Castelobruxo: Anos Dourados escrita por Carolina J Martins


Capítulo 13
Ano II - Capítulo 1 - Ninho de Serpentes


Notas iniciais do capítulo

Oi! Eu sei que tá tarde, mas eu terminei o capítulo agora e queria muito postar! Espero que gostem do novo ponto de vista.



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Como costumavam ser os sonhos, aquele foi confuso. As serpentes se enroscavam, entrelaçava-se. Se era uma, duas ou mil era mais difícil dizer. Não conseguia ver nenhuma cabeça ou rabo. Tudo que sabia era que estava em frente àquele enorme emaranhado de escamas, curvas e mosaicos, tão grande que era maior do que ela.

            Não sabia também onde estava. Mas, por algum motivo, as serpentes eram fonte de terror e admiração.

            Talvez, se chegasse um pouco mais perto para tocá-las…

            – Arlete! – A voz do irmão mais novo a tirou do mundo da imaginação direto para a realidade. Ela teria parado para pensar no significado de seu sonho, não fosse o choro alto de Arthur.

            Levantou-se rápido, sem saber bem onde estava. Mas bastou que colocasse o pé no chão para que esquecesse o sonho e lembrasse da realidade.

            A casa era bem simples, térrea, com apenas uma sala ligada à cozinha e um corredor que levava aos três quartos. Na verdade, o quarto de Arlete era tão pequeno que talvez nem pudesse ser considerado um quarto. Mal havia espaço para sua cama, o armário pequeno esbarrava na cama e não abria direito, e certamente não era o bastante para suas roupas e o material de Castelobruxo. Então ela havia simplesmente socado tudo embaixo da cama, ainda mais quando sua mãe brigara com ela ao voltar.

            Nunca se esqueceria dos gritos da mulher assim que entrara. Não devia ter esperado nada diferente, já que, logo que recebera a carta pela primeira vez, ela parecera furiosa e lhe proibira de pegar o Navio Sem Parada. Fora só porque seu pai havia lhe entregado algum dinheiro e lhe dito para ir até a araucária indicada que ela conseguira ir a Castelobruxo.

            E, agora, alguns dias antes, uma nova carta chegara, convidando-a a retornar à escola.

            Desta vez sua mãe não falou nada. Ela só olhou a harpia enorme, crispou os lábios, lançou um olhar severo ao marido e se afastara.

            Arlete não sabia bem o que isso significava. Mas sabia que, apesar de com um aperto no coração, ela voltaria a Castelobruxo.

            – Arletê! – o garoto voltou a chamar, ela entrou no quarto.

            – Shh! – ela sentou na cama de Arthur, tentando acalmá-lo. Não queria que os pais deles acordassem.

            Não conseguiu impedir que Matheus, deitado na cama ao lado, acordasse.

            Ele, felizmente, apenas se mexeu um pouco, resmungando, antes de deitar para o outro lado.

            Arlete se concentrou no mais novo.

            – Que foi? – perguntou, mas nem precisou da resposta para saber. Sentada na cama do irmão, ela começava a sentir seu pijama ficando molhado. – De novo, Tutu?

            Ela suspirou quando o garoto levantou a coberta e a deixou ver onde ele manchara a cama de xixi.

            Já era a segunda noite seguida em que isso acontecia. Eles estavam tentando tirar a frauda dele, porém essa parecia uma tarefa difícil, mesmo que ele conseguisse se segurar na maioria das noites, Arlete já perdera o sono pelo menos três vezes para trocar toda a cama.

            Matheus e Arthur eram os irmãos mais novos de Arlete. O primeiro já tinha oito anos, porém o mais novo tinha apenas três.

            – Não faça barulho. Não vamos acordar mamãe e papai – Arlete disse a Arthur, tirando-o da cama.

            Estava acostumada a tomar conta dos mais novos. Com o pai sempre trabalhando e a mãe preocupada com as tarefas da casa, parecia natural que Arlete cuidasse de Matheus e Arthur. Ela nem podia imaginar como devia ter sido difícil enquanto estava em Castelobruxo…

            A ideia a encheu de remorso. Sua mãe não tinha querido que ela fosse desde o início…

            ­– Arlete... – Arthur devia ter percebido que ela parecia aérea. Estava demorando mais do que de costume para estendendo os lençóis secos.

            Demorou, mas terminou:

            – Tudo prontinho. – Disse a Arthur, ajeitando as cobertas recém-trocadas. – Tenta dormir mais um pouco.

            Arlete colocou o irmãozinho na cama, beijou sua testa e lhe desejou boa noite.

            – Boa noite, Letê. – Ele respondeu, cobrindo-se de novo.

