Castelobruxo: Anos Dourados escrita por Carolina J Martins


Capítulo 11
Capítulo 11 - Fantasma Assombrado


Notas iniciais do capítulo

Eu SEI! Faz muito tempo que eu não posto nada. Mas dessa vez eu tenho uma boa razão! Eu tive um problema de tendinite no punho direito e é muito difícil digitar só com o esquerdo... Mas já estou melhor, quase de féria e fervendo de vontade de escrever mais :D
Juro também que vou responder todos os comentários que ficaram pra trás, mas vocês tem que ter paciência comigo, porque essa é minha última semana de provas. :O

Bom, vamos descobrir qual o segredo da Fantasma! Ah, e esse é o penúltimo capítulo desse ano, o que quer dizer que logo teremos uma mudança no ponto de vista.



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            Perder o medo de altura não foi tão fácil quanto Carmen Lúcia imaginou que seria. Ela achou que o pior já passara, que não havia como sentir mais medo do que já sentira. Achou que sua própria aula de Voo seria simples, mas foi ainda mais complicada. Seus pés não queriam obedecê-la e dar o impulso para subir. Por um momento, pareceu que ela tinha regredido e a experiência de subir tão alto apenas a traumatizara mais. Porém, depois, quando conseguiu alcançar o ar, ela sentiu uma sensação boa pelo corpo.

            – Ei, você tá mais alto hoje! – Arlete exclamara, animada, quando a viu voando.

            Carmen Lúcia também se sentia melhor. Claro, não tinha intimidade com o ar ainda e voar livremente como Arlete e os outros alunos faziam ainda parecia distante, mas pelo menos não estava assustada em ter o chão tão longe de si. Ali, no ar, havia também alguma conexão. Frágil e quebradiça, mas havia. As aves cantavam, os insetos voavam, o vento acariciava sua pele e cabelos. 

            – Muito bom, Srta. Acheu – a professora Lídia elogiou quando todos pousaram. Sua pena mágica flutuante anotou alguma coisa em um bloco de notas.

            A professora lhe chamou no fim da aula e disse que devia investir nessa coragem recém-descoberta. Lembrou-lhe que a varinha dela era de castanheiro-do-pará e que talvez ela acabasse em um dos times de trancabola, quadribol ou suspenobol. Carmen Lúcia duvidava, mas agradeceu pela confiança.

            Mesmo assim, sentia-se mais leve quando voltou para a Pirâmide Principal junto com Arlete, ainda que a professora Lídia as tivesse atrasado um pouco. Não havia prazer maior do que conseguir fazer algo que parecia impossível antes.

            – Nossa, Carmen! Foi muito melhor do que das outras vezes! Quem sabe se você praticar pode até entrar em algum time de trancabola! Ia ser muito legal! Eu queria que a Fantasma tivesse visto… A gente sabe que você tinha medo de altura, mesmo que você não gostasse de falar, mas eu também sabia que você ia conseguir! A Fantasma achava que não, que não dá pra fazer as coisas com medo… Por falar nisso, onde será que ela está?

            Fantasma não aparecera para dormir no dormitório delas nem para a primeira aula daquele dia. Isso já se tornar tão comum, que elas nem se preocupavam mais, porém Carmen Lúcia tinha esperança de que ela aparecesse para a aula de Poções.

            A sala de Poções ficava no primeiro andar, e era ministrada pelo jovem professor Marcelo, não muito mais velho do que os alunos do sétimo ano. Talvez por isso ele ainda soubesse o que era ser aluno e nunca se importava quando elas estavam um pouco atrasadas.

            Mas aquele não foi o melhor dia para se atrasarem. Pois, assim que elas alcançaram o primeiro andar, viram uma espécie de toldo que escondida o lugar e uma placa que dizia:

            Devido a uma infestação de sacis, todo o 1º andar foi transferido para o 2.5º andar.

            — Onde fica isso? – Arlete perguntou, franzindo a testa. – Pra mim que só existiam o primeiro, o segundo e o terceiro andar. Nada de um andar dois e meio.

