Castelobruxo: Anos Dourados escrita por Carolina J Martins


Capítulo 16
Capítulo 4 - Mil Olhos de Fogo


Notas iniciais do capítulo

Muito tempo depois, mas ainda viva! Por favor, não me matem! >.



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            – Que tal Eva? – Arlete sugeriu para a serpente.

            – Não seria minha primeira opção.

            – Medusa?

            – Quer dizer aquela mulher que escravizava cobras?

            Arlete suspirou. Estava tentando achar um nome que se encaixasse com a serpente, mas nenhum parecia bom o bastante para ela. Já fazia dias que procuravam um nome, mas nenhum se encaixava.

            – Sue é legal também.

            – Eu não acho.

            — Dora? Ofélia? Jade?

            – Sério, de onde tá tirando esses nomes?

            A garota se atirou na cama, frustrada, enfiando a cabeça no travesseiro. Nada parecia o bastante para a serpente.

            Elas estavam sozinhas no quarto, com a exceção de Momo, dormindo em sua gaiola. Fazia uma semana desde que as aulas haviam recomeçado e os clubes haviam sido reabertos. Carmen e Dara estavam fazendo teste para o time de trancabola das Araras Azuis e para o time de suspenobol dos Vira-latas, respectivamente. A última já participava do time desde o ano anterior, mas os testes aconteciam todos os anos, para garantir que cada time estava pegando os melhores.

            Douglas devia estar lá também, assistindo as amigas ou esperando o horário dos testes dos outros times de trancabola. Talvez até mesmo Fantasma e Cente estivessem as assistindo, Arlete não sabia dizer. Mas ela estivera conversando com a serpente quando as duas amigas haviam saído e resolvera continuar no dormitório.

            – Desisto – Falou para a jiboia. – Escolha você.

            – Não posso. Isso não seria certo. O tutor deve escolher o nome. É assim que funciona.

            – Eu aposto que as outras cobras não reclamam dos nomes que os tutores escolhem!

            – Não é culpa minha se você consegue me entender.

            — Argh!

            Por que diabos ela havia descoberto aquele poder? Conversar com cobras talvez não fosse nada tão legal assim…

            Claro, ela já pensara bastante sobre a ofidioglossia desde o dia na loja de animais. Pensara mais ainda em seu significado. Vicente e Douglas haviam dito que era um dom raro e que os Honorato eram uma família conhecida de ofidioglotas. Somado isso ao fato de que não sabia mais quem era seu pai…

            Não falara nada para os amigos. Não falara nada para ninguém. Nenhum deles sabia que seu pai não era seu pai de verdade, que seu real pai era um bruxo.

            Decidiu também que não queria falar sobre isso. Tentara colocar suas descobertas e preocupações em palavras para Carmen, mas, quando tentou, a voz simplesmente não saíra. Talvez não quisesse falar sobre isso porque apenas tornaria o fato real e imutável para sempre. Por enquanto, ela ainda podia fechar os olhos e fingir que não entreouvira a conversa dos pais no meio da noite, fingir que desconhecia o significado das palavras sussurradas. A partir do momento que Arlete falasse sobre isso, no entanto, tudo seria muito real.

            Afastou o pensamento.

            – Quer dar uma volta então? – A menina, ainda deitada na cama, perguntou para a cobra. De repente o dormitório se tornara muito sufocante.

            – Dar uma volta?

            — É. – Arlete se levantou, suspirando. – Vamos.  

            Ela pegou a cobra no viveiro e a colocou em volta do pescoço. O bicho reclamou um pouco, mas conseguiu convencê-la de que seria legal ver as outras garotas no campo esportivo.

            Desceu pelo elevador junto com uma garota mais velha, que olhou estranho para a cobra. Por um segundo, Arlete temeu que a serpente ficasse chateada, mas ela não pareceu notar. Apesar de conseguir falar sua língua, ainda não a entendia direito.

            Arlete saiu da Pirâmide Leste só para perceber que a grama estava molhada. Por um momento, a bota que fazia parte do uniforme afundou no solo lamacento, e a menina recuou um passo. Então suspirou, entendendo o que havia acontecido. Ela não entendia porque chovia tanto por ali.

            Enquanto caminhava em direção ao campo esportivo, com o sol brilhante forte em sua cabeça e os Caiporas se divertindo ao redor dos outros alunos, ela imaginou que era uma sorte que trancabola, suspenobol e quadribol fossem jogados no ar, ou seria impossível jogar qualquer um desses em Castelobruxo.