            Arlete sorriu e deixou o quarto.

            Ela teria ido até seu quarto e voltado a dormir. Esse teria sido o certo a fazer. Mas ouviu vozes no quarto dos pais. Vozes irritadas.

            De novo: normalmente não se metia nas brigas dos pais, até porque, se fosse pega, eles brigariam com ela. Mas sabia que a discussão devia ter alguma coisa a ver com sua ida a Castelobruxo e aproximou-se, pé ante pé.

            Quando estava perto o bastante para ouvir a conversa com clareza, mas não vê-los, Arlete se encostou à parede, quase sem respirar.

            – Eu sei, Cida. – A voz do pai era rouca e grave em contraste com a aguda e furiosa da mãe:

            – Não gosto disso.

            – Eu sei, eu sei – Ele se mexeu na cama. – Mas não consigo entender. Sempre achei que quisesse se livrar da garota. Foi o que sempre me disse.

            – Não desse jeito! – a voz da mulher se elevou por um momento para voltar a abaixar: – Não deixando que ela se aproxime das coisas do pai.

            Então eles não estavam falando de Arlete. Ou, pelo menos, ela não se encaixava nas descrições. Pensando bem, ela não conhecia ninguém que se encaixasse. Continuou ouvindo:

            – Mas é perfeito, Cida! – o homem exclamou – Ela ficar longe a maior parte do ano, nós ficamos bem…         

            – Você não o conheceu, Jorge! – a mãe exclamou, suspirando logo depois. – O homem era louco. Arruinou minha vida! Bruxos, bruxas, feitiçaria, essa maluquice toda. Não são boa coisa. A última coisa que é preciso é que Arlete se pareça com o pai dela!

            Arlete congelou enquanto as palavras a atingiam. O jeito que a mãe falou, colocando seu pai em terceira pessoa, como se não estivesse falando com ele, como se…

            Como se o homem gordo deitado ao seu lado não fosse o pai de Arlete.

            Por um momento o ar desapareceu. Sua cabeça dava voltas, seu estômago deu um salto. Ela achou que ia passar mal de verdade.

            Estava entendendo certo?

            – Por que acha que eu nunca falei nada pra ela? Eu não quero que ela vá procurar aquele babaca. Você conhece Arlete. Seria capaz de fazer amizade com um drogado se ninguém tirasse ela de lá. Deixar que ela vá pra essa droga de escola de bruxos é como deixar que ela se aproxime dele.

            A mãe de Arlete estava visivelmente furiosa, mas seu pai tentava acalmá-la. Ou melhor, o seu… não-pai?

            – Deixe que ela vá e fique por lá. – ele disse, e o som de seu peso se mexendo sobre os lenços se fez novamente. – Vamos dormir, Cida. Tem muito tempo pra gente se preocupar com isso. Tá tudo bem. E tô com sono.

            Os lençóis se mexeram e tudo ficou silencioso.

            Arlete permaneceu paralisada.

            Devia ser um sonho. Não podia ser real. Ela passara a vida inteira ao lado da mulher e do homem deitados na cama, não podia acreditar que haviam mentido assim a ela.

            Mas, se fosse um sonho, já teria acordado.

            Nunca soube exatamente quanto tempo passara ali no escuro. Voltou ao seu quarto quando conseguiu retomar os sentidos das pernas, e a barriga não dava mais tantas voltas.

            Sentou-se na cama, os olhos ainda encarando o vazio. Jorge Guimarães não era seu pai. Mas ela não devia saber se ele não fosse seu pai? Claro, as pessoas sempre haviam lhe dito que parecia mais com a mãe, mas isso parecia normal…

            Ela queria falar com alguém, não conseguia guardar tanta coisa pra si mesma. Porém, a única pessoa em que confiava o bastante para desabafar e procurar por ajuda naquele momento era Carmen, e Carmen dificilmente a responderia tão tarde da noite.

            Não pelo fato de que a amiga morava tão longe, esse problema teria sido facilmente resolvido pelo espelho mágico embaixo de sua cama, mas ela devia estar dormindo…

            Arlete conhecera Carmen Lúcia Acheu em Castelobruxo no último ano. As duas tinham se tornado amigas inseparáveis rapidamente, e Arlete se virava a ela sempre que precisava de respostas mais racionais. Pois Carmen podia ser uma lobisomem, ler sentimentos e se sentir melhor no meio de árvores do que pessoas, mas ela costumava estar certa e Arlete confiava nela.

            Esse seria um momento perfeito para um conselho dela.