            – Bom… – Carmen Lúcia também não sabia direito o que fazer – Talvez nós devêssemos ir até o segundo andar e perguntar pra alguém.

            Mas, antes que pudessem subir mais um lance de escadas, os ouvidos aguçados da lobisomem captaram alguma coisa. Arlete começava a falar alguma coisa sobre a capacidade dos bruxos de criarem lugares diferentes e estava subindo o primeiro degrau quando Carmen Lúcia a parou.

            – Shh. Tá ouvindo isso? – de repente ela estava atenta como um lobo que fareja uma presa.

            – O quê? – Arlete perguntou, tentando se concentrar também.

            – Isso… – Ela transformou as orelhas, tornando o som mais alto. – Parece que tem alguém… chorando?

            – Chorando? – Arlete olhou, preocupada, para a amiga. – Onde?

            – Pra lá. – Carmen Lúcia apontou para o toldo em direção ao primeiro andar.

            – A gente não pode ir pra lá! – a outra sussurrou, ainda mais preocupada. – A gente aprendeu em Biomagia que os sacis gostam de fazer travessuras! Imagina se um entrar no meu cabelo. Tem certeza de que não é o som dos sacis, ou, não sei…?

            Mas Carmen Lúcia balançou a cabeça. Sabia bem o que suas orelhas de loba ouviam e sabia que não eram os sacis.

            – A gente não precisa entrar – ela disse – Vamos chamar algum professor, eles podem resolver o problema…

            Claro, elas teriam perdido a aula de Poções, mas nada mais grave teria acontecido se as duas tivessem descido os degraus de volta para o térreo. Porém, Carmen Lúcia, ainda com os ouvidos transformados, ouviu algo que a surpreendeu.

            – Lete… – ela chamou. – Tem alguém conversando pra lá. Não dá pra ouvir as palavras direito… Mas… – Carmen Lúcia franziu a testa, tentando ouvir melhor. Então arregalou os olhos, transformando as orelhas de volta: – Arlete! É a Fantasma! É ela que tá chorando!

            Não foi preciso mais do que uma rápida troca de olhares para que todo o resto não importasse mais. E daí que os sacis poderiam entrar nos cabelos de Arlete, e daí que Carmen Lúcia preferia se manter longe de encrenca? Fantasma era amiga delas e estava com problemas reais.

            Elas simplesmente afastaram o toldo e entraram no primeiro andar.

            Tudo estava desordenado. Os sacis realmente haviam feito certo estrago: carteiras estavam espalhadas pelo corredor, livros abertos e rasgados fora do lugar. Vez ou outra elas vinham os pequenos redemoinhos ou os cabelos vermelho cor de fogo das criaturinhas que eram ainda menores do que os Caiporas.

            – Nem parece o primeiro andar… – Arlete comentou.

            E ela tinha razão. Não só pela bagunça, e talvez porque as luzes estavam apagadas e tudo parecia menos dourado e mais sombrio, porém Carmen Lúcia tinha uma sensação ruim que a fazia hesitar mais a cada passo.

            – Onde Fantasma está? – Arlete sussurrou, parecendo amedrontada.

            Carmen Lúcia olhou para a amiga, lembrando de repente porque estavam ali. Piscou.

            – Desculpa, eu… – ela se concentrou por um momento: – Vamos, é por ali.

            As duas continuaram avançando. Aos poucos, a voz de Fantasma ia se tornando mais clara para Carmen Lúcia e ela conseguiu distinguir algumas palavras e frases curtas:

            …entende… problema…

            Complexo… você… elas não…

            … ninguém nunca vai…

            Não consigo.

            — Ali! – Carmen Lúcia apontou para a porta de onde as conversas vinham.

            Se Arlete já parecia um pouco assustada, ela travou nesse momento. Olhou para Carmen Lúcia, os olhos arregalados e as sobrancelhas altas na testa.

            – Tem certeza?

            – Hein-hen.