            – Ei, – Arlete chamou a cobra, sentindo-se renovada pelo clima de tranquilidade presente nos jardins. – Você gosta de Píti?

            – Eu nem sei que o que é Píti. Isso é, se estiver falando comigo.

            – É um nome! Estou tentando arranjar um nome pra você! Não posso te chamar de cobra pra sempre.

            – Píti é um nome? Nem sei direito porque estou surpresa… Você chama Arlete!
           
— Qual o problema com Arlete?

            – Rato.

            — Quê? – por algum motivo, a cabeça dela começou a doer de repente.

            – Rato. – A cobra repetiu. – Bem ali!

            A menina olhou para frente, percebendo que um garoto alto carregava seu rato no ombro. Olhou para a cobra, vendo que estava sibilava.

            – Esse rato não é de comer – Avisou. – Além disso, a moça da loja de animais me disse que eu só devia te alimentar duas vezes por mês! Não seja esfomeada.

            – Ratos são gostosos… — A cobra disse enquanto se enrolava mais em Arlete.

            Agora o campo esportivo estava próximo o bastante para ver os alunos reunidos e esperando suas vezes de mostrar do que eram feitos. Dandara estava lá, esfregando as mãos e se preparando, enquanto os testes dos times de quadribol acabavam.

            Arlete sorriu para ela e acenou, mas a garota não teve tê-la visto, pois não retribuiu o aceno.

            – Lete! – a voz vinha de trás dela, e ela se virou. Era Carmen, sentada nas arquibancadas ao lado de Douglas e Fantasma, ainda com as mãos em formato de concha em volta da boca

            – Oi! – Arlete cumprimentou os amigos enquanto subias os degraus da arquibancada e se sentava ao lado deles – E aí? Como estão indo? Já fizeram o teste?

            – Ainda não. – Douglas respondeu, colocando as mãos na nuca e deixando o corpo relaxado. Arlete ficou olhando para seu cabelo cortado. Ainda era estranho vê-lo assim. – Primeiro foram todos os times de quadribol, agora vai ser suspenobol e só depois trancabola. Mas você sabe que o melhor sempre vem por último, não é?

            Arlete riu. O amigo conseguia ser tão convencido…

            – E o Cente?

            – Que tem ele? – Douglas perguntou, sentando-se ereto. – Disse que precisava estudar e não veio. – Ele ficou em silêncio, mudando de assunto de repente: –  Já escolheu um nome para sua cobra?

            – Ainda não. – Arlete confessou. – Quero dizer, eu até já pensei em vários, mas ela não gosta de nenhum.

            – Tenta nomes de jogadoras de trancabola, igual a minha Ágata. Que tal Aya? É uma jogadora japonesa.

            – Não sei… Que tal, cobra? Gosta de Aya como nome?

            – Aya? Foi seu amigo que sugeriu? Não.

            Arlete suspirou. Olhou para Douglas e deu de ombros.

            – Ela não gostou. Vou continuar tentando, acho.

            Ela não percebera no começo, mas Douglas a olhava estranho. Parecia desconfortável, remexendo-se no banco. Arlete desviou o olhar.

            – Hum… – Ela começou, sabendo que ele a olhava assim graças à ofidioglossia. Arlete colocou o cabelo atrás da orelha, nervosa. – Você vai fazer teste para todos os times de verdade?

            O rosto de Douglas relaxou, e ele esboçou um sorriso. Jogou o peso do corpo para trás, assumindo uma pose displicente.

            – Não todos. Esse ano são dez times de trancabola, seria muita coisa. Mas vou tentar para os Estrelas Douradas, para os Jaguar e para os Furabola. Eu até tentaria para os Dragões do Mar também, se eu não soubesse que é perda de tempo. Eles só escolhem alunos a partir do quarto ano. E você? Carmen vai tentar, Dandara vai tentar. Não acha que se daria bem em algum esporte?

            – Não, gosto de voar, mas acho que não para competições, jogos… – Arlete disse. – Mas eu estava pensando em entrar em algum time.

            – Qual então?

            – Música.

            Arlete vinha pensando nisso fazia tempo. Ela sempre gostara de cantar e tinha facilidade em recordar músicas. E a diretora Araci falara que era importante participar de algum clube…

            Por um momento pareceu que Douglas fosse falar alguma coisa, mas Fantasma os interrompeu:

            – Silêncio! Olhem a Dara!