            Não podia lhe chamar pelo espelho, mas precisava falar com ela. Então levantou-se, pegando papel e caneta e rabiscando uma carta. Pela manhã, Carmen a receberia e saberia que Arlete precisava dela.

            Arlete chamou uma harpia com seu apito mudo. Ela, pelo menos, não conseguia ouvir nada. Mas uma harpia ouviu, e Arlete teve que se afastar para deixar a ave enorme pousar no parapeito.

            – Entregue isso a Carmen Lúcia Acheu. – disse, estendendo a carta– Ela mora em algum lugar no Maranhão… Ela, hum… É uma lobisomem, pertence a um clã… – Franziu a testa, sem conseguir se lembrar de mais nada. Chateada, olhou para a ave: – Espero que seja informação suficiente.

            Devia ser, pois a harpia levantou voou e partiu.

            Arlete suspirou enquanto fechava a janela e se deitava na cama de novo.

            Ela não sabia que horas eram, mas devia passar da meia noite. Carmen certamente receberia a carta pela manhã. Não havia nada que Arlete pudesse fazer que não esperar.

            Imaginou que seria difícil pegar no sono novamente, mas mal se virou de lado, abraçou o lençol e já estava dormindo. Não sabia que estava tão cansada.

 

           As serpentes se contorciam, enrolando-se cada vez mais. A menina tinha vontade de gritar para elas que estavam fazendo errado, que aquele não era o melhor jeito para se soltarem. Mas a boca estava seca e a garganta bloqueada.

            Ra… raaa… toto… ratooooo.

            A voz tinha dificuldade em chegar até a menina, quase como se viesse de um rádio fora de sintonia. Ela não entendia. Sentia o impulso de soltar as serpentes, sentia como se elas estivessem presas. E queria ajudar, mas não sabia como.

            – Arlete. – Alguém tocava seu ombro gentilmente. – Acorda, Arlete.

            – Hum, hum? – ela formou seus olhos a se abrirem apesar da luz em seu rosto. Matheus entrou embaçado em seu campo de vista. – Que horas são?

            – São dez horas – o irmão disse. – O Carlos me convidou pra almoçar na casa dele. Mamãe disse que tudo bem se você me levar.

            – Eu, hum… – Arlete se sentou na cama, esfregando os olhos. – Eu te levo, só espera… Espera eu me trocar e nós vamos.

            Matheus balançou a cabeça, dando espaço para ela se arrumar e saindo do quarto.

            Arlete ainda demorou alguns momentos para acordar totalmente. Ela sempre achara difícil sair da cama de manhã. Fechou os olhos com força. Sabia que sonhara com alguma coisa, mas não lembrava com o que.

            – Concentra – murmurou para si mesma.

            Respirou fundo e saltou para fora da cama.

            Mas ela não estava totalmente concentrada enquanto procurava por uma roupa na mala embaixo da cama. Por algum motivo, estava pensando em ratos. Ela vira alguns alunos com ratos em Castelobruxo; talvez devesse adotar um rato.

            Estava tão fixa na ideia de adotar algum animal que nem percebeu a bagunça que fizera em seu quarto. Enquanto tentava achar uma roupa legal, esparramara o resto sobre a cama e pelo chão.

            Ficou de pé, olhando para o pequeno caos.

            – Arletê! – A grito do irmão fora do quarto era impaciente.

            Ela ainda iria demorar muito para arrumar o quarto a não ser que…

            Olhando para os lados e se certificando que a ninguém iria vê-la, Arlete apanhou sua varinha dentro da bainha, presa nas tábuas da cama.

            Como era bom pegar a varinha de amieiro de novo, sentir o quartzo rosa na ponta. A madeira parecia se encaixar perfeitamente em suas mãos, e Arlete precisou apenas do mais simples movimento para arrumar o quarto:

            – Reparo.

            Imediatamente cada peça de roupa voltou a seu lugar como se nunca tivesse saído de lá.

            Apenas o short e a blusa roxa que ela segurava ficaram para fora. Ela se trocou o mais rápido que pode porque o irmão estava a gritando de novo.

            Jogou uma bolsa no ombro e pegou o celular antes de sair do quarto. No mundo bruxo, ela tivera que brigar para conseguir um espelho para conversar com os amigos; no mundo brichote, ela tinha seu próprio celular com acesso a wi-fi.

            Foi só quando pegou o aparelhinho que percebeu que tinha uma mensagem nova:

            Luísa Galucci S2: Ei, sumida! Tô com sdds de ti!

            Luísa era uma das melhores amigas de Arlete ali em Paranaguá. As duas, Júlia, Rebeca e Marina haviam sido coladas durantes anos até Júlia mudou de escola, Rebeca achou novas amigas e Marina brigou com Arlete por ir para Castelobruxo sem avisar ou se despedir. Agora ela só tinha Luísa.