            – Não quero entrar – ela disse simplesmente.

            – Porque não? – perguntou mais baixo. Não podia entender. Aquela era apenas mais uma porta comum.

            – Carmen, você sabe onde estamos? Esse é o banheiro da Loira do Banheiro! Sim, a Loira do Banheiro!

            A lobisomem se lembrava vagamente de ter ouvido falar sobre a tal Loira do Banheiro nas poucas vezes que fora à escola em Carolina. Ela não tinha certeza, mas parecia que as brichotes realmente acreditavam que se chutassem a privada algumas vezes e falassem alguns palavrões estariam convocando uma espécie de assombração…

            – … Se quer minha opinião, ficou legal assim. Só quero saber o que eu vou fazer com toda essa bagunça.

            A voz soou fantasmagórica, como se viesse de outra dimensão. Carmen Lúcia nunca tinha a ouvido até então, mas percebeu que aquela devia ser a Loira do Banheiro.

            – Ela não parece tão mal… – a lobisomem comentou.

            De fato, pela voz, ela parecia uma simples adolescente preocupada com a organização de seu quarto. Talvez um tantinho arrogante, porém nada assustadora.

            — Você não entende! – Fantasma soluçou. – Eu não posso sair daqui! O que foi que eu fiz?

            — Carmen… – Arlete parecia apavorada, sua voz falhava.

            Carmen Lúcia respirou fundo, encheu-se de coragem e agarrou o punho de Arlete, enquanto tentava uma conexão mental que não deve ter chegado a ninguém:

            Vamos.

            Abriu a porta.

            A cena que encontrou era no mínimo cômica. Ou talvez fosse trágica, dependendo do ponto de vista. Nada fez sentido, e, por um momento, Carmen Lúcia teve a péssima sensação de que estava em um sonho maluco.

            A parede entre os banheiros masculino e feminino estava quebrada e, bem ali no meio, encontravam-se duas garotas loiras e pálidas. Uma delas, flutuando a um palmo do chão, tinha os cabelos longos e esvoaçantes, as pupilas quase totalmente vermelhas e era possível ver através dela, mesmo que apenas borrões. A outra, com os olhos vermelhos de choro, olheiras profundas e rosto cansado, trazia os cabelos presos e bagunçados.

            As duas olharam quando Carmen Lúcia e Arlete invadiam os banheiros.

            – Fantasma! – Arlete exclamou.

            – São suas amigas? – a garota flutuante perguntou, com um sorriso cruel. – Talvez isso seja engraçado.

            – Fantasma – Arlete repetiu, olhando apenas brevemente para a Loira do Banheiro. – O que aconteceu?

            Ela parecia mais preocupada do que assustada, mas Carmen Lúcia podia sentir o medo ainda brincando em suas entranhas. Arlete parecia muito querer avançar, porém hesitava, provavelmente pela presença da garota morta.

            Carmen Lúcia olhou melhor para Fantasma e foi só então que ela viu o que deixava Arlete tão preocupada: a argentina não tinha os cabelos presos. Ela os cortara na nuca e boa parte de suas mechas loiras jaziam no chão.

            Ao ver as amigas, ela pareceu completamente chocada, como se elas fossem as fantasmas, não a Loira do Banheiro. Sua respiração se alterou e ela parecia incapaz de falar qualquer coisa, nervosa, ansiosa. Ajoelhou-se, pegando os cabelos caídos, tentando escondê-los, mantê-los longe da visão das outras, as mãos tremendo.

            – Eu… – Ela mal via Carmen Lúcia e Arlete, os olhos voltando a se encher de lágrimas. – Eu…

            Não foi nem preciso uma troca de olhares dessa vez. As duas correram em direção a Fantasma. Nenhuma delas entendia bem o que estava acontecendo, mas sabiam que ela precisava delas. Carmen Lúcia quase podia sentir a dor da amiga a cortando como uma faca.

            – Eu… Não consegui… Não posso mais… – Fantasma balbuciava, a voz fraca, as lágrimas correndo livremente. – Me descul… Me desculpem!

