O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 22
Capítulo 22




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— Isso aí tá parecendo coisa de bicho-grilo – Disse Franco analisando o acampamento quase na penumbra total, exceto por uma gambiarra de luzes que cercava uma barraca grande.

— Pode ser coisa de cigano também – Emendou Gemima com medo das histórias que ouvia sua mãe contar a respeito dos homens com boca de ouro que só casavam com mulheres virgens. Como não era o caso dela, relaxou.

— Nem uma coisa nem outra. Veja o que tá escrito na faixa, ali. –Alertou Selma, apontando pro alto.

 

Diolindo espremeu os olhos que já começavam a lhe falhar aquela altura da vida.

 

III RETIRO DE CASAIS DA PARÓQUIA DE SÃO MATIAS

 

— Mas daqui não tô vendo ninguém – Disse Diolindo olhando ao redor das barracas às escuras, com exceção da que estava acesa com um casal jovem, sentado em cadeiras de plástico, tomando café.

 

Selma freou a carroça do outro lado da pista e desceu junto com a trupe, dirigindo-se aos dois personagens solitários do evento, que observava tudo com atenção. Quando viram a figura rotunda de Franco paramentado abriram um largo sorriso. Quando viram um homem magro segurando uma boneca vestida de noiva, fecharam o sorriso.

 

— Boa Noite – Cumprimentou Selma. – Vocês teriam um pouco de água pra nós?

— Claro moça – Respondeu a mulher entrando na sua barraca, uma loura magrinha na faixa dos trinta anos, vestida como uma velha de sessenta, inclusive com um lenço no cabelo cujo tecido Diolindo não soube precisar, mas apostava que era uma pedaço de chita.

— A que devemos a honra Padre, o senhor veio substituir o Padre Alípio? Infelizmente todos se foram. – Disse o homem, mais velho que a mulher uns dez anos, levantando para cumprimentar o ex-padre.

— O que houve com o Padre Alípio? – Perguntou tentando ver se tirava algum proveito da situação.

— Sofreu um derrame na véspera do nosso retiro e está internado o coitado. A turma que veio aproveitar o feriado de carnaval pra rezar um pouco ficou frustrada e foi embora. Ficamos eu e Dorotéia pra desmontar tudo e esperar o caminhão no domingo. Que mal lhe pergunte, qual é a sua paróquia?

Franco que já esperava a pergunta, inventou um santo ali na hora, como a igreja fazia há milênios, ele tinha certeza.

— Santa Meredite, numa comunidade pobre há algumas horas daqui.

— Desculpe a ignorância, nunca ouvi falar – Relatou a mulher que voltava com duas garrafas de água e metade de um bolo de cenoura.

— Foi a única que comeu o pão que o Diabo amassou e sobreviveu – Bradou fazendo um gesto pro chão com uma mão e com a outra arrancando um pedaço do bolo. - Nasceu no seio de uma família de ocultistas. Seu pai era uma avaro que tentava a todo custo descobrir os segredos da alquimia para transformar pedra em ouro. Sua mãe era dada a bruxarias, fazia poções para vender como elixir de cura para todos os males da humanidade.

 

Como Franco conseguira a atenção de todos, inclusive de Selma que não fazia ideia quem era a tal Santa, ele continuou em voz impostada de contador de histórias.

— A menina, filha única, abominava a educação que seus pais queriam para ela e fugiu de casa. Não foi muito longe e logo foi capturada. Foi tirada da escola e levada a trabalhar na praça pública ajudando a mãe a vender a sua magia. Quando nessa época iniciou-se a inquisição, o levante da igreja para combater heresias como você sabem, sua família se recolheu em uma casa de parentes, enquanto sua mãe fazia um pacto com o coisa ruim. Daria a sua filha em sacrifício para que pudessem salvar as suas peles da fogueira.

 

—Oh! – Dorotéia fazia ar de espanto genuíno colocando a mão na frente da boca aberta, enquanto Plínio, seu marido sustentava um olhar incrédulo. De boca aberta também estava Diolindo, mas era só um bocejo de sono. Quando percebeu que o pai estava floreando demais e parava para ver o semblante dos ouvintes, sabia que ali estava sendo produzida uma mentira ao vivo. Procurou alertar Selma que voltava da estrada onde tinha ido dar água aos jumentos e deixá-los pastar na margem da estrada.