            Ela ainda estava a respondendo quando chegou na sala.

            Sua mãe varria o chão. Cida Guimarães não tinha nem quarenta, mas parecia mais velha do que realmente era. Sua pele parecia envelhecida pela falta de cuidado, o cabelo preso em um rabo rala e as olheiras escuras enfeitando os olhos. Arlete nunca diria que ela era feia, mas já vira fotos suas de quando jovem e sabia que perdera mais da metade de toda a beleza que um dia tivera.

            – Mãe, a senhora se importa se, depois de levar o Matheus, eu vá dar um oi pra Luísa?

            Dona Cida apenas levantou os olhos brevemente para ela.

            – Faça como quiser. – Então esticou a mão, apontando para a cozinha. – Compra as coisas da lista que tá em cima da bancada. Dentro da gaveta tem dinheiro.

            Arlete assentiu, mas, quando foi colocar o celular no bolso de trás, ela percebeu que a varinha estava ali.

            Gelou por um momento. Se sua mãe visse a varinha…

            Ela ainda lembrava-se da noite anterior, da conversa que entreouvira. Jorge não era seu pai, Cida odiava bruxos.

            Não queria que a mãe ficasse brava, então enfiou celular e varinha no bolso, fazendo o possível para a mãe não perceber.

            Felizmente teve sucesso, então pegou a lista e o dinheiro também. Estava quase saindo quando se lembrou:

            – Mãe, a senhora vai ficar bem sozinha com o Arthur?

            A mulher nem levantou a cabeça. Apenas a balançou positivamente. Arlete não tinha certeza se estava tudo bem, mas saiu mesmo assim, indo encontrar Matheus sentado na calçada.

            – Você demorou muito! – o menino reclamou enquanto ficava de pé.

            ­– Ih... Tem que agradecer que eu sai da cama pra te levar, ou você nem ia. – Estendeu-lhe o braço, forçando um sorriso. – Vamos.

            Matheus fez uma cara feia, mas deixou que a irmã colocasse o braço em seu ombro.

            As ruas de Paranaguá eram, em sua maioria, antigas. Era compreensível, afinal aquela era a cidade mais antiga do Paraná. Mas a rua de Arlete não era apenas antiga, ela também contava com vários buracos, casas mal pintadas e lixo aqui ou ali.

            Mesmo assim, Arlete guardava boas memórias do lugar. Fora ali que crescera, conhecia a maioria dos vizinhos e nunca lhe acontecera nada de mal. Dona Clara, que morava a duas casa da sua, às vezes até lhe dava bolo!

            O amigo de Matheus, porém, morava algumas quadras para cima.

            No começou tanto Arlete quanto Matheus estavam em silêncio. Porém a garota logo descobriu que só conseguia lembra a conversa de seus pais na noite anterior e não queria pensar sobre isso.

            – Então, Mat... – Ela começou. – O que você vão fazer lá?

            – Jogar videogame, eu acho – mas o irmão nem olhou direito pra ela. – Eu não sei porque a mãe quis me trouxesse. Eu sei o caminho. Eu posso ir sozinho.

            – Ah, que foi? Não gosta da minha companhia? – Arlete perguntou, sorrindo.

            Matheus finalmente olhou para ela, e não estava feliz:

            – Não é isso. É só que eu não preciso de babá!

            – Não pense em mim como babá, então. Pense em mim como sua irmã simplesmente caminhando com você.

            Ele bufou e voltou a se calar. Arlete não entendia porque ele parecia tão incomodado, mas continuou o encarando.

            Matheus e ela eram parecidos. Os dois compartilhavam os cabelos lisos e castanhos, os olhos escuros e os lábios finos. Claro, tudo isso era herança da mãe deles, mas mesmo assim...

            Não conseguia acreditar que o pai de Matheus não era seu pai também.

            Era tão estranho! Crescera com Jorge, ele estava lá desde que podia se lembrar. Sempre o chamara de pai, fizera cartões pra ele no dia dos pais, recebera seu abraços com carinho. Mesmo assim, biologicamente falando, eles não eram parentes.

            Arlete se sentia tão esquisita!

            Não queria pensar muito nisso, então, depois de deixar Matheus na casa do amigo e partir para encontrar Luísa, ficou imaginando como seria seu novo ano em Castelobruxo.

            A escola mágica era incrível. Toda feita de ouro no formato de uma pirâmide, com centenas de vagas e professores geniais. Biomagia era sua matéria favorita, e ouvira dizer que no segundo ano ela era dividida em Herbologia e Zoomagiologia, o que era fantástico!