            E Arlete e Carmen Lúcia apenas se ajoelharam perto dela, cada uma a abraçando de um lado, murmurando palavras de conforto.

            Não importava o que estava acontecendo, não importava porque Fantasma andava tão misteriosa ou porque cortara os cabelos. As duas estavam ali pra ela.

 

            Ou pra ele. Depois que Fantasma conseguiu se acalmar, ela (ele?) começou a contar toda a história. A Loira do Banheiro também fez alguns comentários e ajudou a contar a história quando Fantasma começava a chorar ou era incapaz de falar, mas no fim tudo ficou claro.

            Fantasma havia crescido com um segredo. Quando era pequeno, quase não fazia diferença porque suas roupas eram quase neutras e tudo o que ele fazia era correr atrás do irmão mais velho, seguindo suas aventuras. Mas as coisas começaram a ficar complicadas quando lhe falaram que não podia fazer as coisas porque era “menina”. Não fazia o menor sentido, tudo o que queria era continuar atrás do irmão, admirando-o, sentindo-se capaz de ser igual a ele. De todas as maneiras.

            Uma vez dissera para os pais que não se sentia como uma garota e nunca recebera olhares mais severos. Quando insistiu em usar as roupas do irmão, apanhara tanto que seu eu-verdadeiro havia se escondido profundamente dentro de sua mente.

            Não havia mais tocado no assunto e procurou ser discreto, mas então veio Castelobruxo e seus pais não estavam por perto…

            Fantasma contara também que no começo não teve problemas em Castelobruxo, afinal, os uniformes eram unissex e parecia que não havia restrições baseadas no sexo, mas logo percebeu que existiam dormitórios separados. Foi aí que a coisa começou a ficar um pouco mais complicada. Acontece que o elevador começara a travar sempre que Fantasma entrava e simplesmente não subia. Algumas vezes respirara fundo e repetira para si mesmo que era uma garota e fora o bastante, mas em outra não.

            Foi quando começou a evitar o elevador, inventando todo tipo de desculpa para entrar em seu dormitório pela janela, pela qual descobriu que era possível entrar com a permissão das garotas.

            Mas não conseguia mais reprimir quem era.

            Em Castelobruxo encontrara parte da liberdade que sempre almejara, sentia-se melhor. Seus pais não podiam dizer quem devia ser ali. Só não dissera nada ainda e tentara continuar se reprimindo porque temia que Carmen Lúcia, Arlete, Douglas e Vicente, seus melhores amigos, fossem deixá-lo, como seus pais disseram que fariam.

            – Ai, Fantasma! – Arlete exclamou, sorrindo com pena do garoto que ainda chorava. – Que bobagem! Vamos sempre estar aqui por você. Sempre.

            – Eu… – Fantasma olhava para Arlete, enxugando os olhos. – Eu não entendo. Há algo errado comigo, eu sou…

            – Você é um garoto muito bonito. – a garota completou, pegando os braços do argentino e ajudando-o a limpar o rosto.

            Fantasma sorriu, olhando de Arlete para Carmen Lúcia e de volta para Arlete. Então abraçou a última, agradecendo. A lobisomem ficou feliz em ver que Arlete sabia muito que falar e abraçou os dois também.

            Seria mentira se Carmen Lúcia falasse que não fora um choque saber a verdade. Sabia, claro, que Fantasma vinha escondendo algo coisa delas, e sabia o quando era ruim guardar o segredo só pra si, mas ela nunca teria imaginado que Fantasma, na verdade, era um garoto.

            Nunca teria imaginado que Fantasma era transgênero.

            Carmen Lúcia não sabia quase nada sobre o termo, não conhecia ninguém que também o fosse e por um momento torceu o nariz. Parecia estranho. Por que uma garota iria querem ser um garoto? Aquilo parecia inverter a ordem natural das coisas. Mas, enquanto mais falava com Fantasma e ouvia tudo o que ele vinha reprimindo até então, mais sentia que Fantasma estava certo e o mundo errado.