            Arlete nunca vira um jogo de suspenobol de perto. Claro, já vira os pontinhos que eram os jogadores de longe, mas nunca fora mesmo a nenhum jogo. Sabia, porém, que suspenobol era um jogo completamente diferente de qualquer outro. Para começar, eles não usavam vassoura. Ao invés disso, os jogadores se equilibravam em placas brancas e saltavam de uma para outra para se locomover pelo campo, usando tênis que os impulsionavam para cima e locomovia as placas para debaixo de seus pés. A bola, menor do que uma goles, não podia ser tocada pelas mãos, então os jogadores saltavam pelo ar, fazendo acrobacias e piruetas para conseguir passá-la.

            Dara era incrível. Mesmo que ela não fosse magra como o resto, era quase como se ela estivesse saltando em gravidade zero. Era capaz de se apoiar com as mãos nas placas brancas e chutar a bola no ar, invertendo sua direção à vontade.

            Arlete vibrou por Dara junto com os amigos. Não que ela precisasse. Quando se aproximou deles, contente, todos já sabiam que ela com certeza estaria de volta aos Vira-latas naquele ano.

            Carmen participou das audições das Araras Azuis como meio-campista. Mesmo de longe, Arlete pôde ver Ana María vibrando ao ver a lobisomem no ar.

            Eles tiveram que esperar até o fim dos testes para ver Douglas participar de todos os que ele queria. Arlete achou que ele se saiu bastante bem e, quando todos foram jantar no Salão Principal, a alegria e o entusiasmo era geral. Até mesmo a cobra sussurrava alegre no ouvido de Arlete. A comida pareceu ser mais saborosa do que o normal, e Dara, Carmen e Douglas se sentiam dentro dos times, mesmo que os resultados oficiais só fossem sair dali três dias.

 

            Arlete bocejou. Dara virou mais uma página.

            – Vamos dormir? – a mais baixa perguntou.

            – Calma. – Dara respondeu, concentrada. – Estou terminando. – Ela pensou por um momento e levantou o rosto das anotações. – Se quiser ir na frente, não tem problema. Eu já subo.

            A nova amiga estava fazendo um trabalho de Poções, que devia ser entregue no dia seguinte. Os de Arlete e Carmen já estavam prontos fazia tempo, mas Dara procrastinara até o último momento. A lobisomem já fora para o dormitório delas e não havia mais ninguém na Sala Comunal Leste. Mas Arlete prometera que esperaria. Ela pretendia cumprir a promessa, mas estava cada vez mais difícil manter os olhos abertos. Se era esse o horário que Dara ia dormir todo dia, então não lhe surpreendia que Carmen tivesse que insistir tanto para ela sair da cama de manhã.

            – Não, tudo bem. – Arlete bocejou de novo, espreguiçando-se na cadeira. – Se você está terminando… Ei, você não tem problema em subir pelo elevador também não, tem? Se você for trans pode simplesmente me dizer…

            – Não! Lete, pela última vez, eu sou negra e não sou trans. Não confunda as coisas.

            Arlete cruzou os braços, dando de ombros e encostando a cabeça no apoio da cadeira.

            – Eu tô com tanto sono…

            – Tem certeza de que não quer ir dormir?

            Arlete fechou os olhos.

            – Eu tô bem.

            Mesmo assim, podia se sentir sendo arrastada para o mundo dos sonhos devagar. Logo estaria distante demais para ser alcançada e não conseguia mais resistir…

            Mas alguma coisa começou a tocar do nada. Arlete levou um momento para entender o que estava acontecendo, então abriu os olhos, voltando à vida real.

            O espelho, em cima da mesa, vibrava e um apito baixo soava.

            Arlete o apanhou, tocando na tela.

            – Douglas? – ela passou a mão nos cabelos rápido quando percebeu quem era, tentando abrir melhor os olhos sonolentos. – Tudo bem?

            – Eu e Fantasma estamos indo para aí, ok? – ele disse, empolgado. Pela primeira vez ela percebeu que Douglas estava em movimento. Não entendia porquê.

            – Espera, onde vocês estão? O que tá acontecendo?

            – Quem é? – Dara perguntou, deixando seu trabalho de lado novamente.

            – O Doug. E acho que ele está com o Fantasma… – ela sussurrou, sem saber se tudo soava tão confuso porque ainda estava meio dormindo ou se era Douglas que não fazia sentido. – Alguma coisa assim.

            – Estou no corredor entre as Pirâmides. Eu fiquei com o Fantasma depois do toque de recolher… – Doug respondeu, fazendo um movimento de impaciência. – Não importa. Vai me encontrar. Não sei se temos muito tempo.

            – Doug, e-eu não estou entendendo nada.