            Em meio a tudo isso, sentia mais falta dos amigos. Carmen era uma deles, mas ela também fizera amizade com o metamorfomago Douglas, o tímido Fantasma e o inteligente Vicente.

            Fora Carmen, ela não falara tanto quanto gostaria com nenhum dos outros durante as férias. Porém em uma semana ela estaria de volta.

            Arlete ainda estava cantarolando Entre a Serpente e a Estrela de Zé Ramalho quando desceu do ônibus em direção ao Mercado do Artesanato.

            A mãe de Luísa fazia cestas e pratos pintados e vendia para turistas. Não era sempre, mas algumas vezes Luísa a acompanhava e, pelo celular, Arlete sabia que ela estava lá.

            ­O Mercado do Artesanato ficava perto do rio, não do mar, e mesmo assim o cheiro de peixe podia ser forte. Paranaguá era uma cidade litorânea e muitos moradores viviam do mar. Eles também tinham um porto enorme (Arlete achava que era o maior exportador de grãos do Brasil, mas não tinha certeza). E, mesmo morando tão perto do mar, Arlete quase nunca ia a praia.

            As ruas do centro histórico, onde ela desceu, ainda eram feitas de pedra e as construções pareciam ainda mais antigas. As pinturas das construções eram mais coloridas, e as estruturas lembravam algo que datava da fundação da cidade. Porém, o estado de conservação dos edifícios era um tanto precário. Nenhuma construção conseguia vencer o tempo sem reformas, o que era compreensível. Mesmo assim, Arlete sempre adorara aquela sensação de viajar no tempo quando passava pelas ruas apertadas do centro histórico.

            – Lete! – Luísa veio em sua direção antes mesmo que ela entrasse no box onde sua mãe trabalhava. – Faz tanto tempo que eu não te vejo!

            Luísa tinha a pele negra e os cabelos cacheados e curtos. Ela era mais alta do que Arlete, porém não era muito difícil ser mais alto do que a menina. Ela também achava impressionante que os olhos de Luísa eram de um castanho mais claro do que o dela.

            – Nossa, eu tava morrendo de saudade. – Arlete a abraçou, sorrindo também. – A gente não se vê já vai fazer um ano, não é?

            – Acho que sim. Tua mãe disse que você foi pra uma escola interna! – Luísa continuou falando enquanto elas iam em direção da mãe desta. – Eu nem sabia que existiam escolas internas no Brasil... Como é que foi?

            – Muito legal. Oi, tia Miranda. – Arlete cumprimentou a mãe da outra, que estava atrás do balcão. Aproximou-se então para lhe dar um beijo também.

            – Onde que você se meteu, Arlete? – a mulher, parecida com Luísa contudo mais alta e mais gorda, perguntou. – Já faz tempo que tu não aparece lá em casa!

            – Meu pai me mandou para um colégio interno no Amazonas. –  a menina sorria.

            – No Amazonas? – o rosto de dona Miranda se contorceu em dúvida – Por que tão longe?

            – Bom, porque... – Arlete não esperava essa pergunta. Teve que pensar um pouco antes de responder: – Porque eu recebi uma bolsa de estudos. É uma escola voltada para a natureza. Uma boa coisa pro meu futuro.

            – Ah, então tu quer ser bióloga? – Dona Miranda perguntou.

            Mas Luísa não deixou que ela respondesse:

            – Eu nunca soube que tu queria ser bióloga! – ela exclamou, emendando: – Mas me mostra as fotos!

            – Ah... – Arlete estava começando a ficar um pouco sem graça. Sabia que sua história parecia um pouco confusa, mas não esperava que Luísa e sua mãe fizessem tantas perguntas: – Na verdade, não posso usar celular lá. Não tenho fotos.

            – Poxa... Parece ser um lugar bem ruim – Luísa lhe lançou um olhar de desprezo e decepção. – Qual o nome?

            – O nome...

            Felizmente Arlete foi salva pelo cliente que acabara de entrar. Ela aproveitou que dona Miranda estava falando sobre seus pratos pintados para avisar a Luísa que precisava ir embora.

            – Mas tu mal chegou! – a amiga protestou.

            – Eu sei, mas... – ela colocou a mão na bolsa, esbarrando em sua varinha e no celular. Então puxou a lista para fora. – Minha mãe disse que eu tenho que comprar essas coisas. A gente vai se conversando por celular, ok? – E Arlete saiu daqui o mais rápido que pôde, evitando mais perguntas sobre Castelobruxo.