            A única diferença era que agora entendia porque Fantasma vinha se sentindo tão mal.

            – Eu disse pra ele que ficaria tudo bem… – A Loira do Banheiro flutuava sobre as cabeças deles, parecendo meramente entediada. – Não seria o primeiro a me procurar por aconselhamento…

            A verdade era que a presença da garota morta deixava Carmen Lúcia desconfortável. Arlete não parecia nenhum pouco mais feliz e apenas Fantasma parecia aceitar bem sua presença.

            A lobisomem tentou imaginar quantas vezes Fantasma correra para desabafar com a Loira do Banheiro e quando devia estar desesperado para procurá-la. Não conseguia nem imaginar o que era esconder seu verdadeiro eu, ainda mais Carmen Lúcia, que sempre se sentia orgulhosa de ser quem era.

            – Acho melhor a gente sair daqui – Arlete disse, olhando da Loira do Banheiro para Fantasma. – Eu sei que você ainda não deve querer ver ninguém, mas…

            Mas sua amiga me deixa nervosa. Arlete não falou, mas as palavras flutuaram pelo ambiente, tão sólidas quanto a própria Loira.

            Fantasma balançou a cabeça, desculpando-se e despedindo-se da Loira.

            Foi assim que os três deixaram o banheiro da Loira, atravessaram o primeiro andar infestado de sacis e voltaram para a Pirâmide Leste, que estava vazia durante o horário de aula.

            – Talvez a gente devesse falar com alguém – Carmen Lúcia sugeriu em certo momento, enquanto estavam sentados na Sala Comunal Leste.

            – Tá maluca? – Arlete se manifestou. – Do jeito que a Fantasma está… o Fantasma.

            O garoto ainda parecia cansado, os olhos ainda vermelhos. Seus cabelos agora estavam bem curtos e irregulares e parecia impossível esconder que alguma coisa acontecera. Arlete dissera que era melhor não falarem com ninguém, mas parecia tampouco capaz de achar outra solução.

            – Poderíamos falar com a Jacinta. – Carmen Lúcia insistiu. – Ela vai entender…

            – Carmen! – Arlete a repreendeu. – Isso é sério! É sobre a vida do Fantasma, não podemos…

            Fantasma suspirou, interrompendo-a.

            – Talvez seja melhor falar com a Jacinta mesmo. – Ele disse, sem olhar para nenhuma delas.

            Carmen Lúcia odiava ver Fantasma assim e sabia o quanto estava nervoso em fazer isso, mas não via outra saída. Se não falassem nada, o problema apenas persistiria. Assim, talvez, Fantasma fosse colocado no dormitório onde deveria ficar e conseguiria dormir direito por fim.

            Decidiram que as aulas não eram tão importantes e foram logo atrás de Jacinta. Mas a vice-diretora estava dando aula, e, quando chegaram em sua sala, deram de cara com a diretora Araci Rudá.

            – Será que eu posso tentar ajudar vocês, garotas? – a diretora cega perguntara em sua voz rouca. – Também estou esperando Jacinta, mas talvez possamos resolver o problema de vocês sem a presença dela.

            Mas falar com Jacinta e falar com Dona Araci eram coisas completamente diferentes. Arlete, que vinha falando até então, travou e parecia incapaz de dizer qualquer coisa.

            Como pareceu que Fantasma também não diria nada, Carmen Lúcia tomou à dianteira.

            – Senhora Araci – Ela começou. – Nós precisamos conversar.

            Não havia maneira simples de dizer aquilo. Carmen Lúcia nem entendia bem o que estava acontecendo com Fantasma, então colocar tudo em palavras foi complicado. Mas , no fim, deve ter feito um bom trabalho, pois os olhos cegos de Dona Araci sorriam quando ela disse:

            – Temos apenas um problema então. – a diretora fez uma pausa – o Sr. Duarte não pode ficar no dormitório feminino.

            Isso foi o bastante para Carmen Lúcia conseguir sentir uma onda de alegria vinda de Fantasma.