            – Eu explico então – A voz soou no fundo logo antes da imagem ficar borrada no espelho e então Fantasma foi focalizado – Oi. – Ele sorria.

            – Fantasma! Por favor, me dê uma luz aqui! – Arlete pediu.

            – Olha, o que eu acho que o Douglas estava querendo dizer era que eu e ele estávamos sentados na Sala Comunal da Pirâmide Oeste e a varinha dele começou a brilhar sozinha. Depois deu um puxão e ficou quente. Achamos que ela está tentando nos levar para algum lugar. Lembra que o Sérgio disse pra gente? Varinhas de araucária às vezes tem vontade própria.

            – Então – o espelho trocou de mão. Douglas apareceu de novo. – Já que vamos em uma “missão especial” achamos que seria bom se você viesse conosco. Desce para a Sala Comunal e a gente te encontra aí. Chame as outras se quiser.

            – Ai, caramba. – Arlete disse, os olhos arregalados em empolgação.  – Eu já estou aqui. Isso parece tão legal!

            A menina olhou para frente, por cima do espelho. Por um momento, esperou encontrar o rosto de Carmen, incerta e preocupada. Ao invés disso, viu Dara, os olhos brilhando escuros tanto quanto os seus:

            – Vamos sair das Pirâmides no meio da noite! — Ela sussurrou. – Isso parece legal.

            Arlete sorriu, acompanhando a amiga. Logo depois, a porta do alçapão se abriu, e Fantasma e Douglas subiram para a Sala Comunal.

            – Lete! – Doug exclamou assim que a viu. Logo depois reparou que Dara também estava ali – Vocês desceram rápido. Vamos?

            Douglas tinha a varinha em mãos, e, de fato, ela emitia uma luz amarela estranha. Arlete não sabia o que isso significava, mas queria descobrir.

            – Vamos – Dara respondeu, fechando seus livros, levantando determinada.

            Arlete hesitou. Não parecia certo sair assim no meio da noite, quando haviam lhe dito várias vezes para não fazer isso. Ao mesmo tempo, os três amigos pareciam empolgados e parecia tão legal… Mordeu os lábios.

            Olhou para os quadros nas paredes. As pinturas mágicas que fingiam dormir agora e que não contaria nada do que elas estavam planejando fazer para ninguém. Ela sabia que não, pois eles não haviam contado nada sobre o Clube Brichote antes. E, se ninguém iria saber…

            – Arlete. Oi – Dara a chamou. – Você tá bem?

            Ela balançou a cabeça, sorrindo. Normalmente teria sido Carmen que a teria impedido, mas Carmen não estava ali. Então ela ficou de pé, sentindo-se cheia de nova força e disse:

            – Parece loucura, mas vá a frente, Doug. Mesmo que a varinha não nos levar a lugar nenhum, teremos uma história para contar amanhã.

            Todos sorriram para ela. Tinham uma aventura pela frente.

 

            Mais tarde, quando lhe pediram para contar exatamente o que acontecera, Arlete começou pela floresta. Mas essa não era bem uma verdade.

             Ela, Douglas, Fantasma e Dara haviam saído da Pirâmide Leste, tão silenciosos quanto sombra. Passaram pelo campo esportivo, segurando a respiração, e haviam apenas parado rapidamente quando Arlete comentou que seria legal ver os amigos praticando seus esportes no meio da noite, com luzinhas para ajudá-los a enxergar. Os Caiporas estavam lá também, distantes, saltitantes. Os amigos se abaixavam toda a vez que um deles olhava para a direção deles – Douglas até cobria a ponta de sua varinha, ainda brilhando, queimando e puxando-os, cada vez para mais perto das florestas, até que estavam no meio das árvores.

            – É engraçado – Douglas disse, aproximando-se de Arlete e Dara, que haviam ficado um pouco para trás. Fantasma caminhava sozinho pouco à frente – Eu achei que a varinha ia nos levar para a Pirâmide Principal.

            – Por quê? – Arlete perguntou.

            – Você sabe… – Ele passou a mão pela nuca, olhando para o lado – É um lugar muito antigo, deve estar cheio de segredos. Bom, pelo menos é que os meus irmãos sempre falam.

            – Pra onde você acha que estamos indo? – a menina continuou, sem perceber que Dara, andando do lado oposto ao de Doug, começava a andar um pouco mais rápido para alcançar Fantasma e deixava Doug e Arlete sozinhos.

            – Não tenho certeza… A floresta pode ser um lugar bem perigoso, mas acho que tenho mais medo dos Caiporas de noite do que dos possíveis monstros na floresta. Você sabe, aquelas criaturas me dão arrepios!