            Ela só respirou aliviada quando já deixara o Mercado do Artesanato e se dirigia ao Mercado Municipal.

            Arlete amava Castelobruxo e amava Luísa, mas percebeu que misturar as duas coisas não parecia bom.     

            Imaginou o que aconteceria se Luísa descobrisse a verdade sobre Castelobruxo. Será que ela ia odiá-la tanto quanto sua mãe odiava bruxos?

            Arlete evitou pensar sobre isso pela próxima hora enquanto comprava tudo o que precisava. Ela teve que prender a respiração enquanto a moça passava os produtos, com medo do dinheiro não ser o suficiente, mas felizmente ela ainda saiu de lá com alguns reais de troco.

            Foi só quando saiu de lá que percebeu como estava com fome. Não comera nada o dia inteiro já passava do horário do almoço.

            Contou o troco e resolveu que era o bastante para comprar um sorvete e ainda sobraria dinheiro para voltar para casa de ônibus. Então foi o que ela fez.

            Ela voltou para casa e o resto do dia pareceu passar rápido por algum motivo. A única coisa que a deixava triste era quando olhava para Arthur e percebia as características que ele tinha em comum com Jorge e ela não.

            Não teve coragem de perguntar nada para a mãe. Não queria que ela soubesse que ouvira a conversa e temia ser impedida de ir a Castelobruxo se a mãe descobrisse que ela sabia a verdade.

            E, no fim da tarde, quando a mãe disse que ela tinha que ir buscar Matheus, ela pegou sua bolsa e saiu.

            O sol estava quase se pondo, pintando sua rua de um tom bonito. Arlete podia sentir uma brisa gostosa no rosto, então sorriu, aproveitando o passeio. Tudo parecia tão tranquilo...

            Sua tranquilidade só foi perturbada quando chegou na casa de Carlos, e Matheus lhe disse que não queria ir embora. Eles estavam terminando uma partida de videogame e ele ainda demorar um pouco.

            – E você quer que eu fique esperando você aqui fora? – perguntou.

            – Não – Foi Carlos quem respondeu, parecendo tão ansioso quanto Matheus. – Você pode entrar. A gente tá quase acabando...

            – Por favor, Arletê! – Matheus pediu.

            A menina considerou por um momento. Sua mãe talvez ficasse brava, mas Matheus lhe dissera que seria rápido...

            E conseguia entender porque Matheus queria tanto ficar mais um pouco. Eles nunca poderiam ter um videogame como aqueles sem casa.

            – Tudo bem. – Ela assentiu por fim. – Mas não demorem, ok?

            Os dois sorriram, voltando para dentro e sendo acompanhando por Arlete.

            Ela sentou no sofá e ficou olhando enquanto eles jogavam um jogo violento, em que tinham que lutar um com o outro. Arlete não entendia o propósito daquilo. Talvez se fosse sobre animais...

            No fim, o jogo durou mais do que uma hora. Ela estava começando a se preocupar quando Matheus se levantou e se despediu de Carlos:

            – Isso foi bom! – ele pegou a mão de Carlos. –  Mesma hora amanhã?

            – É – Carlos sorriu. – E talvez eu te vença dessa vez.

            – Rá! Vai sonhando!

            Sonhando... Arlete pensou ter lembrado de alguma coisa, uma imagem distante. Mas não conseguiu pensar em nada, então talvez aquilo fosse besteira.

            Quando Arlete e Matheus deixaram a casa, já estava escuro e não conseguia ver ninguém na rua. Ela não gostava daquilo, mas sua casa era apenas alguns quarteirões daqui, então continuou andando.

            – Ei, gostosa!

            – Urrou, delícia! Psiu, olha pra cá!

            – É, gata, qual o problema?

            Ela ouvia as risadas e gritos atrás de si. Segurou a mãe de Matheus. Não sabia de onde aqueles dois tinham vindo, mas pareciam cada vez mais próximos. Arlete não sabia o que deveria fazer se eles viessem para cima dela e de Matheus. Então apenas abaixou a cabeça e fingiu que não era com ela.

            Na verdade, aquela não era a primeira vez que algo do tipo acontecia. As outras vezes, porém, haviam acontecido em ônibus lotados. Ter outras pessoas ao seu redor lhe dava uma sensação de segurança, como se ninguém pudesse tocá-la em multidões. Ali não havia ninguém para vir em seu socorro, e ela nunca se sentira tão assustada.

            As vozes então pararam, mas os risos continuaram. Ela achava que os dois adultos – com mais do que o dobro da idade dela – deviam estar bêbados.

            Matheus olhou para a irmã, buscando ajuda, uma instrução do que fazer.

