos. E então Dara dirigiu aos outros alunos, que assistiam a tudo como plateia: – Vocês também! Circulando, bando de curiosos.

            – Isso não vai ficar assim! – Felipe exclamou, enquanto parecia retomar parte da coragem. Mas ele se encolheu de novo quando o monstro rosnou: – Não vai ficar assim!

            E, por fim, ele e Hugo correndo e entraram na Pirâmide Oeste, ao mesmo tempo que os outros alunos se afastavam e fingiam que não tinham visto nada demais.

            – Isso mesmo, corram, seus babacas! – Douglas gritou. – Não achem que podem mexer com a gente!

            A criatura voltou a ser Carmen quase no mesmo instante que Arlete correu na direção dela para abraçá-la.

            – Calma! – A nordestina exclamou, deixando o sotaque evidente. – Me sufocar não é um bom jeito de agradecer!

            Mas ela ria. Arlete sorriu também, agradecendo várias vezes.

            – Eu te disse que o Felipe e o Hugo eram babacas, não disse? – Carmen continuou, erguendo uma sobrancelha. – Mas não acredito que eles tiveram coragem de fazer isso!

            – Ei, espera um pouco – Dara as interrompeu – Vocês conhecem aqueles caras? Que porra acabou de acontecer?

            – Eu também quero saber – Douglas falou, e Arlete olhou para ele, reparando nos olhos cor de chumbo e nos cabelos que estavam tomando forma novamente.

            Arlete explicou rapidamente que ela e Carmen haviam os conhecido nas canoas logo que haviam chegado pela primeira e que Carmen não havia gostado deles. Contou também que eles tinham vindo criticar Fantasma e que Arlete o defendera.

            – Foi quando eles começaram a falar do Vicente… Vicente! – ela olhou para trás, lembrando de repente do amigo. Ele estava agachado no chão, olhando para o espelhangui quebrado.  Ao seu lado estava Fantasma, sem saber direito o que fazer.

            Arlete correu para ele, tentando ajudá-lo. Mal podia acreditar que aquele espelhangui havia durado tão pouco tempo. Felipe era tão estúpido…

            – Calma! – Ela disse para Vicente, tentando tranquiliza-lo – Tenho certeza de que podemos consertar. Vamos usar Reparo. Vai ficar tudo bem.

            – Já tentei – Vicente disse, sem olhar para ela. – Não sei porque não funciona. Meu pai vai me matar. Não acredito…

            De repente Arlete se sentiu culpada. Afinal, havia sido dela que Hugo tomara o objeto.

            – Me desculpe, Cente… – Ela lamentou.

            Ele suspirou, pegando a caixa do espelhangui e colocando seus cacos ali dentro.

            – Tudo bem. Talvez… Talvez eu possa consertar. – Ele ficou em pé por fim. Parecia mais chateado do que irritado ou confuso agora.

            – Espera, isso era outro espelho mágico? – Douglas perguntou. Olhou então para Vicente: – Seu pai fez outros espelhos mágicos?

            Vicente balançou a cabeça.

            – Uma versão nova. – Ele explicou. – Bom, eram seis, um para cada um, mas…

            – Um daqueles espelhos super legais que vocês tem? – Dara perguntou, os olhos brilhando em empolgação. Arlete sabia que a amiga queria um daqueles desde que havia batido os olhos no dela. Ela achou que foi bem gentil da parte de Vicente se preocupar em fazer um para Dara também e percebeu, com alegria, que seu plano de incluí-la no grupo estava funcionando.

            Assim que ela recebesse um espelhangui seria parte do grupo de vez.

            Vicente então entregou as caixas dos espelhanguis que funcionavam para Douglas e Carmen e pediu o que Fantasma tinha extra. Ele hesitou por um momento, olhando para Dara, mas, por fim, entregou-lhe o aparelho.

            – Talvez demore um pouco para eu consertar o meu, mas pelo menos vocês cinco já tem os de vocês. Tenho que ensinar pra vocês três quais as mudanças, o Fantasma e a Arlete já sabem. Acho que essa vai ser a última fase experimental, e depois eles vão estar à venda.