            – Os Caiporas? Mas eles parecem tão amigáveis!

            – Ha! Só parecem. Já lhe contei da vez em que eu e o Cente tentamos tentar em Castelobruxo de noite e eles nos perseguiram? – Douglas começou, com um meio sorriso. Arlete balançou a cabeça. – Pois bem. Antes de termos idade, eu e o Cente queríamos saber como era Castelobruxo, mas eles não nos deixavam entrar. Foi quando decidimos tentar invadir as pirâmides de noite. Não deu nada certo. Os Caiporas nos perseguiram, com os olhos vermelhos, os dentes afiados… Não foi muito legal. Nós, claro, lutamos bravamente!

            – Eu não acredito em você – Arlete sorria. Não conseguia imaginar como os Caiporas, sempre tão fofinhos, podiam ser assustadores.

            – Estou lhe dizendo! Eles se transformam, nós os derrotamos!

            Arlete apenas riu mais alto. Os dois fizeram silêncio por um momento, até que ela percebeu que Dara e Fantasma caminhavam lado a lado a frente deles.

            – Doug – Ela chamou, sem olhar diretamente para ele, ainda focados nos outros amigos. – O que você estava fazendo hoje na Pirâmide Oeste depois do toque de recolher? Não tem casa mais não?

            Douglas suspirou, olhando para baixo, como se não fosse um assunto sobre o qual quisesse falar. Isso apenas serviu para deixar Arlete mais curiosa. Ela olhou para ele, concentrada.

            – Bom, o Fantasma não estava muito bem hoje.

            Arlete franziu a testa.

            O amigo parecia bem, olhando de longe. Claro, ela sabia que às vezes alguns alunos soltavam comentários preconceituosos, ainda mais por Fantasma aparecer bastante com uma garota. Mas achava que eles já tinham passado pela pior fase. Agora, alguns babacas falavam coisas ruins, um dos amigos defendia Fantasma e ficava tudo bem.

            – O que aconteceu? – ela quis saber.

            – Pelo que ele me contou, – Douglas pareceu de repente mais sério – ele estava andando pelos andares dos dormitórios, olhando os nomes nas portas. Fantasma me disse que ele quer um nome de verdade, não só um apelido, e Blanca não serve mais. Ele se sente meio mal quando algum professor faz a chamada e tal. Só que nenhum nome parecia bom o bastante e ele não queria copiar o de ninguém, então saiu vendo todos os nomes dos outros garotos. Daí parece que alguns garotos mais velhos começaram a pegar no pé dele. Achei melhor ficou um pouco com ele.

            Arlete se sentiu encher de um sentimento ruim. Estava brava. Não. Furiosa. Não sabia quem eram os babacas ou o que haviam feito, mas ninguém tinha o direito de fazer Fantasma se sentir assim.

            – Quem eram esses piás? – Arlete perguntou, cerrando o punho instintivamente.

            Doug deu de ombros.

            – Não conheço. Fantasma disse nomes. Um era Lipe, eu acho, o outro… Não lembro.

            – O que foi que eles fizeram exatamente?

            – Fantasma não entrou em muitos detalhes, mas…

            Ele ia continuar falando, mas um barulho alto os interrompeu. Os quatro pararam.

            – Que tá acontecendo? – Arlete murmurou, em alerta.

            – Eu não sei – Douglas resmungou. – Mas a minha varinha tá ficando mais quente. Talvez esse fosse um bom momento para…

            De novo, Douglas foi interrompido. As árvores na frente deles começaram a brilhar com cada vez mais intensidade. Ou melhor, não eram as árvores brilhando, era alguma coisa atrás delas. E esse algo parecia cada vez maior, cada vez mais próximo.

            O medo paralisava Arlete.

            – Corre! – foi Douglas quem gritou assim que o monstro avançou para cima deles.

            Arlete teve apenas um momento para ver o réptil enorme antes de correr, acompanhando Douglas. Na verdade, não tinha bem certeza se era mesmo um réptil. Ela achava que tinha visto escamas, mas com tantos pontos brilhantes em seu corpo era difícil ter qualquer certeza. Só o que ela sabia era que o monstro logo estaria em cima dela e dos amigos, e eles precisavam sair dali o mais rápido possível.

            – O que diabos é aquilo? – perguntou Dara, surgindo ao lado de Arlete.

            – Eu não sei! – Ela gritou, ainda correndo.

            Dara olhou rapidamente para trás, olhando melhor o bicho:

            – Parece uma cobra gigante com mil olhos brilhantes!