            – Eu só preciso falar com a Jacinta antes. – A diretora falou, sua face refletia tranquilidade. – Mas vocês não deviam estar em aula agora?

            Os três assentiram. De repente Carmen Lúcia se sentiu envergonhada de estar ali, falando com Dona Araci e matando aula. Apressaram-se rapidamente para fora da sala, murmurando um pedido de desculpas e indo para a aula de História da Magia.

            – Viu, só? – Arlete murmurou enquanto eles atravessaram o corredor do terceiro andar, já vazio depois do sinal ter tocado para a terceira aula. – Vai ficar tudo bem, Fantasma! A Araci vai te colocar no dormitório certo!

            Arlete sorria, mas Carmen Lúcia sabia que Fantasma estava nervoso. Com os fios tão curtos, seria impossível esconder que alguma coisa estava acontecendo e com certeza viriam perguntar o porquê de ter cortado o cabelo.

            De fato, essa foi a primeira coisa que Douglas e Vicente perguntaram assim que Carmen Lúcia, Fantasma e Arlete pediram licença para o professor Queiroz e sentaram perto dos amigos.

            – Por quê? – Fantasma forçou um sorriso. – Têm medo que eu fique mais bonito do que vocês?

            – Como é? – Douglas ria, mas parecia confuso também. Ele simplesmente transformou os cabelos no mais próximo dos de Fantasma que conseguiu e disse: – Você acha que fica mais bonita do que eu usando esse corte?

            – Devo ficar mesmo. – Fantasma alfinetou. – Se você quis me copiar…

            Douglas fechou o rosto, os outros riram. Na verdade, a risada de Vicente foi tão alta que o professor Queiroz lhes pediu silêncio.

            O resto das aulas passou rápido mesmo que alguns alunos tenham vindo falar sobre o corte de cabelo de Fantasma, a maioria o elogiou. Carmen Lúcia podia sentir o quanto ele estava mais feliz durante o almoço, mas, conforme foi ficando mais tarde e como nem Dona Araci nem Jacinta haviam falado com ele ainda, Fantasma foi se tornando mais inquieto.

            Claro, Carmen Lúcia, Arlete e Fantasma contaram tudo para Douglas e Vicente. Eles ficaram um pouco chocados no começo, mas Carmen Lúcia achou que eles foram mais compreensivos e abertos do que ela própria.

            Mas Jacinta só veio falar com Fantasma no fim do dia, quando chamou pediu que ele fosse até sua sala, e Arlete e Carmen Lúcia resolveram acompanhá-lo. Pediu desculpas pela demora e disse que Dona Araci já havia lhe dito o que estava acontecendo. Disse também que aquela não era a primeira vez que eles recebiam um aluno transgênero na escola e que ele seria reinstalado em um dormitório adequado o mais rápido possível, mas que antes de fazer a troca ela precisava saber se o elevador masculino subiria com ele.

            Fantasma pareceu um pouco nervoso com isso, mas concordou, desde que fizesse o teste de noite, quando a maioria dos alunos já estavam dormindo.

            – Vai ficar tudo bem. – Arlete garantiu mais uma vez, quando deixaram a sala da professora Jacinta. – Vamos com você de noite e…

            – Não – Fantasma falou, sem olhar para elas.

            Carmen Lúcia e Arlete se viraram para olhá-lo ao mesmo tempo. Não conseguiam entender qual o problema agora.

            – Você vai ficar no dormitório certo, não é isso que… – Arlete começou, mas o argentino a interrompeu:

            – Não. Você entendeu errado. Eu… – Ele olhou para cima, parecia encontrar dificuldade em encará-las, mas o fez mesmo assim: – Eu prefiro que vocês não venham de noite.