            – Você vai começar a vender esses espelhos? – Douglas exclamou. – Cara, isso vai ser muito legal! – Ele deu um tapa nas costa do amigo. – Seu pai é um gênio!

            Vicente sorriu timidamente, mas orelhas ficando vermelhas.

            – Sim, ele é… – Ele olhou para Carmen e Dara, que abriam suas caixas para ver os espelhanguis. – Mas eu tenho que explicar pra vocês como usar. Vem. Vamos para a Sala Comunal Leste.

            Então todos começaram a andar. Arlete achou que aquela havia sido uma boa ideia, já que Felipe e Hugo devia estar na Sala Comunal Oeste. E, enquanto Vicente conversava com Douglas, Dara e Carmen um pouco a frente, explicando tudo o que eles tinham feito enquanto os outros estavam no campo esportivo, Arlete ficou um pouco para trás com Fantasma.

            – Tudo bem? – Ela perguntou, sabendo e sentindo que o amigo não parecia bem.

            Ele forçou um sorriso.

            – Não é muito legal ouvir isso. Sabe, eu sempre soube que ia ter que enfrentar algumas coisas assim, mas esperava que não fosse por tanto tempo. – Ele confessou. – Mas estou bem. Já ouvi coisas piores.

            – Isso mesmo, Fantasma! – Arlete o encorajou, dando-lhe um abraço rápido enquanto ainda andavam. – Não deixe que esses babacas lhe façam mal!

            Fantasma riu, e ouvir o som de sua risada fez Arlete sorrir.

            Agora sabia que, apesar de tudo, estava entre amigos.

 

            Uma semana havia se passado desde que Arlete havia recebido seu espelhangui novo e finalmente aconteceria o primeiro jogo de Carmen. Como o esperado, ela fazia parte das Araras Azuis, enquanto Douglas fora chamado para os Jaguar e Dara retornara aos Vira-Lata. A maioria dos amigos já estavam no campo esportivo, esperando o jogo começar, mas Arlete havia se atrasado um pouco graças a sua cobra, e caminhava sobre em direção ao campo.

            De onde estava, podia ouvir as canções e os gritos entoados de dentro do campo esportivo, o sol queimava sua pele. Imaginou como Carmen devia estar se sentindo. Ela havia se tornado boa no ar e era certo que tinha os instinto e sentidos de uma loba, mas era seu primeiro jogo e nervosismo estava com ela.

            Sentia-se um pouco mal por não estar lá com ela, mas Dara devia estar e ela sabia mais sobre jogos do que Arlete, então não se sentia muito culpada.

            A menina sabia que estava um pouco atrasada, mas sacou o espelhangui. Vicente ainda não havia concertado o seu, mas o aparelho dela se provara tão maravilhoso quanto Alberto Antônio havia prometido. O único problema continuava sendo a barreira do El Dorado. Mesmo assim, eventualmente, Arlete selecionava o círculo com o desenho de um emissor e torcia para que, desta vez, a internet pegasse.

            Ela sabia que era uma esperança vaga, mas o fazia mesmo assim, como se, se checasse por vezes suficiente, a internet fosse funcionar.

            E foi o que fez naquela tarde, enquanto andava para o campo esportivo.

            Mas o que aconteceu foi diferente. Ela arregalou seus olhos e suas pernas travaram quando o símbolo do Google apareceu bem visível no espelhangui. O aparelho conseguira captar a internet brichote.

            E nada mais mágico jamais havia acontecido em Castelobruxo.

 


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Notas finais do capítulo

Obrigada por terem lido até aqui! Juro que vou tentar postar com mais frequência, mas não prometo nada. Se eu tiver sorte, vou tentar postar alguma coisa até o fim de semana.
Não esqueçam de comentar, seu comentário me inspira a escrever!!! :D :D (Além disso, foi meu aniversário dia 1, então acho que mereço!)
Amo vocês!



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