            Arlete franziu a testa, tentando lembrar-se das aulas de Biomagia do ano anterior, já que ainda estavam em animais pequenos em Magizoologia. Boiunas eram serpentes enormes, mas viviam na água, não no meio da floresta. Já os mil olhos…

            Era um boitatá.

            Ela pensou em tudo o que sabia sobre boitatás. Na verdade, não era muito. Basicamente o que sabia era que eram serpentes enormes, com olhos de fogo pelo corpo todo, capazes de devorar humanos e animais em proporções iguais.

            O que não ajudava em nada a situação deles.

            Todos tinham varinhas, e, talvez, pudesse fazer algum feitiço. Arlete chegou a pensar nisso, mas não soube direito que feitiço deveria usar, então concluiu que fazia mais sentido continuar correndo. Afinal, era uma criatura mágica enorme e haviam aprendido nas aulas de Defesa Contra as Artes das Trevas que seres mágicos respondiam à magia diferente dos humanos.

            – A gente vai morrer! – Douglas gritou, e Arlete estava quase concordando com ele.

            Imaginou a comoção geral em Castelobruxo quando descobrissem que quatro alunos irresponsáveis haviam saído no meio da noite e entrado na floresta, apenas para acabarem mortos por um boitatá. Professora Jacinta ficaria tão chateada…

            – Eu não quero morrer! – Fantasma estava um pouco atrás de Arlete, e, embora pudesse ouvir sua voz, não podia vê-lo. – Não quero ser devorado por uma cobra gigante!

            Apavorada, Arlete não devia estar pensando direito antes, mas de repente as palavras fizeram sentido. O boitatá era uma serpente. Ela descobrira que era capaz de falar com serpentes.

            O boitatá ainda estava atrás deles, feroz, sibilante, aterrorizante. A sua frente, Castelobruxo já podia ser visto. Arlete olhou para os três amigos ao seu redor. Havia uma chance de salvá-los.

            – Continuem correndo! – Ela gritou, enquanto desacelerava, ficando atrás de todos eles. – Rápido, não parem!

            Nenhum deles a questionou. Douglas, um pouco a frente, olhou para ela, confuso, mas não parou.

            E, quanto os amigos pulavam para fora da floresta em direção aos jardins de Castelobruxo, Arlete parou de repente, fechando os olhos e gritando para o boitatá:

            – Espera!

            Arlete ainda não havia aprendido a usar suas habilidades ofidioglotas direito, então, por um momento, temeu não ter sido capaz de falar na língua das cobras. Permaneceu de olhos fechados por outro momento, sentindo o calor do fogo do boitatá perto de si, o hálito perto do seu rosto.

            Então abriu os olhos.

            O boitatá era imenso mesmo. Quase tão grande quanto as árvores e tão comprido que seria capaz de dar uma volta completa na Pirâmide Central tranquilamente. Mesmo assim, de perto, não era tão assustador. Estava mais para belo, com suas escamas que refletiam azul e os milhares de olhos em chamas, espalhados por todo o corpo.

            Arlete não conseguia desviar o olhar.

            Hipnose.

            – Mais uma cria de rato. Vocês estão se tornando numerosos ultimamente, não é mesmo?

            — Eu… eu… – Arlete balbuciou, sem saber bem o que falar, o que fazer. – Me perdoe. Não pretendíamos invadir sua floresta. É só que a varinha do meu amigo estava tentando mostrar alguma coisa…

            – Eu sei o que a varinha estava tentando mostrar. A floresta pede ajuda. Mas não precisamos de sua ajuda. Não vou deixar que concluam qualquer trabalho sujo que vocês tenham em mente.

            — Trabalho sujo, mas nós…

            – Não se faça de tonta, humana. Humanos estúpido me irritam mais do que os que se acham espertos. Vocês não são bem-vindos aqui!

            — Me desculpe! – Arlete gritou. – Não vamos voltar mais, me desculpe! Só achamos que seria uma aventura, uma brincadeira!

            – Isso não é brincadeira, isso é sério! Vidas podem ser colocadas em perigo. Espécies inteiras, talvez. Vocês talvez sejam diferentes de seu irmão, talvez tenham boa intenção, se a floresta chamou por vocês. Mas, o único jeito com o qual poderiam ajudar é impedindo seu irmão de entrar de novo na floresta, não vindo para cá também. Fiquem longe!