            Arlete continuou olhando para baixo.

            Apesar das risadas estarem cada vez mais alta, ela ficou aliviada em perceber que os homens passaram direito do lado dela, sem tocar ela ou Matheus. Não sem antes, claro, um deles soltar:

            – Se tu fosse minha, eu matava esse piá baixote e te levava pra minha casa.

            Essa foi a gota d’água. Os dois já estava bem na frente deles e logo teriam desaparecido, Arlete e Matheus já haviam chegado na rua em que deviam virar. Mas eles haviam irritado Arlete de verdade.

            Ela enfiou a mão na bolsa, puxando a varinha. Escondeu-a meio atrás do corpo, mantendo-a longe da vista dos dois homens, mas apontando-a para eles.

            – Bamboé— ela murmurou. Alto o bastante apenas para Matheus escutar.

            Imediatamente as pernas do da esquerda falharam. Ele apoiou-se em seu companheiro e, bêbados, os dois quase caíram.           

            – O que tá acontecendo, homem?

            – Não sei!

            – Levanta!

            Mas não adiantava, mas pernas dele não se firmavam. Por algum motivo pareciam bambas demais.

            – Me ajuda!

            – Mible Wimble. — Arlete disse, apontando a varinha para o outro.      

            – C-comoooooo t-t-t-t-t-tu queeeeer que eeeeeu f-f-a-a-a-faça iiii-i-sso-so? – ele cobriu a boca, assustado. – N-não consiiigo-o-o-o-o f-f-fala-la-lar!

            – O que é isso? – ele disse, ainda lutando para firmar as pernas.

            Matheus olhou para Arlete, os olhos arregalados. Ela achava que ele estava bem impressionado.

            Sorriu para ele.

            – V’mo bora. – Ela lhe sussurrou, apertando sua mão e avançando pela rua lateral.

            Os irmãos correram o mais rápido que podiam, deixando os dois babacas para trás. Arlete sabia que os feitiços deviam passar logo e eles estariam de volta ao normal, mas, pelo menos, ela não os deixara ilesos.

            Ela aprendera aqueles dois feitiços com o amigo Douglas durante as últimas férias de julho. Ele havia lhe dito que o irmão mais velho havia lhe ensinado aquilo.

            Arlete também sabia que só devia praticar magia fora de Castelobruxo com descrição, longe da vista de brichotes, ou dos humanos que haviam nascido sem magia. Sabia que havia arriscado uma expulsão, mas, pelo menos, fizera o que tinha que fazer sem que os homens percebessem qualquer coisa ou que ela se metesse em confusão.

            Matheus havia visto, porém, Jacinta, a vice-diretora de Castelobruxo, havia dito que tudo bem usar magia perto dos familiares que já sabiam sobre magia, então Arlete duvidava que teria problemas depois.

            Quando Arlete e Matheus chegaram a casa deles, sua mãe os esperava na porta.

            – Posso saber onde é que os dois tavam? Quase morri de preocupação!

            – Tá tudo bem, mãe – Arlete disse, sorrindo. – O Matheus me pediu pra esperar um pouco porque ele estava terminando uma partida do jogo...

            – Hum... – A mãe apenas murmurou, fazendo silêncio por alguns momentos. – Vão jantar logo. Nós já jantamos.

            Os dois fizeram como lhes fora dito. A comida estava no forno, e Arlete se serviu de arroz, feijão e ovo.

            Ela e Matheus não conversaram enquanto comiam. A mãe deles ficou na porta da cozinha, esperando que eles terminassem, então Arlete não disse nada sobre os homens na rua.

            – Pronto – a mãe disse quando viu o que os dois haviam terminado. – Arlete, lave a louça, eu vou colocar os meninos pra dormir.

            Arlete assentiu enquanto a mãe e Matheus saiam da cozinha.

            Enquanto ensaboava um prato, Arlete pensou em Jorge. Não o vira o dia todo, mas talvez assim fosse melhor. Não conseguia imaginar o que faria se o visse, sabendo que ele não era seu pai...

            Não conseguia acredita que nunca desconfiara de nada!

            Pensou também sobre seu dia. E que dia! Luísa ainda lhe mandara várias mensagens, falando como ela se fora rápido, ela esperava que os homens ainda estivessem tentando se recuperar dos feitiços e a cabeça dela parecia cheia demais.

            Definitivamente precisava falar com Carmen. Só esperava que ela tivesse recebido sua carta...

            – Ei, eu te ajudo – disse a mãe, voltando para a cozinha. Arlete abriu espaço para a mulher, enxugando o copo que tinha em mãos.