            – O quê? – Arlete falou primeiro. – Mas somos suas amigas! Vamos te ajudar! É pra isso que estamos aqui e…

            – Não, Arlete – A vez de Carmen Lúcia falar. Sabia bem como Fantasma estava te sentindo. Não era que não confiava nelas, ou que não acreditavam que queriam seu melhor. Era só que precisava fazer aquilo sozinho. Carmen Lúcia colocou a mão no ombro do amigo, sorrindo: – Vamos te apoiar sempre. Mesmo de longe.

            Fantasma sorriu enquanto os três voltavam para a Sala Comunal Leste.

 

            Carmen Lúcia não conseguiu dormir direito naquela noite. Ela, Fantasma e Arlete ficaram esperando na Sala Comunal Leste até que a última aluna, uma garota loira e alta, subiu para seu dormitório e então, ela e Arlete haviam desejado boa sorte para Fantasma quando ele atravessou o túnel subterrâneo até a Pirâmide Oeste. Depois disso, as duas subiram para seu próprio dormitório, e tentaram dormir até que perceberam que não conseguiam.

            – Você acha que vai ficar tudo bem? – Arlete perguntou, sentando na cama.

            Ela estava ansiosa e empolgada. Talvez mais até do que Fantasma devia estar.

            – Acho que sim – Carmen Lúcia disse, ainda deitada. – Se você pudesse sentir os sentimentos do Fantasma também… Ele tava tão bem melhor hoje…

            – Também! – Arlete exclamou. – Consegue imaginar como é viver tanto tempo fingindo que você é alguém que não é? Quero dizer… O que os pais do Fantasma fizeram com ele foi cruel! Minha…

            Mas Arlete se interrompeu. Carmen Lúcia teve a impressão de que ela ia começar a falar da mãe, mas não conseguiu. Arlete podia falar sobre Fantasma e seus problemas familiares, porém Carmen Lúcia sabia que ela também não tinha a família mais simples do mundo.

            – Quero dizer… – Arlete começou, abraçando a si própria e esfregando seus braços, sem olhar para a amiga. Carmen Lúcia se sentou e apurou os ouvidos. Não queria perder nenhuma palavra.

            Talvez, porque Fantasma finalmente fora corajoso o suficiente para falar, Arlete estivesse se sentindo encorajada também. E já fazia algum tempo que Carmen Lúcia sabia que a relação dela com a mãe não era das mais felizes.

            Porém, justamente nesse momento, o espelho mágico de Carmen Lúcia começou a tocar.

            Arlete levantou a cabeça, olhando interessada para o espelho. Carmen Lúcia olhou também:

            – Fantasma.

            A lobisomem não precisou dizer mais nada. Arlete pulou de sua cama, acendeu as luzes e sentou do lado da amiga.

            – Atende logo!

            Carmen Lúcia olhou para a outra. Um dia, quem sabe, descobriria também o segredo dela.

            Apertou o espelho.

            – Oi! – Fantasma estava radiante. Seu cabelo parecia mais arrumado do que antes e melhor cortado. Carmen Lúcia nem precisava estar perto dele para sentir sua alegria vibrando.

            – Deu tudo certo? – Arlete perguntou.

            – Sim! – o garoto continuou. – Eu estou em quarto para visitantes especiais na Pirâmide Central. Jacinta disse que vai arrumar para me colocar em um dos dormitórios masculinos amanhã. Disse também que eu devia enviar uma carta para os meus pais… – ele passou a mãos pelos cabelos. – Isso me deixa nervoso. Eu devia falar com o Pacho também, mas não sei se consigo encarar ele… – Fantasma suspirou, olhando diretamente para as garotas. – Eu queria que vocês estivessem aqui.

            Eles ainda conversar mais um pouco, até que Carmen Lúcia anunciou que iria dormir. Isso fez Arlete voltar para sua cama, mas ela continuou conversando com Fantasma. A lobisomem pensou em mandar os dois dormirem, pois teriam aula no dia seguinte, mas eles pareciam tão bem conversando que ela resolveu deixar pra lá.

            O fato é que acabou dormindo enquanto ainda ouvia as vozes de Arlete e Fantasma aos sussurros. E tudo parecia bem.


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Notas finais do capítulo

:D



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