            — Meu irmão? – Arlete não entendia. Só conseguiu pensar em Matheus e Arthur, mas os dois eram brichotes e estavam do outro lado do país. – Eu não entendo, eu não…

            – Não devo aguentar vocês por aqui. É hora de sair dos meus domínios, filha do rio.

            E o boitatá avançou mais uma vez sobre Arlete, sem que a menina tivesse tempo de fazer qualquer outra coisa que não correr de novo.

            Arlete passou pela última árvore, em direção a Castelobruxo e foi quando soube que estava segura, que o boitatá não a seguiria para além disso. Ela estava quase respirando aliviada quando percebeu que os amigos não estavam em lugar nenhum à vista e que, ao invés disso, os Caiporas se aproximavam dela.

            Douglas tinha razão. De noite, eles não pareciam tão amigáveis. As criaturinhas continuavam pequenas e peludas, mas agora também eram assustadoras. Seus olhos brilhavam com intensidade, seus dentes eram bem mais afiados. E eles estavam rosnando como ela.

            – Calma, está tudo bem! Caiporas bonzinhos…

            Ela pensou em continuar correndo, mas não havia para onde. Pelo menos dez Caiporas a cercavam, tornando uma fuga improvável.

            Havia escapado do boitatá para acabar morta pelos Caiporas?

            Pelo menos foi isso o que pareceu, enquanto eles se aproximam cada vez mais e um deles abriu uma boca grande o bastante para engolir Arlete, muito maior do que seu pequeno corpo permitia.

            A menina usou os braços como proteção e fechou os olhos.

            No momento seguindo havia sido engolida.

 

            Ela achou que teria morrido, mas não foi o que aconteceu. Ao invés disso, quando voltou a abrir os olhos, estava em uma sala escura, iluminada unicamente por uma vela solitária.

            – Arlete! – Dara foi a primeira a perceber sua presença, pegando seu braço e encarando-a longamente. – Achamos que você tinha ficado na floresta!

            – Onde estamos? – Ela perguntou, colocando a mão na cabeça, ainda confusa.

            Dara, Douglas e Fantasma estavam ali, parecendo tão assustados e confusos como ela, iluminados apenas parcialmente pela vela.

            Fora muito para uma noite. Primeiro haviam saído dos dormitórios sem permissão, depois atacados por um boitatá e, por fim, “engolidos” por Caiporas. Tudo parecia um grande sonho.

            – Na Pirâmide Principal – Foi Douglas quem respondeu. – Ou pelo menos é o que achamos. Parece que essa é a sala da Araci, ou coisa do tipo.

            Ele apontava para a porta entreaberta a frente de Arlete. No começo, ela não entendeu porque, mas então ouviu alguém cantando alguma coisa e aproximou-se para espiar o que estava acontecendo do lado de fora.

            Era Araci, a diretora cega. Seus cabelos brancos flutuavam no ar, seu corpo estava envolvido por luz verde, seus lábios recitavam palavras em uma língua tão antiga que nem o Feitiço Tradutor era capaz de entender. Talvez o mais impressionante era que haviam plantas – talvez cipós ou videiras – envolvendo seus braços, pernas e seguindo pelo corpo inteiro, cobrindo até seus olhos.

            – O que ela está fazendo? – Arlete perguntou em um sussurro.

            – Não sabemos – Dara respondeu. – Mas não acho que seja boa coisa pra gente.

            – Talvez ela esteja reforçando a barreira de proteção? Talvez renovando o Feitiços Tradutor presente na Pirâmide Principal? – Fantasma sugeriu.

            – Tão tarde assim? – Dara debochou.

            – Não –Douglas estava sério como Arlete não se lembrava de tê-lo visto. – Isso parece uma magia muito mais antiga…

            Enquanto eles ainda discutiam, as palavras da diretora se tornavam mais lentas, o brilho diminuiu, as plantas se soltaram e seus olhos se abriram. Ela havia estado de lado, mas agora se virava de frente para os quatro.

            – Sr. Dorado, Sr. Duarte, Srta. Medeiros, Srta. Guimarães.  Entrem, por favor.

            Ela não devia ser capaz de vê-los, com seus olhos mergulhados em um mar claro, mas seu olhar era tão intenso que era quase como se pudesse.

            Os alunos fizeram como fora mandado, incapazes de desobedecer uma ordem direta de Araci.

            – Estou muito decepcionada com os senhores. – Ela começou – Fugindo no meio da noite para o meio da floresta, provocando seus Guardiões, colocando suas vidas em risco. – Mesmo que as palavras viessem em tom repreensivo, a diretora se mantinha calma. – Gostaria muito de ouvir suas justificativas.