 

— Num sonho, sua mãe recebeu a receita para assar um pão, o pão do diabo. Ela deixaria a massa pronta à meia noite em cima de um pedra no meio do bosque, ao lado de uma cruz invertida, e voltaria às cinco da manhã para pegá-la de volta, já sovada pelo satanás. Ela assim o fez e antes do galo cantar colocou o pão no forno. Próximo de ficar pronto, começou a sentir um odor de enxofre de dentro do forno e ele finalmente se incendiou pondo a casa inteira abaixo. Desolada, quando se aproximou dos escombros do forno, viu o pão intacto, assado e cheiroso no meio das pedras. Tirou um pedaço e fez a filha comê-lo, mas nada aconteceu. Então, esfaimados que estavam, comeram do pão, ela e o marido, não deixando migalha para a sua irmã que a tinha abrigado e agora perdera seu único bem. Imediatamente caíram no chão sufocando e espumando pela boca até sangrarem por todos os orifícios numa agonia indescritível. A menina, desesperada, abaixou-se e segurou as mãos dos pais e rogou aos céus que se eles ficassem bem, iria embora para longe com a roupa do corpo ajudar quem precisasse dela. Os hereges então voltaram a vida em estado de debilidade mental e foram internados num manicômio onde passaram o resto dos seus dias se auto imolando para sangrar o mal que haviam imputado a filha que nunca mais viram. Sua tia milagrosamente casara depois dos sessenta anos solteira e recebia as cartas da sobrinha relatando o bem que espalhava pelo caminho. Aquelas missivas serviriam de prova para canonizá-la anos depois.

 

Depois de ouvir o relato, Selma ficou imaginando se o santo que fez o milagre de casar a tia não fora Santo Antonio e riu-se. Plínio e Dorotéia estavam encantados com aquele Padre de boa fala, apesar da sujeira aparente dos seu paramento e um aroma de álcool que lhe saia aos quatro ventos. Nem tudo no mundo era perfeito. Seu casamento precisava de mais ação e a sua paróquia não estava conseguindo colocar na cabeça de Plínio o que ele deveria fazer. As palavras certas. Quem sabe aquele Padre, daquela paróquia, daquela Santa maravilhosa, não pudesse fazer a sua união frutificar.

— Porque vocês não dormem por aqui essa noite? – Sugeriu Plínio, quase que adivinhando os pensamentos da esposa.

Como era exatamente o que queria ouvir, foram se distribuindo por entre as barracas vazias e dotadas de bastante conforto. Devia uma paróquia de gente abonada, pensaram.

O casal gostaria de fazer umas perguntas antes, mas parecia uma gente tão pacífica que não se incomodaram em perguntar quem era casado com quem. A boneca noiva lhes chamaram a atenção, mas também a acharam tão linda e real que poderia servir para treinar os ritos do casamento com noivos que não poderia dispor de sua noiva real e que talvez morasse longe. Viram o padre entrar numa barraca com a sua secretária, assim lhe teria dito, o homem magro com a boneca e a mulata da calça apertada na outra, e todos foram dormir sob uma lua, que só ficaria mais estranha se lobos uivassem naquela noite. E uivaram. Mas não pareciam ser lobos.

 

###

 

Ele estacionou a viatura em frente a delegacia e pediu que Sr. Almeida esperasse um pouco na recepção, somente até ele conseguir outro carro para pegarem a estrada. Como já havia trabalhado ali, conhecia os corredores e as portas que teria que bater. Ao passar pelo corredor que levava até a sala do Delegado Paiva, seu mentor na polícia, achou que tinha visto um rosto familiar e deu dois passos para trás. Clarice, a filha do Almeida e o marido, algemados, dando um depoimento ao seu amigo chefe do distrito. Deu duas batidinhas na porta e entrou. Clarice se assustou ao vê-lo ali, mas logo imaginou que seria quem os tiraria daquela enrascada e, como não havia parado de chorar desde que entrara ali, reforçou o volume da fanfarra.

 

— Fredson, Fredson, que bom te ver! – E fez que ia levantar-se, sendo impedida pelo policial atarracado que a prendera, com uma mão no seu ombro. – Houve um engano, estamos desesperados!

 

O detetive olhou para o delegado que o chamou para perto, levantou-se para lhe dar um abraço, fazendo um breve relato da ocorrência. Sérgio permanecia quieto e de cabeça baixa, achando que aquilo era só a primeira figurinha do álbum de desgraças que comprara quando entrou pela primeira vez num hipódromo.