            As duas ficaram em silêncio por um tempo. Arlete queria falar, mas não conseguia pensar em nada que não a conversa que ouvira na noite anterior. Então achou melhor permanecer calada. Foi Cida quem falou primeiro:

            – Matheus me disse o que você fez na rua.

            – O que ele disse?

            – Não se faça de desentendida – a mãe parou de fazer o que estava fazendo e a encarou, séria. Não chegou a gritar, mas sua voz firme deixava claro o quanto estava decepcionada. – Já lhe disse que não deve usar magia aqui.

            – Mas, mãe, eles...

            – Não quero saber. Não vou permitir que coloque essa família em perigo.

            – Perigo? Eu só estava tentando...

            – Shiu. – A mãe exigiu silêncio, e Arlete se calou. Cida não conseguiu olhar para a filha, então voltou a enxaguar o prato. – Talvez seja melhor mesmo que você vá pra Castelobruxo.

            Arlete não conseguia se mexer. Ela só ficou parada ali, olhando para a mãe e sentindo os olhos ardendo:

            – Você não me quer por perto, mãe?

            Cida suspirou, parando novamente de limpar a louça. Não olhou para Arlete desta vez:

            – Vá para seu quarto. Eu termino isso sozinha.

            Arlete deixou o prato que ainda segurava em cima da bancada e deixou a cozinha.

            Ela deitou em sua cama, querendo chorando, sentindo as lágrimas presas em seus olhos, mas, por algum motivo, ela não conseguia.

            Após alguns minutos, ela ouviu passos no corredor. Imaginou que era a mãe, mas não queria conversar com ela, então apagou a luz.

            Os passos passaram reto por seu quarto.

            A verdade era que Arlete se sentia perdida. Só queria ir para Castelobruxo, onde não havia pais com quem se preocupar, amigas para a pressionarem, irmãos para levar para cuidar e estranhos para a machucarem.

            Mesmo no escuro, procurou sua carta de Castelobruxo. Sabia exatamente onde ela estava. Em baixo da cama, perto de onde normalmente deixava a varinha, em um lugar fácil de pegar. Gostava de olhar para carta e imaginar que logo voltaria à escola.

            Seu espelho acendeu e vibrou enquanto ainda estava deitada. Arlete avançou para ele antes que alguém na casa ouvisse.

            – Oi! – Arlete exclamou, feliz em ver o rosto de Carmen, emoldurando por sua massa de cabelos bonitos e castanhos. Era tão bom conversar com a amiga! – Já recebeu a sua? – ela perguntou, exibindo sua carta de Castelobruxo.

            – Ontem de manhã – Como era bom ouvir aquele sotaque!

O quarto de Carmen também estava escuro. Arlete sabia que ela dormia com sua irmã, então devia ser por isso que ela estava sussurrando. Carmen continuou:

            – Tive sorte que a harpia chegou antes dos meus parentes, ou eles me encheriam pelo resto da reunião.

            Os parentes de Carmen eram lobisomens, tal como a garota. Arlete tinha uma vaga noção de que havia certa rixa não pronunciada entre os bruxos e os lobisomens, então entendeu a amiga. Talvez ela própria devesse ter escondido sua carta quando chegou, assim sua mãe não pareceria tão chateada.

            Mas aquele não era o momento para pensar em coisas ruins.

            – Nem dá pra acreditar que já faz tanto tempo! – Arlete exclamou, ainda sorrindo.

            – Eu sei! – o sorriso de Carmen também se alargou, deixando bem aparente seus dentes da frente bem separados. Arlete achava que, tal como seus cabelos, os dentes levemente separados eram um charme da amiga, embora não soubesse se Carmen também pensava isso. A nordestina continuou: – Tô sentindo tanto a falta de vocês... – Arlete não soube o que aconteceu, mas Carmen cobriu a boca de repente: – Ei, desculpa ficar tão pouco, mas acho melhor desligar ou vou acabar acordando minha prima. Vou te enviar uma harpia assim que eles forem embora, tá bom? Boa noite, Lete!

            Arlete demorou meio segundo para entender o que estava acontecendo. Acontecera tudo tão rápido.

            – Boa noite! – exclamou de volta, desligando a conexão rápido para que Carmen não percebesse que seus olham haviam se enchido de lágrimas de novo.

            Desta vez conseguiu chorar. Deixou que as lágrimas escorressem livremente enquanto afastava o espelho e a carta de Castelobruxo. O pior, era que nem sabia bem porque estava chorando.

            Deitou a cabeça no travesseiro e chorou em silêncio até cair no sono.

            O próximo dia seria melhor.


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Notas finais do capítulo

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