            Eles hesitaram por um momento. Por fim, Douglas tomou a frente e começou a contar como ele havia ficado até mais tarde na Pirâmide Oeste e como sua varinha começou a agir sozinha. Falou como ele e Fantasma haviam encontrado Arlete e Dara e resolvido “seguir” a varinha até a floresta, onde haviam sido atacados pelo boitatá.

            – Todo mundo correu, mas a Lete ficou pra trás de algum jeito. Só lembro de ela mandando a gente correr e, quando chegamos nos jardins de Castelobruxo, não estava mais com a gente. – Ele continuou. – Eu até ia voltar pra procurar ela, mas os Caiporas nos pegaram primeiro.

            – Acho que o que o Douglas tá tentando dizer é que nós sentimos muito. – Fantasma continuou. – Juramos que não vai acontecer de novo, não é mesmo? – Ele olhou para os outros, esperando uma confirmação.

            Arlete assentiu, mas Dara apenas abaixou a cabeça e Douglas olhou para o lado.

            A diretora suspirou.

            – Espero que entendam a gravidade do que fizeram. Regras existem para proteger vocês. Felizmente tudo correu bem, mas poderia ter sido bem pior. Como esse foi um ato isolado e eu não acredito que vá voltar a se repetir, lhes darei apenas uma ocorrência para cada um. Vale lembrar que três ocorrências podem resultar em suspenção. – Ela fez uma pequena pausa. Arlete sabia que a diretora era cega, mas, por um momento, sentiu como se ela estivesse olhando para eles individualmente. – Vou pedir para que os Caiporas os acompanhem de volta a seus dormitórios e casa. – Arlete estava quase saindo com seus amigos quando Araci a chamou de volta: – Você fica, Srta. Guimarães, por favor.

            Douglas, Dara e Fantasma olharam para ela. Arlete indicou com os olhos que eles fossem à frente.

            Confusa, envergonhada, assustada, a menina ficou parada onde estava.

            – Sim? – ela disse quando os amigos saíram da sala.

            – Srta. Guimarães – a diretora continuou, mais séria do que antes. – Eu entendo que a senhorita conversou com boitatá. O que ele lhe disse?

            Arlete franziu a testa. Não se lembrava de ter dito a diretora que conversara com o boitatá. Na verdade, ela deixara que Douglas contasse tudo sozinho, e Douglas não sabia sobre sua conversa com o boitatá.

            – Apenas… Apenas lhe pedi que não nos devorasse. – Arlete continuou, mesmo um pouco apreensiva. – Ele disse que não éramos bem-vindos na floresta.

            – Mais alguma coisa? – A diretora continuou.

            – Não – Ela mentiu. O boitatá falara sobre “seu irmão”, sobre “trabalho sujo”, sobre “ajuda”. Mas, por um breve momento, Arlete percebeu que não confiava em Araci Rudá a ponto de lhe falar sobre coisa que nem ela própria entendia direito. – Só isso.

            – Muito bem. Um Caipora a acompanhará de volta para seu dormitório. – A diretora disse, sentando finalmente em sua mesa, de costas para Arlete. A menina estava quase deixando a sala mais uma vez quando Araci disse: – Quanto a sua ideia de jogar trancabola de noite… Talvez eu considere ajudá-la.

            Arlete se surpreendeu. Não era possível. Ela comentara com os amigos naquela noite que seria legal jogar no campo esportivo de noite, mas não tinha como Araci saber disso. Tudo bem, talvez a diretora pudesse concluir alguma coisa sobre sua conversa com o boitatá, mas a ideia de jogar de noite…

            A menina não conseguiu se conter:

            – Hum… Senhora, Senhora Araci… – Ela começou, um pouco sem jeito. – Será que posso perguntar uma coisa?

            – Claro, querida.

            – Ah… hum… – Seus pés haviam subitamente se tornado muito interessantes – Como a senhora sabe disso?

            Araci, ainda de costas, demorou a responder. Ela parecia considerar o que devia dizer à garota. Por fim, fez sua cadeira girar, permitindo que Arlete visse seu sorriso.

            – Ah, minha querida. Eu posso ser velha e cega, mas tenho mil olhos espalhados por aí; sei de tudo o que acontece em Castelobruxo.

            E, com essa resposta enigmática, Arlete balançou a cabeça, desejou-lhe boa noite e foi embora, sentindo a cabeça doendo com todos mistérios e se sentindo muito mais confusa do que quando havia aceitado sair da Pirâmide Leste naquela noite.

            Ela precisava dormir.


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