— Eu quero notícias do Joãzinho, Fredson, por favor! – Implorava a mulher à beira do histerismo.

— Clarice, as acusações são graves. Quanto ao seu filho vou ver o que fazer pra saber como ele está. Mas quem tá aí fora é o seu pai. Ele estava indo comigo até a sua casa pra ver se tá tudo bem, já que está preocupado com Selma que saíra cedo e ainda não dera qualquer notícia, sendo que esse não é o padrão dela.

 

Processando as informações o mais rápido que pode, ela sabia que estava dentro dum trem desgovernado. O seu pai não poderia ir no sítio e atrapalhar o serviço, se é que já não tava feito. Mas achava que não. Ou pior, chegar na hora do flagrante e Romeu dar com a língua nos dentes. Aí é que ela perdia tudo. Como nos cavalos.

 

Ainda assim preferiu bancar a boa moça. Era a palavra de Romeu contra a dela. A polícia agora era o seu álibi.

— Não deixe ele me ver assim – Implorou levantando as mãos algemadas. – Siga pro sítio e vá ver como está minha irmã. Sérgio têm um primo advogado que já está a caminho. Mas não me deixe sem notícias do meu filho! E da minha irmã! Não fale nada pra papai sobre o neto, ele pode não aguentar! – Balbuciava entre soluços, com a saliva visgando entre os lábios.

 

Sérgio queria aplaudir a atuação, mas também estava com as mãos atadas. A última vez que a esposa tinha merecido um Oscar fora quando a conhecera e ela lhe impressionara com os seus conhecimentos sobre sexo. Ela ainda era virgem aos dezoito anos, mas estudara bastante sobre o assunto a ponto de quase convencê-lo que se tratava de uma escrava sexual foragida de um puteiro na Lapônia.

 

###

 

Ao se levantar do banco procurando em algum lugar pra se apoiar, Godô puxa a corda da buzina do caminhão sem querer, assustando a ele e Romeu, que dera pulo de gato escaldado, quase batendo a cabeça no teto.

— Porra!

— Que Diabos!

— O que aconteceu? Onde estamos?

Passava das cinco da manhã e não havia viva alma por ali. Se ouvia apenas os latidos de cachorros da vizinhança que se assustaram com o estrondo.

Trazendo a memória liquefeita pela pinga prum estado mais sólido, Godô ficou arretado.

— Por causa desse seu método de merda perdemos um dia. E agora temos que esperar o bar abrir outra vez pra investigar. Tomara que os cabeças de bagre não tenham tido amnésia de ontem pra hoje.

— A culpa é da bola doze. Na minha cabeça, depois que matei ela, era pra nóis puxar assunto. Mas ocê num sabe perder – Retrucou colocando as duas mãos na cabeça que lhe latejava como seu tivesse um sino de igreja dentro.

— Nada de pinga hoje. Vai ser do meu jeito – Anunciou Godô, tirando um pozinho moído do bolso e passando a língua na seda. – Quer unzinho pra clarear as ideias?

— Se passar essa dor de cabeça, eu aceito.

 

Ficaram ali dividindo e tragando aquele pó de gafanhoto com os vidros do caminhão fechado, esperando o bar abrir, pensando cada um à sua maneira, de que jeito gostaria de matar seus alvos. Talvez pelo efeito da erva, Romeu pensou num ricocheteio de bala épico para matar com um só tiro, Selma e os outros dois que ainda não conhecia, a tal da boneca noiva e o magricela. A bala entrava em gente, batia em pedra no chão, esbarrava com uma jaca lá no pé, na parede, em gente de novo, na lua, e por último, antes de entrar em Selma, ainda escoiceava no cabo da garrucha antes de penetrar macia no coração da mulata e sem derramar uma gota de sangue.

 

Godô não romantizava tanto, mas carregava suas mortes no simbolismo. Furaria Gemima todinha com a ponta do crucifixo do padre. E para o falso homem de Deus, construiria uma grande cruz onde o pregaria pra morrer ao relento e sangrando. O seu Pai sagrado ficaria tão orgulhoso dele que faria chover com relâmpagos três dias seguidos naquela secura sem fim, em sua homenagem. Cada relampejar era uma foto que o Homem lá de cima tava tirando dele.

 

E apagaram novamente para acordar duas horas depois com uma larica dos diabos.


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